24 Fevereiro 2016
Ásia News publica um “diário cotidiano” da “crise de Aleppo”, contada através dos olhos do padre Sami Hallak. Ele denuncia a crônica falta de água e os meios esgotados para preservá-la e reutilizá-la. Recentemente se intensificaram os combates e os bombardeamentos, estando também os cristãos entre as vítimas. A estátua da Madona, sinal de esperança para a comunidade.
Aleppo (Ásia News) – Um “Diário da crise” de Aleppo, contada por um sacerdote jesuíta que descreve as dificuldades da população entre falta de água, violências e bombardeamentos, e a fé indestrutível dos cristãos da cidade. Que, entre devastações e mortes, conseguem, todavia, fazer surgir sinais de esperança, “milagres” que são mais fortes do que a guerra e os mortos.
O conto é do sacerdote jesuíta padre Sami Hallak, e chegou graças à colaboração do coirmão padre Bimal Kerketta, o qual recorda que “a Síria vive de modo especial o período da Quaresma”.
Apresentando o diário cotidiano do missionário jesuíta, o padre Bimal refere que “a situação na Síria piora de dia em dia”. E acrescenta que, após “a destruição de Homs”, na qual foi morto um padre jesuíta, agora “parece chegada a hora de Aleppo”.
Na cidade atuam dois sacerdotes por conta do Jesuit Refugee Service (JRS), os padres Sami Hallak e Ghassan. Eles põem em risco a própria vida “a serviço da humanidade”, enquanto as milícias do Estado islâmico “se tornam sempre mais próximas”. “Em Aleppo vivem ainda hoje – conclui – mais de meio milhão de pessoas – enquanto as estradas estão fechadas e se arrisca a cada momento ser assassinado”.
Eis, a seguir, o “Diário da crise” de Aleppo contado pelo sacerdote jesuíta indiano, Sami Hallak, publicado por Ásia News, 23-02-2016. A tradução é de Benno Dischinger.
22 de janeiro de 2016
O moral da população é muito baixa. Na cidade falta a água e se fala de uma interrupção que durará longamente. Daesh, os milicianos do Estado islâmico, que controlam o dique que reabastece de água a cidade de Aleppo, interromperam o fornecimento por razões que no momento não conhecíamos. Para o povo desesperado, isto é um motivo a mais para deixar a cidade e, partindo, tomar a direção para o Ocidente.
É bem sabido que sempre mais famílias se vão ao Canadá. No nosso centro dos jesuítas temos uma grande caixa d’água, com capacidade de 22 mil litros, mas há aí na época um grande consumo. Calculando também os membros do Jesuit Refugees Service (JRS), o número daqueles que trabalham na nossa residência (os escritórios se encontram no segundo andar) supera o número de vinte. As reservas podem garantir água por doze dias. Como os outros, estou preocupado com a situação.
27 de janeiro de 2016
Sempre com esta história dos bombardeios pesados! Desta vez caíram diante da igreja de São Miguel, às 11 da manhã. Temos uma janela quebrada, dois ou três painéis em vidro andaram em frangalhos. O rumor foi tremendo. Ainda falta água.
O desespero do povo é tal que, na missa dominical, precisei dizer na homilia que a água voltará dentro de uma semana: uma afirmação de fé e de esperança. Ela tem um bom efeito sobre as pessoas, enquanto outros têm declarado – como eu, sem nenhuma prova – que a água será cortada por muito, muito tempo.
Há meses encorajo as pessoas a manterem uma visão positiva e ter pensamentos que sejam fonte de encorajamento. Isto é o único modo que nos resta para sobreviver. Desde ontem correm vozes que a água voltará no domingo... Oxalá!
Cada dia levo 50 litros de água junto ao nosso complexo escolar, para oferecer bebidas quentes: chá, café ou outras tisanas quentes) aos estudantes. Refornecemo-nos de água não potável de um poço da região, mas alguns procuram trapacear-nos de tanto em tanto quando a compramos (a água poderia provir também de uma zona muito inquinada).
Há três dias iniciou a grande batalha de Aleppo. O exército do governo ataca e o rumor das armas é audível por toda a noite, até as primeiras horas da manhã. Não nos serve uma vigília, porque sonhamos entre um golpe e outro.
Em resposta, as ordens caem nos quarteirões sob o controle do regime. Uma bomba caiu perto da igreja franciscana (a igreja de São Boaventura, conhecida como Ram Church). A grande estátua da Virgem Maria desta igreja foi destruída. Isto é um mau sinal para o povo.
A casa de minha família é exatamente diante do lugar de culto, mas não me preocupo, por três quartos já foi destruída por causa das explosões na área há sete meses e restaram somente duas peças. A porta de uma delas foi destruída na explosão.
Solicitei a um dos vizinhos que vá embora porque sua casa tinha sido demolida. Deveria distribuir ou vender as poucas coisas que lhe ficaram da casa, porque poderia acontecer de tudo no futuro. Quanto ao que se refere a mim, costumo repetir seguidamente esta frase: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Uma experiência mística da guerra.
14 de fevereiro de 2016
Das escolas na Síria aprendemos que o petróleo é o ouro negro, e o algodão o ouro branco. Hoje descobrimos que a água é o ouro sem cor. Como o ouro é tratado como faz o ourives, o mesmo se pode dizer para a água, que falta há mais de um mês na cidade.
As pessoas são constrangidas a comprá-la a preços altíssimos; uma despesa que se acrescenta à eletricidade e que constringe muitíssimos a transcorrerem a noite no escuro, porque não conseguem manter ambas as despesas: água e eletricidade, e por isso escolhem o que é mais necessário.
À parte a água para beber, que se pode usar uma só vez, cada gota de água é reutilizada duas ou três vezes. Se alguém toma banho, põe a água quente num balde e aquela que é usada para o banho é, portanto recolhida com cuidado no termo do mesmo num recipiente.
Cada gota de água que sai do corpo é recolhida com enorme esforço, para que seja depois reutilizada para a limpeza (segunda utilização). Quando ela é usada na lavadora, ela contém detergente e outros aditivos e por isso é recolhida em recipientes e usada para outros tipos de limpezas domésticas (por exemplo, limpar o pavimento). Naquela altura, a água suja que resta é reutilizada par os serviços higiênicos (terceiro uso).
Deste modo, se pode poupar água e detergentes num momento no qual seu custo é elevado, porque é necessário comprar coisas que, num outro momento, não seriam servidas. O nosso reservatório de 20 mil litros está quase vazio... Por três dias temos procurado outras reservas para refornecer-nos, mas é preciso esperar o próprio turno, e a lista de espera – como podem imaginar – é longa.
Através dos elos com outras associações, padre Ghassan conseguiu recuperar um reservatório ontem. Trata-se de 15 mil litros de água; uma quantidade enorme. Podemos conseguir fazer frente às necessidades mensais, inshallah... Entrementes, boatos falam de um retorno da água dentro de um mês.
Anedota: hoje é o dia de São Valentim. O slogan: “Te amo também se cheiras mal”. O presente mais popular é uma latinha roxa... cheia d’água.
15 de fevereiro de 2015
Dia negro: os combates são intensos e as represálias também. As bombas caem por toda parte, mas os cristãos não parecem ter um objetivo sensível e por isso os engenhos não caem nas suas áreas. Para eles, no momento os mortos são números. Mas, quando as bombas atingiram quarteirões cristãos, as cifras se transformaram em pessoas. Outro dia, três pessoas morreram e ontem outras seis.
Um clima de pavor se apossou dos habitantes cristãos. Eles permaneceram na cidade, porque não tinham os meios para partir. Por primeira vez, a televisão privada pro-governativa transmitiu imagens de mulheres cristãs sofredoras que se dirigem ao presidente Assada, dizendo terem bastante, para ele encontrar uma solução.
De sólito, os canais filo-governativos e as entrevistas oficiais transmitem cidadãos de Aleppo que dizem aceitar as dificuldades e as humilhações em nome da resistência e que os grupos armados terroristas são os inimigos da nação. Conheço algumas destas pessoas. Elas se lamentam da situação, mas, indo à TV, estão dispostas a dizer o que querem os chefes da emissora.
Este é o fascínio exercido pela pequena tela.
18 de fevereiro de 2016
Ainda falta água. Circulam boatos segundo os quais voltará em dois ou três dias, as informações falam de água nos poços do centro da cidade em níveis mínimos e já soou o alarme. A carência é elevada. Dois milhões de pessoas têm extrema necessidade de água. Em cada canto e rua da cidade se vêem caminhões que, de dia e de noite, transportam água. O preço por litro é entre 1,5 e 2 liras sírias para a água não potável.
A botija de água potável custa 125 liras (ou 600 liras para quem quer adquirir meia dúzia). Todavia, os cristãos conseguem sempre encontrar sinais de esperança. No domingo passado, falavam com um hidráulico. Perguntou-me se eu tinha visto o milagre da estátua da Virgem destruída pelos bombardeios.
“O milagre?” perguntei, “a estátua quebrou!”. “Sim – respondeu – mas a face da Virgem e quase tudo diante da estátua permaneceu intacto. Suas mãos unidas em prece estão um pouco danificadas, eis tudo! Padre, é um milagre!” Lhe respondi: “A tua fé é um milagre”.
“A estátua caiu, se despedaçou e tu consegues descobrir entre as ruinas o sinal de que o Senhor ainda está aqui conosco”. Este homem me fez pensar no centurião diante de Jesus morrendo: “Este é realmente o filho de Deus”. O hidráulico não está só. Muitos esqueceram que a estátua caiu e recordam somente a parte que restou “milagrosamente” intacta, embora esta última seja somente um terço da estrutura originária.
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O diário de um jesuíta em Aleppo: o milagre da fé é mais forte do que guerra e destruição - Instituto Humanitas Unisinos - IHU