15 Setembro 2016
“Alguns católicos proeminentes na Alemanha vêm respondendo negativamente ao livro ‘Últimas conversações’ de Bento XVI. Andreas Batlogg, jesuíta, editor da revista Stimmen der Zeit, de Munique, sugeriu que a obra não deveria ter sido publicada; a sua preocupação não tem a ver com o conteúdo do livro, disse ele, e sim com que a sua publicação corre o risco de representar Bento XVI como “o papa” ainda”, informa Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos na Villanova University, no estado da Pensilvânia e autor do “The Rising Laity. Ecclesial Movements Since Vatican II” (Paulist Press, 2016), em artigo publicado por Commonweal, 14-09-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo o professor de História da Igreja, “Se você é um dos tradicionalistas que consideram a “opção do cisma” (formal ou silenciosa), não procure neste livro o apoio de Bento XVI. Ele agora se descreve como um rebelde que sempre gostou de contradizer (“die Lust am Widerspruch”), e agora ele contraditou – e se afastou de – alguns dos que nomeara e promovera durante os seus 31 anos em Roma antes de se tornar “emérito”.”
“O silêncio destas fações, autodenomidas de ratzingerianas, nestes últimos dias é um indicativo da consolidação da autoridade de Francisco”, conclui Massimo Faggioli.
Eis o artigo.
Um conjunto de três belos livros publicados desde maio aponta para um esforço de remodelagem do legado do Papa Bento XVI. Ainda que as reflexões emergentes podem não estar apelando nem aos que desejam que o papa emérito reafirme o tradicionalismo, nem aos que buscam uma acolhida mais plena do atual papa, elas podem não obstante ajudar a consolidar o apoio por detrás de Francisco ao isolar a pior das franjas pré-cismáticas.
O primeiro a ser publicado foi “Oltre la crisi della chiesa. Il pontificato di Benedetto XVI” [Além da crise da Igreja. O Pontificado de Bento XVI, sem tradução ao português], do Pe. Robert Regoli, historiador da Igreja e professor da Universidade Gregoriana, em Roma. O livro de 512 páginas é uma história do pontificado de Bento e foi lançado na Gregoriana como parte de um painel cujos participantes incluía Georg Gänswein – secretário pessoal de Bento –, quem também usou a ocasião para repetir a sua teoria absurda do duplo papado. Duas semanas atrás veio a obra “Servitore di Dio e dell’uman ità. La biografia di Benedetto XVI” [Servo de Deus e da humanidade. A biografia de Bento XVI, sem tradução ao português], que é uma biografia de 522 páginas de Joseph Ratzinger escrita por Elio Guerriero, editor italiano dos livros de Hans Urs von Balthasar e Joseph Ratzinger. Lançado pela casa editorial mais importante da Itália, o livro também conta com um prefácio do Papa Francisco.
Por fim, na semana passada saiu o muito aguardado quarto livro-entrevista com o jornalista alemão Peter Seewald, intitulado em inglês “Last Conversations of Benedict XVI” [As últimas conversações de Bento XVI, em tradução livre]. Muito embora uma versão inglesa somente estará disponível dentro de alguns meses, há pouco terminei a leitura da publicação em alemão. O texto será de interesse geral aos que querem ter uma compreensão melhor do Vaticano e da Igreja Católica nestes últimos anos, por três motivos.
O primeiro é a forma como o livro tenta reenquadrar o pensamento de Ratzinger no contexto da tradição católica do século XX e situá-lo nas origens da renovação da teologia pós-Segunda Guerra Mundial. Bento XVI recorda um artigo publicado por ele sobre os “sinais dos tempos” em 1958 – isto é, ainda antes de João XXIII ter sido eleito e a expressão ser associada ao Vaticano II – e outras obras pelas quais ele foi acusado de heresia. Há uma avaliação dura do período imediatamente posterior ao Vaticano II e uma crítica cândida ao método teológico subjacente à Humanae vitae, de Paulo VI, o que não deve surpreender dada a relativa falta de interesse de Ratzinger sobre a questão mesmo depois de sua eleição ao papado. Tampouco deve surpreender vindo de um católico da Alemanha, onde a diplomacia de João XXIII e Paulo VI era vista por muitos como demasiado suave com respeito ao comunismo, como foi a Ostpolitik do Cardeal Agostino Casaroli, sobre o que Bento afirma: “Foi claramente um fracasso”.
Bento XVI também defende o seu próprio pontificado ao apresentar o período de 2005 a 2013 como um momento de tentar fortalecer os elementos sinodais dentro da Igreja; é a única parte do livro que aborda conciliaridade e sinodalidade, e ela transparece como falsa a qualquer um que testemunhou esse período, mesmo que faça indiretamente um juízo (correto) sobre as tendências centralizadoras de João Paulo II. Bento XVI defende igualmente as suas normas litúrgicas e estilo litúrgico, todavia se distancia claramente dos ultratradicionalistas litúrgicos: “A Comunhão na língua não é obrigatória; eu sempre fiz de ambos os modos”, diz. Ele nega que o Summorum Pontificum, o motu proprio de 07-07-2007, que introduziu a forma extraordinária da missa (pré-conciliar e em latim), visava apaziguar os lefebvrianos da Fraternidade São Pio X.
O segundo aspecto notável do livro é a forma como Bento procura retratar o seu envolvimento nos assuntos e nas relações internacionais com líderes mundiais. Para o Cardeal Ratzinger, o filósofo alemão Jürgen Habermas foi um parceiro significativo de diálogo, porém a relação deles nunca se transformou em amizade. Ainda que tenha palavras de apreço para o presidente Barack Obama e para Michelle Bachelet, presidente do Chile, ele surpreendentemente expressa mais interesse e admiração por Vladimir Putin e pela preocupação deste líder pelo futuro do cristianismo: “Putin é um homem de algum modo tocado pela necessidade da fé. É um realista que vê a Rússia sofrendo por causa da destruição da moralidade”. No entanto, Bento XVI também confessa que a política significou “a parte menos interessante” de seu pontificado. Confessa igualmente que não considerou a significação política de seu discurso em Regensburg em setembro de 2006, especialmente a seção sobre o Islã.
Um terceiro aspecto interessante (embora não surpreendente) do livro é o ressentimento e a amargura que Bento expressa para com a Alemanha e a Igreja Católica alemã. Ele não rebate uma crítica feita por Seewald contra um de seus sucessores no cargo de arcebispo de Munique, o Cardeal Reinhard Marx, atualmente membro do Conselho dos Cardeais assessores de Francisco. Lembra a caminhada apostólica difícil para a Alemanha em 2010 (especialmente a Berlim secularizada) e repete uma vez mais as suas críticas à riqueza e à burocracia da Igreja Católica na Alemanha e ao atual estado da teologia alemã. Fala sobre a Alemanha em termos de uma Igreja dominada pelo “poder da burocracia, pela superintelectualização da fé, pela politização e pela falta de dinamismo vitalício. Vale notar como Bento XVI cita o trabalho voluntário por trás do encontro anual do movimento Comunhão e Libertação da Itália para traçar romanticamente um contraste com a forma como a Igreja Católica na Alemanha recebe dinheiro do Estado, quando, na verdade, a própria Comunhão e Libertação também recebe apoio financeiro significativo.
Alguns católicos proeminentes na Alemanha vêm respondendo negativamente ao livro. Andreas Batlogg, jesuíta, editor da revista Stimmen der Zeit, de Munique, sugeriu em entrevista a um programa de rádio que a obra não deveria ter sido publicada; a sua preocupação não tem a ver com o conteúdo do livro, disse ele, e sim com que a sua publicação corre o risco de representar Bento XVI como “o papa” ainda.
Batlogg criticou duramente Gänswein por alimentar uma mentalidade paracismática. O editor alemão traz um ponto interessante: a quase aposentadoria do Papa Bento XVI se tornou um evento altamente público e uma parte constante do ciclo católico de notícias, pelo menos na imprensa católica de Roma ou aquela focada no que acontece nesta cidade. É exatamente por isso que se faz necessária uma definição canônica, litúrgica, simbólico-cultural da função de um “papa emérito”. A capa do livro lista “Bento XVI” como seu autor, sem menção alguma ao fato de que ele é “papa emérito”.
O livro também deixa claro o isolamento de Bento XVI para com o ambiente curial e vaticano durante o seu pontificado. Defende o seu secretário de Estado, o Cardeal Tarcisio Bertone, mas não de todo o coração, e nega que tenha recusado o conselho de alguns cardeais para demitir Bertone (entre estes cardeais está Christoph Schönborn, de Viena, que fora certa vez aluno do Professor Ratzinger e hoje é um dos assessores-chave de Francisco). Há pouquíssimas palavras de gratidão a outros atores-chave de seu pontificado. Os acadêmicos sabem que não há política como a política acadêmica, mas mesmo os acadêmicos podem, quando se aposentam, encontrar belas palavras para seus colegas.
Quanto a Francisco: Bento tem algumas palavras para o seu sucessor. No entanto, o que diz sobre Francisco parece enquadrado como “teologia versus burocracia da Igreja” – reforçando assim a ideia de que Bento é o teólogo, e Francisco, o político católico. As declarações de Bento sobre certos temas parecem tentativas de um reposicionamento dele próprio, não exatamente para com aqueles que nunca o admiraram, mas em vista dos católicos tradicionalistas que, durante a última década, tentaram se apropriar do “papa teólogo” e fazer dele um tradicionalista mais do que ele realmente foi. Algumas das declarações que Bento XVI faz no livro podem fazer com que fãs nostálgicos se sintam desamparados pela segunda vez, sendo a primeira a decisão de renunciar em fevereiro de 2013. O que o papa emérito diz sobre a teologia do Vaticano II e a liturgia pode ajudar a romper a aliança contrária a Francisco formada desde sua eleição em 2013 por tradicionalistas “à la Lefebvre” e pelos católicos, teólogos e autoridades chamados (e autoidentificados) ratzingerianos. O silêncio destas fações nestes últimos dias é um indicativo da consolidação da autoridade de Francisco.
Bento XVI não fala sobre os Sínodos dos Bispos de 2014 e 2015, nem da exortação apostólica Amoris laetitia. Aqueles que esperam por uma intervenção da parte do ex-papa no debate sobre a família e fiéis divorciados e recasados vão se decepcionar. Se você é um dos tradicionalistas que consideram a “opção do cisma” (formal ou silenciosa), não procure neste livro o apoio de Bento XVI. Ele agora se descreve como um rebelde que sempre gostou de contradizer (“die Lust am Widerspruch”), e agora ele contraditou – e se afastou de – alguns dos que nomeara e promovera durante os seus 31 anos em Roma antes de se tornar “emérito”.
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“Últimas conversações” de Bento XVI: remodelando o legado de Ratzinger? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU