10 Novembro 2016
"Bento XVI e Francisco, sucessores de Pedro, a serviço da Igreja." Assim está intitulado o último livro do cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Publicado pela editora Ares, o livro (112 páginas) reúne algumas intervenções que o cardeal dedicou a assuntos diferentes, todos ligados ao ministério de Pedro e ao modo em que tal serviço foi desempenhado por Joseph Ratzinger e está sendo atualmente interpretado por Jorge Mario Bergoglio.
A reportagem é de Aldo Maria Valli, vaticanista do canal Rai1, em seu blog, 06-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os capítulos mais encorpados ocupam-se de dois temas: "O primado de Pedro no pontificado de Bento XVI" e "A pobreza: via de evangelização no espírito do Papa Francisco", mas o autor também propõe um texto sobre "Verdade e liberdade. O que é a laicidade para o cristão" e "Critérios teológicos para uma reforma da Igreja e da Cúria Romana".
Como se vê, todas questões de grande atualidade e de debates animadas, porque também dizem respeito à inédita situação que se criou com a presença de um papa reinante e de um emérito.
O cardeal Müller, nascido em Mainz, na Alemanha, em 1947, e responsável pelo ex-Santo Ofício desde 2012, não esconde as diferenças entre Ratzinger e Bergoglio, mas as remete a um compromisso comum. Com relação a dois aspectos centrais no ensinamento de Bento XVI e de Francisco, o purpurado escreve: "Na ‘ditadura do relativismo’ e na ‘globalização da indiferença’ – para retomar as expressões de Bento XVI e de Francisco – as fronteiras entre verdade e falsidade, entre bem e mal se confundem. O desafio para a hierarquia e para todos os membros da Igreja consiste em resistir a essas infecções mundanas e no tratamento das doenças espirituais do nosso tempo".
Ao delinear o principal eixo da reflexão de Müller, Cesare Cavalleri, diretor da editora Ares e da revista Studi Cattolici, no prefácio, observa que a raiz teológica e, portanto, também pastoral de ambos os pontífices é – e não podia deixar de ser – cristológica. No entanto, Ratzinger e Bergoglio especificam-na com originalidades pessoais, de modo que, se no caso de Ratzinger temos uma análise estreita apaixonada da relação entre fé e razão, o ensinamento de Bergoglio se concentra, em vez disso, na opção pelos pobres como "atenção religiosa privilegiada e prioritária", como se lê na Evangelii gaudium.
"Em termos religiosos e teológicos – escreve o cardeal Müller – não faz muito sentido comparar entre si as pessoas individuais que se sucederam na Cátedra de Pedro ou expressar uma avaliação dos pontificados individuais segundo critérios humanos. O que importa é a relação com o primado de Pedro, que deve ser o metro e a bússola para as decisões de cada papa. Porque cada papa é o sucessor de Pedro, e não apenas do seu antecessor em ordem cronológica."
Parece possível entender, portanto, que, também para o cardeal Müller, estamos diante, para usar as categorias a que Dom Georg Gänswein recorreu recentemente, a uma espécie de "ministério comum", "colegial" ou "sinodal", dentro do qual cada um traz uma contribuição específica.
E é justamente a partir daí que começa a nossa entrevista com o cardeal.
Eminência, em uma entrevista à edição alemã da Rádio Vaticano, o senhor, depois de salientar que, pela primeira vez na história recente da Igreja, temos o caso de dois papas vivos, acrescentou: "Certamente, apenas o Papa Francisco é o papa, mas Bento é o emérito, por isso, de algum modo, ele ainda está ligado ao papado. Essa situação inédita deve ser abordada teológica e espiritualmente. Sobre como fazê-lo, há opiniões diferentes. Eu tenho mostrado que, apesar de todas as diferenças que dizem respeito à pessoa e ao caráter, que são dados pela natureza, contudo, o vínculo interno também deve ser tornado visível", e esse vínculo consiste em proclamar a fé em Jesus Cristo, verdadeiro fundamento do papado. Pode nos explicar esse conceito?
Com efeito, estamos vivendo uma fase muito especial na história da Igreja: temos o papa, mas também o papa emérito. Nessa situação, muitos são levados a fazer comparações entre um e o outro. Em certo sentido, é natural, mas é preciso respeitar a identidade e, portanto, a peculiaridade de cada um. O Papa Bento provém de um ambiente acadêmico e da Alemanha. Por muito tempo ele foi professor de teologia, muito conhecido e apreciado em todo o mundo. Os seus livros foram traduzidos em inúmeras línguas e, depois, por mais de 20 anos, trabalhou justamente aqui onde nos encontramos, à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, antes de ser eleito pontífice. O grande tema do seu pontificado foi a relação entre a fé e a razão. Ele se interrogou sobre o papel da fé na modernidade, fazendo perguntas que nascem do desenvolvimento do mundo moderno.
O Papa Francisco vem de um contexto muito diferente. Ele foi por muito tempo mestre dos Exercícios Espirituais segundo Santo Inácio, depois provincial dos jesuítas, depois ainda bispo auxiliar e arcebispo, pastor de uma grande diocese como a de Buenos Aires. As duas biografias, portanto, são profundamente diferentes, mas também unidas, e o que as une é o ministério petrino. Ambos exercem um ofício a serviço da fé e da Igreja. Um ofício que não deram a si mesmo, mas vem de Jesus. E podemos agradecer a Deus por esses dois grandes personagens que Ele quis dar à história recente da Igreja.
No diálogo com a modernidade, o que distingue a abordagem de Bento XVI e a de Francisco?
Há diferenças, mas não contradições: isso é muito importante! As diferenças dependem justamente das biografias diferentes, das histórias pessoais diferentes. O Papa Bento, como estudioso, se defrontou com os grandes desafios da filosofia europeia moderna, com o subjetivismo que começa com Descartes, com a filosofia crítica de Kant; debruçou-se sobre a teologia da Revelação, interrogou-se, a partir de Agostinho, sobre a fé em relação à verdade e ao amor. O Papa Francisco viveu com os muitos pobres de hoje, especialmente na América Latina, e se defrontou com os problemas da justiça social. A sua experiência espiritual e pastoral se entrelaçou com as grandes conferências do episcopado latino-americano em Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Justamente em Aparecida, em 2007, Bergoglio foi o presidente da comissão encarregada de escrever as conclusões da conferência. Não é por acaso que, no início do pontificado, Francisco logo falou das periferias e ajudou a nós, europeus e norte-americanos, a nos conscientizarmos da situação em que se encontram as áreas mais pobres do mundo. Portanto, há diversidades substanciais, mas isso não deve nos impedir de lembrar que a Igreja é sacramento da unidade, de todos os homens com Deus e entre si. Na Igreja, as diversidades estão ao serviço da unidade, e com esses dois pontífices tivemos duas oportunidades de grande importância. Um em uma dimensão mais intelectual, e o outro em uma dimensão mais social, os carismas de Bento XVI e de Francisco vêm ambos de Deus, são um dom de Deus.
Um dos seus discursos, eminência, é dedicado a "O que é a laicidade para o cristão". Pode nos sintetizar o seu pensamento a respeito?
Com a premissa de que, em alemão, não há diferença terminológica entre "laicidade" e "laicismo", mas há apenas o "laico" no sentido do batizado, membro vivo do Corpo de Cristo que é a Igreja, é preciso lembrar que, a partir do século XVIII, encontramo-nos diante de uma laicidade que cada vez mais assume as características do laicismo. Se tudo nasce com os liberais e os anticlericais que se lamentam da influência política dos clérigos sobre a vida das pessoas e das comunidades, ao longo dessa linha se desenvolve um Estado laico, mas que, bem cedo, começando pela França, não respeita plenamente a liberdade religiosa e de consciência. O Estado se torna totalitário, absoluto, pretende ser o Dominus das pessoas, o que, para a Igreja, é inaceitável.
Segundo nós, o Estado tem uma função instrumental: existe para servir ao homem e à sociedade, não para dominá-los. Todas as forças presentes na sociedade, no respeito da paz e na rejeição da violência, têm o pleno direito de se desenvolver e de participar em todos os momentos da vida social e cultural. O dogma dos laicistas – "a religião é algo privado" – se choca com o direito natural, segundo o qual toda pessoa é livre para ter e manifestar as suas opiniões, as suas convicções religiosas e filosóficas. A Igreja não quer que os políticos, através do Estado, nos prescrevam o que devemos pensar. Por esse motivo, a teologia católica sempre distinguiu entre o laicismo como ideologia do poder absoluto do Estado e a saudável e serena laicidade. Há uma autonomia da cultura e da ciência em relação à política do Estado. A Igreja também lembra que todas as ações humanas, em todos os âmbitos, devem fazer as contas com a moral. Não é possível haver uma política sem moral, uma ciência sem moral, uma cultura sem moral. A Igreja, especialmente com o papa, mas não só, portanto, levanta a sua voz em nome de uma correta laicidade e da moral individual e social.
Reforma da Igreja e da Cúria Romana. Qual a linha de Bento XVI e qual a de Francisco?
Não há grandes diferenças. Hoje, certamente, confrontamo-nos com a necessidade de uma nova organização de acordo com as possibilidades oferecidas pelos desenvolvimentos da técnica e dos meios de comunicação, mas, independentemente desses aspectos organizacionais, o fato é que a Cúria Romana é um órgão a serviço do papa e do seu magistério. Nós devemos ajudar o papa na sua missão, porque ele não pode fazer tudo sozinho, e os seus colaboradores são, em primeiro lugar, os cardeais da Santa Igreja Romana. A nossa Congregação, por exemplo, conta com 25 cardeais e alguns bispos, e a nossa tarefa é de ajudar o papa no seu magistério.
Nunca devemos esquecer que a missão mais importante do papa é a profissão da fé católica, através da qual todas as Igrejas católicas estão unidas, e a reafirmação da doutrina católica, da qual a primeira testemunha é precisamente o sucessor de Pedro. O Papa Bento XVI sempre sublinhou a dimensão eclesiológica e teológica da Cúria, que não deve ser esquecida quando se fala de reforma. Não se trata apenas de pôr as mãos na organização, que, naturalmente, sempre pode ser melhorada. A questão mais importante diz respeito ao espírito. Com que espiritualidade trabalhamos aqui? Com uma mentalidade burocrática, sem amor pelas pessoas, ou com uma constante atenção à criatura humana e ao seu bem? Aqui nós, certamente, somos responsáveis pela verdade da fé, mas também pela salvação das almas. Esse é o fim último. Portanto, trabalhamos pelo sucessor de Pedro, pela Igreja e pelo Reino de Deus.
Eminência, na sua opinião, qual é a principal característica em comum entre os pontificados de Bento XVI e de Francisco?
Bento e Francisco são dois homens de Deus, não pensam na sua vantagem, nos seus próprios interesses, mas se dedicam plenamente à missão do sucessor de Pedro, e essa é uma grande riqueza para a Igreja. Não estamos nos tempos do Renascimento, quando tivemos alguns papas, digamos assim, um pouco problemáticos! Nos últimos dois séculos, os papas se dedicaram plenamente à Igreja, Corpo de Cristo, povo de Deus, e devemos ser gratos a Deus por isso.
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Bento e Francisco, ambos a serviço da Igreja. Entrevista com Gerhard Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU