Por: Cesar Sanson | 01 Outubro 2015
"Num planeta marcado por desigualdade e devastação natural, aquecimento pode converter-se em novo estopim de grandes migrações e conflitos". O comentário é de Agnès Sinaï em artigo publicado por Outras Palavras, 30-09-2015. A tradução é de Inês Castilho.
Eis o artigo.
Entre 2006 e 2011, a Síria viveu a mais longa seca e a maior perda de colheita já registrada desde as primeiras civilizações do Crescente Fértil. Dos 22 milhões de pessoas que habitavam então o país, quase um milhão e meio foi afetado pela desertificação [1], o que causou migração em massa de agricultores, criadores de gato e suas famílias para as cidades [2]. Esse êxodo elevou as tensões causadas pelo afluxo de refugiados iraquianos que se seguiu à invasão norte-americana em 2003. Durante décadas, o regime do Partido Baath, em Damasco, negligenciou a riqueza natural do país, subsidiando as culturas de trigo e algodão que requerem muita água e incentivando técnicas de irrigação ineficientes. A criação ultra-intensiva do gado e o aumento da população reforçaram o processo. Os recursos hídricos reduziram-se à metade entre 2002 e 2008.
O colapso do sistema agrícola sírio é resultado de uma complexa interação de fatores, que inclui as alterações climáticas, a má gestão dos recursos naturais e a dinâmica populacional. A “combinação de mudança econômica, social, ambiental e climática erodiu o contrato social entre os cidadãos e o governo, catalisou os movimentos de oposição e provocou uma degradação irreversível do poder de Assad”, dizem Francesco Femia e Caitlin , do Centro do Clima e Segurança [3]. Segundo eles, a emergência do Estado Islâmico (EI) e sua expansão na Síria e no Iraque resultam, em parte, da seca. E isso não decorre somente da variação climática natural. Trata-se de uma anomalia: “A mudança dos padrões de chuvas na Síria está ligada ao aumento médio do nível do mar no leste do Mediterrâneo, combinado com a queda da umidade do solo. Nenhuma causa natural aparece nessas tendências, ao passo que a seca e o aquecimento corroboram os modelos de resposta ao aumento dos gases de efeito estufa”, diz a revista da Academia Americana de Ciências [4].
No leste da China, durante o inverno de 2010-2011, a falta de chuvas e as tempestades de areia, que levaram o governo de Wen Jiabao a lançar foguetes na esperança de desencadear precipitações, tiveram repercussão em cascata, muito além das fronteiras do país. A perda de colheitas forçou Pequim a comprar trigo no mercado internacional. O aumento dos preços mundiais que se seguiu alimentou o descontentamento popular no Egito, o maior importador de trigo do mundo, onde as famílias gastam em comida, atualmente, mais de um terço de seus recursos. A duplicação do preço da tonelada de trigo, que passou de 157 dólares em junho de 2010 a US$ 326 em fevereiro de 2011, foi fortemente sentida nesses países, muito dependentes da importação. O preço do pão triplicou, o que aumentou o descontentamento popular contra o regime autoritário do presidente Hosni Mubarak.
No mesmo período, as colheiras de trigo, soja e milho no hemisfério Sul foram atingidas por La Niña, um fenômeno climático severo que provocou uma seca na Argentina e chuvas torrenciais na Austrália. Num artigo da revista Nature, Solomon Hsiang, Kyle Meng e Mark Cane estabeleceram uma correlação entre as guerras civis e o fenômeno de Oscilação Sul El Niño (ENSO, na sigla em inglês), que, a cada período de três a sete anos, provoca uma acumulação de águas quentes ao longo das costas do Equador e do Peru, bem como uma reversão dos ventos alísios do Pacífico, associadas a padrões climáticos importantes em nível mundial [5]. Para Hsiang e seus colegas, a probabilidade de conflito civil dobra durante o ENSO. Esta é a primeira demonstração de que a estabilidade das sociedades modernas depende muito do clima global.
As mudanças climáticas tornaram-se um “multiplicador de ameças” e modificam o curso das relações internacionais. À segurança dura herdada da Guerra Fria sucede a segurança natural, conceito forjado pelos militares norte-americanos reunidos no seio do Centro para uma Nova Segurança Americana (Center for a New American Security). Este think tank foi criado em 2007 para contrapor-se ao ceticismo climático dos neoconservadores e identificar as ameaças globais emergentes.
As causas da insegurança ambiental não podem mais ser reduzidas a elementos puramente exógenos e naturais como as erupções vulcânicas, os tsunamis ou os terremotos. As atividades humanas, a aceleração dos ciclos produtivos e sua globalização concorrem para desestabilizar o clima. O neologismo “antropoceno” designa essa pegada excessiva das sociedades industriais sobre o sistema Terra.
No Ártico, onde o gelo poderia derreter-se completamente até o final do século, e onde os efeitos do aquecimento global são duas vezes mais intensos do que em outros lugares, a reivindicação de novas fronteiras terrestres e marítimas reaviva as tensões entre países situados em torno dos polos [6]. A Rússia, que explora o Ártico há séculos, é o único país a possuir frota de quebra-gelos nucleares. Um modelo gigante, em construção nos estaleiros de São Petersburgo, será concluído em 2017 [7].
Moscou renova também sua frota de submarinos ultra silenciosos de quarta geração, lançadores de mísseis com ogivas nucleares. Do lado norte-americano, a abertura do Ártico é apresentada tanto como um negócio comercial em concorrência à Ásia quanto como uma possibilidade de garantir novos recursos energéticos [8].
O degelo do Ártico impõe seus efeitos sistêmicos. A variação do vórtice polar, corrente de ar glacial do Pólo Norte, explica o frio intenso que se abateu sobre a América do Norte durante o inverno de 2013-2014. “A interação entre o Ártico e o aquecimento global é algo novo na história da humana, porque ela transforma o encontro entre a geografia e a geofísica, nessa região, em um poder novo e estranho, de natureza geofísica, que chamamos de “potência ambiental do Ártico”. Este se exerce em escala planetária, com consequências enormes”, observa o especialista em estratégia militar Jean-Michel Valantin [9].
No entanto, o mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) aponta que não existe uma teoria estável que possibilite sugerir a ocorrência de conflitos armados no Polo Norte. O degelo permitirá validar ou não a robustez das instituições de cooperação transfronteiriça nos polos, tais como o Conselho do Ártico. Os causalidades se mostram complexas, instáveis e em evolução; os efeitos do aquecimento global pesam mais ou menos sobre as sociedades, em função da resiliência dos sistemas políticos, econômicos e sociais de cada lugar [10].
Em seu livro Climate Wars (Guerras Climáticas), o jornalista Gwynne Dyer descreve um mundo onde o aquecimento se acelera e onde os refugiados, esfomeados pela seca, perseguidos pelo aumento do nível dos oceanos, tentam chegar ao hemisfério Norte. Enquanto isso, os últimos países autossuficientes em alimentos, os de latitudes mais altas, devem defender-se, inclusive a golpes de armas nucleares, contra vizinhos cada vez mais agressivos: os do Sul da Europa e das margens do Mediterrâneo , transformados em desertos [11].
Face ao que certos cientistas denominam uma “perturbação climática de origem humana”, a geoengenharia – ou seja, a intervenção deliberada para reduzir o aquecimento do planeta – tenta assumir o controle do clima. Ela consiste em um conjunto de técnicas para remover parte dos excedentes de carbono da atmosfera (remoção de dióxido de carbono) e regular as radiações solares (gestão de radiação solar), o risco de uma maior desestabilização das sociedades e ecossistemas. A pulverização de enxofre, por exemplo, supõe que a camada comum na atmosfera é de espessura suficiente para ter um efeito ótico de obstrução da radiação solar e, desse modo, refrescar o planeta.
Mas a observação de erupções vulcânicas climatologistas levou a que, se as partículas de enxofre combinar-se arrefecer a atmosfera, eles também induzem secas regionais e pode, aliás, reduzem a eficiência de painéis solares, levar à degradação da camada ozono e enfraquecer o ciclo hidrológico global. “Além disso, não há acordos internacionais que definem como e em que proporções para usar a geoengenharia, técnicas de gestão de radiação solar representam um risco geopolítico. Porque o custo desta tecnologia situa-se apenas no dnas dezenas de bilhões de dólares por ano, que poderiam ser assumidos por atores não-estatais ou estado pequeno agir em seu nome, contribuindo, assim, para os conflitos mundiais ou regionais “, adverte o último relatório do IPCC.
Mas a observação de erupções vulcânicas leva os climatologistas a constatar que, se as partículas de enxofre concorrem para resfriar a atmosfera, elas também induzem secas regionais e podem, além disso, reduzir a eficiência de painéis solares, levar à degradação da camada de ozônio e enfraquecer o ciclo hidrológico global. “Além disso, sem acordos internacionais que definam como e em que proporções usar a geoengenharia, as técnicas de gestão de radiação solar representam um risco geopolítico. Porque o custo desta tecnologia alcança dezenas de bilhões de dólares por ano, ela poderia ser assumida por atores não-estatais ou pequenos Estados agindo em seu nome. Isso contribuiria para os conflitos mundiais ou regionais”, adverte o último relatório do IPCC.
As mudanças climáticas não criam apenas novos motivos para conflitos violentos, mas também novas formas de guerra, ressalta o psico-sociólogo Harald Weizer. A violência extrema desses conflitos excede o quadro das teorias clássicas e “instaura espaços de ação para os quais nenhum quadro referencial é fornecido pelas experiências vividas no mundo, marcado pela paz, do hemisfério ocidental pós segunda guerra mundial” [12].
Combates assimétricos entre populações e senhores de guerra a serviço de grandes grupos privados ampliam os mercados da violência, galvanizados pelo aquecimento climático. O caos de Darfur, no Sudão, que perdura desde 1987, é emblemático dessa dinâmica autodestrutiva agravada pela fragilidade dos Estados. No norte da Nigéria, a degradação das terras perturbou o modo de vida agrícola e de pastoreio e interfere com as rotas migratórias. Várias centenas de aldeias foram abandonadas e as migrações que resultaram disso contribuíram para desestabilizar a região, preparando o terreno para o movimento islâmico Boko Haram.
O último informe do IPCC define a noção de “risco composto” (compound risk), que designa a convergência de múltiplos impactos numa dada área geográfica: “Como a temperatura média do globo pode aumentar de 2 a 4°C até 2050, em relação às médias do ano 2000, há um risco, mantendo-se todas as coisas iguais, de importantes mudanças nos padrões de violência interpessoal, conflitos entre grupos e instabilidade social no futuro.”
O pesquisador Marshall B. Burke, da universidade de Berkeley, na Califórnia, e seus coautores anteciparam um crescimento de conflitos armados, em 54%, de agora até 2030. Seu estudo propõe a primeira avaliação global dos impactos potenciais das mudanças climáticas sobre as guerras na África Sub-Saariana. Ele ilumina a ligação entre guerra civil, altas da temperatura e queda das chuvas, ao extrapolar as projeções médias de emissão de gases de efeito estufa do IPCC para estas regiões entre 2020 e 2039 [13].
O afluxo de refugiados às portas da ilha de prosperidade que é a Europa poderia continuar a aumentar no decorrer do século 21. “Existem hoje tantas pessoas deslocadas no mundo em razão da degradação ambiental como pessoas deslocadas pela guerra e pela violência”, estima o cientista político Francis Gemenne [14]. Esses migrantes fogem de guerras que acontecem longe do Ocidente, o qual, a despeito de sua responsabilidade histórica pelo aquecimento global, resiste em reconhecer um status: “Refutar o termo de “refugiado climático” significa refutar a ideia de que as mudanças climáticas são uma forma de perseguição contra os mais vulneráveis.” Estas são vítimas de um processo de transformação da Terra que está muito além delas.
Notas:
1 - «Syria: Drought driving farmers to the cities», IRIN News, 02/09/2009.
2 - Gary Nabhan, «Drought drives Middle Eastern pepper farmers out of business, threatens prized heirloom chiles», Grist.org, 16/01/ 2010.
3 - « The Arab Spring and climate change », The Center for Climate and Security, Washington, DC, fevereiro de 2013.
4Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS), vol. 112, n° 11, Washington, DC, 17/03/2015.
5 - Solomon M. Hsiang, Kyle C. Meng et Mark A. Cane, « Civil conflicts are associated with the global climate », Nature, vol. 476, n° 7361, Londres, 25/08/2011.
6 - Ler, de Gilles Lapouge, «Fascination pour les pôles», Le Monde diplomatique, dezembro de 2010..
7 - «Russia lays down world’s largest icebreaker», Russia Today, 5/11/2013.
8 - «National strategy for the Arctic region» (PDF), Maison Blanche, Washington, DC, 10/05/2013.
9 - Jean-Michel Valantin, « The warming Arctic, a hyper strategic analysis», The Red (Team) Analysis Society, 20/11/2014.
10 - Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, em inglês), Climate Change 2014: Impacts, Adaptation, and Vulnerability, 2vol., Cambridge University Press, Cambridge e New York, 2014.
11 - Gwynne Dyer, Climate Wars: The Fight for Survival as the World Overheats, Oneworld Publications, Londres, 2010.
12 - Harald Welzer, Les Guerres du climat. Pourquoi on tue au XXIe siècle, Gallimard, coll. «NRF essais», Paris, 2009.
13 - Marshall B. Burke, Edward Miguel, Shanker Satyanath, John A. Dykema et David B. Lobell, « Warming increases the risk of civil war in Africa », PNAS, vol. 106, n° 49, 23/11/2009.
14 - Naomi Klein, Susan George et Desmond Tutu (organizadores), Stop crime climatique. L’appel de la société civile pour sortir de l’âge des fossiles, coleção. «Anthropocène», 27/08/ 2015.
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Guerras climáticas, a nova ameaça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU