Isto vos escandaliza? Artigo de Silvano Fausti

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23 Agosto 2024

"Agora que Jesus se revelou plenamente, ele pede adesão a si mesmo. Contudo, encontra o muro da incredulidade não só entre os judeus, mas também entre os discípulos. Eles estão envolvidos em uma crise que leva muitos a se distanciarem dele."

A reflexão é do jesuíta italiano Silvano Fausti (1940-2015), conhecido como o “biblista das periferias”.

O artigo póstumo, que reflete sobre o Evangelho deste 21º Domingo do Tempo Comum, foi publicado em Comboni2000 – Spiritualità e Missione, 14-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto. 

Isto vos escandaliza?

Jo 6,60-71

1. Contexto da mensagem

Isto vos escandaliza?”, Jesus pergunta aos seus discípulos de então e de sempre, que subitamente substituem os “judeus” que primeiro “murmuravam” e depois “discutiam” (vv. 41,45). Jesus falou de si mesmo como o pão que desceu do céu (vv. 32-47): comer a sua carne e beber o seu sangue nos faz viver pelo seu amor ao Pai e aos nossos irmãos (vv. 48-58).

Agora que se revelou plenamente, ele pede adesão a si mesmo. Contudo, encontra o muro da incredulidade não só entre os judeus, mas também entre os discípulos. Eles estão envolvidos em uma crise que leva muitos a se distanciarem dele.

O dom de Deus e a incredulidade do ser humano têm uma história antiga que tende a se repetir, especialmente diante daquele dom supremo que é o dom de si. A queda de Adão no jardim e de Israel na terra prometida já é a incredulidade diante do dom. Isto, porém, é original e irrevogável, como o amor do qual surge.

Jesus, depois do entusiasmo que suscitou, decepcionou as expectativas messiânicas deles. Além de ser um fato histórico, é um alerta à comunidade cristã. Pode-se ficar fascinado pelas suas obras, mas não acolher a sua pessoa e ser apóstata, longe dele. Até a traição serpenteia entre os doze (vv. 64b.71). Judas representa, para a comunidade, a última reviravolta, sombria e ameaçadora, da incredulidade.

É um diálogo estreito entre Jesus e seus seguidores, postos em crise pelo fato de o pão de que vivem ser a sua “carne dada pela vida do mundo” (v. 51). A salvação do ser humano vem por meio da cruz do filho do homem! Nem mesmo Pedro a aceitou (cf. Mc 8,31-33; Mt 16,21-23), e nenhum dos discípulos a compreendeu (cf. Lc 9,44ss; Lc 18,31-34). O escândalo que se abateu sobre os discípulos diante das previsões da Paixão também nos afeta diante da eucaristia. Na verdade, comer a sua carne e beber o seu sangue nos assimila a ele. O escândalo é duplo: por um lado, Jesus não realiza, mas derruba os nossos sonhos messiânicos; por outro, somos chamados a ser como ele.

Tanto para os judeus quanto para nós, tanto para os discípulos quanto para os doze, a cruz é o fracasso final. Em vez do messias glorioso, que tem tudo e todos em suas mãos, Jesus se coloca nas mãos de todos, como o pão. Em vez de dominar, ele se propõe a servir, e sua realização é sua morte, na qual oferece sua vida por amor.

Estão em jogo duas concepções opostas de Deus e do ser humano. Nós, como Adão, queremos ser como aquele deus em quem projetamos o nosso egoísmo, com o desejo de ter, de poder e de aparecer. Ele, ao contrário, tem o rosto do amor: é partilha, serviço e humildade. Gostaríamos de um deus à imagem e semelhança da nossa carne, da insuficiência em busca da autossuficiência; ao contrário, somos salvos se a nossa carne se tornar imagem e semelhança da sua, que é dom de si até à morte.

A carne do filho do homem, que tanto nos escandaliza, longe de contradizer sua origem divina, revela-a completamente ao se tornar dom de amor, para a salvação de toda a carne. Verdadeiramente, sua “carne é o marco da salvação”. Quem a aceita, sabe quem é o Senhor e redescobre sua própria verdade; quem não a aceita, distancia-se da vida e torna-se inautêntico.

Hoje, nós podemos não perceber o escândalo de sua carne: podemos celebrar a eucaristia como um belo rito, sem reconhecer nela o corpo do Senhor e sem nos assimilarmos a ele. Depois, comemos e bebemos a nossa condenação, como os de Corinto (cf. 1Cor 11,29). Se não aceitamos viver pela sua carne dada por nós, não temos seu espírito na nossa carne; ainda estamos na morte, como aqueles discípulos que se distanciam do pastor da vida, como Judas que o trai.

Mas este é o grande mistério: quem o rejeita (e quem realmente o aceita?) prepara o “seu” pão. Na verdade, mata-o. Mas ele dá sua vida a quem a tira e se faz pão para todos. Elevado na cruz, ele manifesta sua glória e se revela como “Eu-Sou” (8,28), para que quem quer que o veja e nele creia tenha a vida eterna (3,14s). Olhando para aquele que nós transpassamos (19,37), vemos o quanto Deus ama o mundo, a ponto de dar seu Filho unigênito para nos salvar da morte (3,16).

Nos versículos 60-63, Jesus confirma, sem meio-termos, o escândalo da cruz. Nos versículos 64-66, denuncia a incredulidade de alguns discípulos, que, então, se tornam “muitos” (vv. 64a.66); nos versículos 67-69, provoca os doze a reconhecê-lo, juntamente com Pedro, como o Santo de Deus, que tem palavras de vida eterna. No entanto, mesmo entre eles, Jesus sabe que existe um traidor (v. 70).

Jesus é o Filho do homem que dá sua carne pela vida das pessoas. O escândalo da cruz é julgamento e salvação do mundo: revela sua mentira e o salva, revelando-lhe um Deus que ama ao ponto de dar a vida por quem o mata.

A Igreja sofre esse escândalo como todos os outros. Diante da eucaristia, ela é chamada a viver da sua carne, que ela come. Mesmo que reconheça isso, ela está sempre exposta à negação e à traição, como Pedro e Judas.

2. Leitura do texto

Versículo 60 – “Naquele tempo, muitos dos discípulos de Jesus...” Primeiro foram os judeus, agora são seus discípulos, distintos dos doze, que não acolheram a Palavra; no fim, será também “um dos doze”. A resistência dos discípulos é a mesma do leitor diante do que Jesus acaba de dizer, a mesma sentida diante da eucaristia por quem entende o que celebra.

“Esta palavra é dura...” A dureza está na sua palavra ou no nosso coração que não a acolhe? Sua palavra de amor colide inevitavelmente com o nosso egoísmo; nos cega tanto que o bem nos parece mal, e o mal, bem. É por isso que o Senhor diz: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e os vossos caminhos não são os meus caminhos” (Is 55,8).

Versículo 61 –Sabendo que seus discípulos estavam murmurando

por causa disso mesmo...” Jesus conhece a nossa reação em si mesmo, mesmo antes das nossas palavras: “A minha palavra ainda não está na língua e tu, Senhor, já a conheces toda” (Sl 139,4). O filho conhece a incredulidade de seus irmãos perante o amor do Pai: é o mal do qual veio curá-los, às custas de sua vida.

“Isto vos escandaliza?” A palavra “escandaliza” aparece em João apenas aqui e em 16,1. O objeto do escândalo é que o pão da vida é sua carne dada pela vida do mundo. É o escândalo da cruz. Isso, para os discípulos e para o mundo, é fraqueza e extrema tolice, um naufrágio de toda esperança; mas, para Deus, é a força e a extrema sabedoria do amor. Aceitar a carne de Jesus dada por nós é a nossa salvação. Porém, é importante perceber o escândalo para superá-lo. Quem não o sente nem percebe a novidade absoluta que tem pela frente e sempre a reduzirá a algo óbvio. A obviedade religiosa é o primeiro inimigo de Deus, que, por sua natureza, é outro – ele é o Outro! Na verdade, ela o reduz a uma simples projeção dos delírios do ser humano.

Versículo 62 –E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?” Primeiro, o filho do homem estava no céu, de onde desceu (cf. vv. 33.38.41.42.50.51.58). Sua descida é sua vinda entre nós, o fato de se tornar carne. Sua ascensão é seu regresso, sua glorificação, que, para João, é a cruz, onde o filho do homem se torna pão da vida. O escândalo que os discípulos enfrentam na sinagoga de Cafarnaum antecipa o que enfrentarão na Sexta-Feira Santa, quando o virem elevado.

Versículo 63 – “O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada.” O significado imediato é evidente: a vida vem do Espírito, não da carne, que só vive por meio do Espírito. Mas a declaração se refere a Jesus ou aos discípulos? Deveria ter uma explicação do versículo anterior, que fala do filho do homem subindo para onde estava antes e de onde enviará o Espírito. Sua carne terrena não pode nos dar o Espírito antes de “subir”, antes de dar sua vida por nós. O grão de trigo, se não morre, não dá fruto (cf. 12,24). No entanto, também poderia abranger os discípulos. Para superar o escândalo, é necessário primeiro vê-lo elevado na cruz; só então eles poderão provar sua carne e beber seu sangue, receber seu Espírito e viver por Ele.

“As palavras que vos falei são espírito e vida.” Há palavras que nos tiram o fôlego, fecham o coração e matam; suas palavras, que consideramos duras e inaceitáveis, dão-nos, na verdade, o sopro de Deus e nos abrem à sua vida: são palavras de vida eterna, como dirá Simão Pedro (v. 68). Quem supera o escândalo e acolhe a palavra do filho tem o dom do Espírito e a vida de Deus.

Versículo 64 – “Entre vós há alguns que não creem.” Seu amor se opõe ao nosso egoísmo: só se compreende a própria língua, só se confia naquilo que confirma o que já se pensa. As razões da fé e da incredulidade não estão na cabeça, mas no coração; não na razão, mas na situação concreta que se vive. Só quem está suficientemente livre do egoísmo e dos medos é capaz de se abrir às palavras de amor e de confiança.

“Jesus sabia, desde o início...” O conhecimento divino de Jesus é sublinhado muitas vezes em João. Ele conhece o nosso mal, que é a incredulidade. O Mestre está falando aos discípulos; não se trata, portanto, da incredulidade do mundo, mas da própria Igreja. Na verdade, podemos celebrar a eucaristia e não reconhecer o corpo de Cristo, porque as nossas ações são opostas às dele (cf. 1Cor 11,20-22). Podemos ser discípulos em palavras, sem acreditar na Palavra, na Palavra da cruz que nos salva. Podemos até ficar à mesa dele e traí-lo (cf. 13,2.11.18.21-30). Mas o Senhor nos chamou e nos amou, sabendo de antemão quem somos. Não são os sadios, mas sim os doentes que precisam de médico (cf. Mc 2,17p).

Versículo 65 –É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim a não ser que lhe seja concedido pelo Pai” (cf. v. 44). Jesus reitera que crer no Filho é um dom do Pai. Esse dom é oferecido a todos os seus filhos. Se não fosse assim, Deus não seria o Pai de todos, e Jesus não seria o Filho, pelo qual tudo foi criado (cf. 1.3).

A incredulidade é o grande mistério da liberdade do ser humano, que, escravo da ignorância e do vício que dela se segue, é incapaz de responder ao amor com amor. A “culpa” da incredulidade, tanto aqui quanto no versículo 44, parece ser atribuída mais ao Pai do que a seus filhos. É um paradoxo atribuir a Deus a responsabilidade final pelo nosso mal; mas também é a única possibilidade de resolvê-lo. Na verdade, se ele tiver a última palavra, è claro que não será tão ruim quanto a nossa. Por essa razão, o Filho, que conhece o Pai, assumirá na cruz o mal do mundo.

Se é Deus quem dá a fé, muitos se perguntarão: “Por que ele não me dá?”. Porém, se fizerem essa pergunta, significa que já têm o desejo da fé. É uma semente inata no coração de cada ser humano, que, mais cedo ou mais tarde, germinará. Melhor cedo do que tarde.

Versículo 66 – “Apartir daquele momento, muitos discípulos...” Muitos de seus discípulos, e não apenas “alguns” (v. 64), não creem, porque consideram a Palavra dura e escandalosa.

“Eles voltaram atrás...” Em vez de irem atrás de Jesus, afastaram-se dele. Invertem o rumo de sua vida e já não caminham “com ele”: distanciam-se da companhia do Filho, abandonam a própria verdade e regressam às trevas. Essa crise atingiu muitos daqueles que inicialmente o seguiram com entusiasmo, até perceberem que ele não correspondia às suas expectativas. A mesma crise, mesmo inadvertidamente, atinge todo discípulo que não vive aquilo que celebra na eucaristia. Na verdade, a eucaristia pode ser um puro fazer memória do Senhor sem fazer o que ele fez. Por isso, na última ceia, João não falará da instituição da eucaristia, mas, sim, do lava-pés (13,1ss), para mostrar o que isso implica para a vida cotidiana.

Esses discípulos, apesar de terem seguido o Senhor até agora, ainda não têm um coração convertido. Pensam e agem como os outros: ainda são “do mundo”. O caminho para a liberdade é lento, com muitas paradas e quedas.

Versículo 67 – “Então, Jesus disse aos doze: ‘Vós também vos quereis ir embora?’” Os doze são distintos dos outros discípulos. Jesus pergunta se eles também querem abandoná-lo. Não que ele queira provocar uma crise: pelo contrário, provoca-os a reconhecê-la, a fim de resolvê-la. As maiores traições são cometidas na inconsciência: o mal é o fruto amargo do doce torpor do esquecimento.

Versículo 68 – “Simão Pedro respondeu: ‘A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna’.” A resposta de Pedro, em nome dos doze, é uma adesão de fé, paralela àquela que Marcos e Mateus colocam no fim do episódio dos pães (cf. Mc 8,27-29; Mt 16,13-16), e Lucas, imediatamente após a confecção dos pães (cf. Lucas 9,18-20). Pedro adere a ele e à sua promessa de vida, mesmo que não compreenda e não esteja de acordo com o caminho (cf. Mc 8,31-33; Mt 16,21-23). Ele realmente ama Jesus e suas palavras, mesmo que não as entenda. É um início de fé, que se completará na experiência posterior, por meio de fugas e negações. Só então ele compreenderá quem é Jesus e o que significam as suas palavras.

Versículo 69 – “Nós cremos firmemente e reconhecemos...” Crer é explicado aqui como conhecimento; em outros lugares, como ver. Fé é conhecimento e visão, não irracionalidade e escuridão. Quem não confia no Filho e no Pai não conhece a realidade: não se vê como filho, nem os outros como irmãos, nem a criação como dom do Pai. Conhece e vê apenas seus próprios delírios e medos, que projeta em tudo e em todos.

“Santo de Deus.” A expressão indica a maior proximidade de Deus e corresponde a “Filho de Deus” (cf. Mt 16,16: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”). “Santo de Deus” e “Filho de Deus” em Marcos são encontrados na boca de demônios, que conhecem a identidade de Jesus (cf. Marcos 1.24; 3.11; 5.7). Nossa forma de conceber Deus é sempre diabolicamente ambígua: ele só será demonizado pela cruz, onde conheceremos o “Eu-Sou” (8,28). A fé de Pedro, apesar de sua ambiguidade, é válida; representa aquele apego à pessoa de Jesus e às suas palavras que, depois da cruz e do dom do Espírito, poderão libertar das suas impurezas e florescer na sua verdade.

Versículo 70 – “Não fui eu que vos escolhi a vós, os Doze? No entanto, um de vós é um diabo.” Embora Jesus tenha escolhido os doze e eles o tenham reconhecido, há um demônio entre eles também. Com efeito, ele escolhe a todos, tal como somos, porque somos seus irmãos (cf. 13,18). Cabe a nós escolhê-lo. Depois do primeiro anúncio da paixão, Pedro se torna um “escândalo” para Jesus (cf. Mt 16,23) e é chamado de “satanás” porque não aceita a cruz (cf. Mc 8,33; Mt 16,23). João, como Lucas, não narra essa cena; mas ele certamente se lembra e alude a isso. Ele fala de eleição em um contexto de deserção e traição, para mostrar que ela é irrevogável: o Senhor permanece fiel para sempre, apesar de toda a nossa infidelidade.

Entre os doze, há sempre o diabo; manifesta-se em Judas (cf. 13,27), mas ameaça a todos (cf. Lc 22,31). Pedro e Judas são as duas almas que sempre convivem em cada fiel: a adesão a Jesus e a rejeição da sua carne dada por nós. Se não se aceita a sua carne, não se tem o seu Espírito (1João 4,2), e isso faz da pessoa d’Ele o cabide das próprias falsas expectativas.

Versículo 71 – “Jesus referia-se a Judas, filho de Simão Iscariotes...” O capítulo 6, que trata do pão da vida, termina com a traição de Judas. Sua figura, colocada no fim, adquire particular importância. Sua traição tem um papel decisivo no fazer-se pão de Jesus. “Trair” (= entregar), em João, indica a ação de Judas (cf. 6,64.71; 12,4; 13,2.11; 18,2.5; 21, 20) e a entrega de Jesus ao tribunal e à morte (cf. 18.30.35; 19.11.16), mas também o ato supremo de Jesus, que nos entrega seu Espírito (19,30).

“Um dos doze.” A ênfase é posta no fato de que Judas é um dos doze. O leitor entende que ele mesmo, assim como eles, está sempre aberto à traição. E de muitas formas que não são fáceis de revelar. Contudo, o dom do pão surge precisamente por meio da nossa traição: a cruz é o escândalo em que a nossa recusa, surda e teimosa, se torna o seu dom, consciente e incondicional.

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