Quaresma: tempo privilegiado para evangelizar nossas raízes interiores. Comentário de Adroaldo Palaoro

Foto: canva

21 Março 2025

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 3º Domingo da Quaresma, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 13,1-9.

Eis o texto.

“Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto” (Lc 13,8)

“E Deus viu que tudo era muito bom”: este é lema da Campanha da Fraternidade deste ano que nos provoca e amplia nossa visão em direção à grandeza da Criação, Casa Comum de todos.

A preocupação pela vivência de uma Ecologia integral não é opcional para quem deseja viver o seguimento de Jesus; é missão de todos nós.

“Ser protetores da obra de Deus é parte essencial de uma existência virtuosa, não consiste em algo opcional nem em um aspecto secundário da experiência cristã” (Laudato si’, n. 217).

O decisivo é que seja uma “ecologia com Espírito”, motivada por Ele, alentada e inspirada por Ele e seu projeto de novos céus e nova terra.

Na experiência espiritual da Quaresma, nos é pedido que, junto com Jesus, mergulhemos os pés no “chão da vida”, como as raízes na obscuridade, na vivência do deserto. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio.

Sentir que somos Terra faz-nos ter os pés no chão da vida e viver em comunhão com a comunidade das criaturas. A hora é de somar em prol da vida e no cuidado de todos os seres da Terra.

Avançamos no percurso quaresmal. A parábola da figueira, indicada para este terceiro domingo, não visa dar “lição de moral”; ela nos oferece imagens que devem se projetar sobre nossa interioridade, transformando assim todas as imagens negativas que nos impedem viver com mais leveza.

Essas imagens negativas muitas vezes se expressam com palavras como estas: “nunca serei nada”; “sou um caso perdido”; “há algo de errado comigo”; “todos esses esforços não vão dar em nada”; “não consigo sair dessa situação e progredir”.

Cada um de nós conhece esses sentimentos de decepção e nos perguntamos: Qual o sentido da nossa vida? A quem ela serve? Será que não estamos ocupando o lugar de outra pessoa?

Duvidamos do nosso direito de ser. Algumas pessoas, então, chegam à amarga conclusão: seria melhor se nem existisse, sou apenas um peso na vida dos outros.

O processo de conversão, a qual Jesus se refere, é um caminho existencial, uma viagem ao centro da Fonte que nos nutre e nos lança à vida, onde está toda nossa potencialidade como reflexo do ato criador de Deus em nossas entranhas. Portanto, a “con-versão” é ir descobrindo uma nova consciência até conectar com nossa “versão” mais original, nossa identidade; um caminho que requer paciência, lucidez, confiança, desejar vincular-nos com o dinamismo profundo que nos impulsiona a sermos mais humanos. Não é um caminho de busca da salvação-plenitude como recompensa, mas da encarnação dessa salvação-plenitude que já faz parte da nossa essência e que requer conectar-nos com o tempo de Deus, tempo de paciência e confiança no “melhor” do ser humano.

Não temos de esperar nada de fora; Deus já nos deu tudo; temos reservas de recursos nobres escondidos em nosso interior. A tarefa fundamental está em descobrir isso de nós mesmos. É um processo de despertar, de iluminação, de tomada de consciência de quem somos.

“Converter-nos” é centrar-nos, retornando à essência de nossa fonte interior; ao mesmo tempo é “descentrar-nos”, sairmos de nós mesmos, deslocarmos em direção à realidade que nos cerca, transformando-a.

Se não descobrimos que nosso caminho nos leva aos “aforas” da vida, não estaremos motivados para nenhuma mudança em nossa vida.

Há, em todos nós, ricas potencialidades, recursos originais, dons inspiradores..., que nem suspeitamos e que ainda não encontraram maneiras de se expressarem. Mas, o Jardineiro divino nos conhece e, na sua paciência, sempre nos oferece novas oportunidades para que a nossa nobreza interior possa se fazer visível, através de uma vida comprometida e solidária. Este é o sentido da verdadeira conversão; esta não se reduz a alguns atos externos bons, jejuns, mortificações vazias, ritos expiatórios estéreis, penitências egoicas nas madrugadas da vida..., para mostrar nossa condição pecadora; tais posturas tem muito mais a ver com uma certa soberba escondida que utiliza a própria fragilidade para revelar um falso “deus” que tem prazer com o sofrimento e as mortificações humanas.

E assim vamos nos afundando na lama de uma vida raquítica e distorcida, carregada de culpas e que nos deixa na mesma posição durante anos e anos. Deus não “comercializa” com ritos, práticas religiosas piegas, devocionismos alienantes, que nos distanciam da realidade e do compromisso solidário com os outros. Esta sim que é a esterilidade da figueira, ou seja, toda uma vida plantada no mesmo lugar e inútil para a vinha.

Somos “figueiras” chamadas a dar fruto, um fruto em formato de respeito à dignidade, à liberdade e valor de cada ser humano, de uma nova visão sobre cada rincão do planeta Terra que hoje necessita muita solidariedade, generosidade e compromisso. Neste cenário, alimentamos uma presença inspiradora frente às vítimas da atrocidade humana que nos envolve: ódio, intolerância, violência, preconceito, insensibilidade social e ecológica...

Identificados com Jesus, somos chamados a viver com mais “radicalidade”; e “radicalidade” significa ser suportado, carregado e alimentado por uma raiz que está plantada fundo no chão da vida. É como uma árvore que se apoia, se sustenta e se alimenta das suas raízes. Radical é aquele que vive perto da raiz, que se alimenta da raiz, que toma as coisas pela raiz, pelo fundamento.

Quando dizemos que os homens e as mulheres espirituais costumam ser radicais, queremos mencionar, em primeiro lugar, esta proximidade junto à terra e ao húmus, esse enraizamento profundo que alimenta a vida, que sustenta o tronco e a copa da árvore em todo e qualquer tempo, dando-lhe firmeza e consistência.

A dificuldade para entender o que é radicalidade vem da postura fundamental da nossa cultura pós-moderna que é muito pouco radical e profunda. Nós mal fincamos raízes em algo ou em algum lugar. Em geral, vivemos na superfície, no cultivo da aparência, na distração fundamental.

“Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto”. A parábola da figueira nos revela a aridez e a infertilidade da vida quando nos deixamos levar pela inércia dos acontecimentos, das situações, por sentir a segurança em fazer sempre o mesmo, por não enfrentar o medo que supõe entrar em nossa realidade interior para “cavar e adubar” nossa terra pessoal, para tocar as raízes onde está a verdadeira essência de nossa seiva vital.

Conversão tem três componentes que podem nos ajudar numa interpretação mais vital desta palavra: “con” (junto, completamente), “versus” (dar volta, retorno), “tion” (ação e efeito). Estes três componentes nos falam, sem dúvida, de um movimento que conduz muito mais a uma transformação que pode significar um profundo retorno à nossa interioridade do que simples mudanças de atos. Seria uma busca completa de nossa “versão” original e deixar de viver usando máscaras que nos afastam de nossa essência e de nossa verdade pro-funda.

Conversão não é questão de evitar “atos maus” pontuais que só nos enganam e tranquilizam nossa consciência; trata-se, sobretudo, de encontrar um espaço interior de conexão com nossa origem divina e que toda nossa vida gire em torno disso.

Para meditar na oração:

Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para o mais profundo de nós mesmos, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontramos o nosso “eu original” e a verdadeira paz.

É preciso “descer” até as raízes de nossa existência para descobrir uma nova “seiva” para nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.

Trata-se de despertar, de escavar nosso chão interior, alargar nosso coração e garimpar o “veio de ouro” que está disponível no eu mais profundo.

- O que alimenta as raízes de sua existência? Onde você busca o adubo que se transformará em seiva vital?

- Que frutos de verdade, de compaixão, de santidade, de paz... estão surgindo do interior de seu coração? 


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