Subsídio elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF:
Dr. Bruno Glaab
Me. Carlos Rodrigo Dutra
Dr. Humberto Maiztegui
Me. Rita de Cácia Ló
Primeira Leitura: Isaías 52,7-10
Segunda Leitura: Carta aos Hebreus 1,1-6
Salmo: Sl 97,1-7
Evangelho: João 1,1-18
A perícope é escolhida para esta solenidade por destacar o tema da encarnação, como ponto de partida da obra terrena do Logos preexistente.
A afirmação “e a Palavra (Logos) se fez carne e habitou entre nós” (1,14) está no centro da cristologia joanina. O predicado “Logos” é encontrado apenas no prólogo do evangelho e ainda é retomado na expressão “o Logos da vida” em 1 Jo 1,1. Logos não aparece mais no evangelho, fazendo quem lê pressupor a preexistência de Jesus em todos os relatos que virão na sequência. Funciona talvez como “indicação de leitura”. É uma fórmula que vai além de todos os predicados cristológicos: Filho, Filho da Humanidade, Profeta, Cordeiro de Deus, e desenvolve uma perspectiva única.
v.2: “estava com Deus”, tem-se a impressão de que o evangelista usa a construção prós com acusativo para indicar uma relação dinâmica entre o Logos e Deus, isto é, “Palavra” que “se dirige” a Deus.
No AT, aparecem entrelaçadas a Palavra, a Sabedoria de Deus e a Lei. A Palavra de Deus tem uma força criadora: “Pela Palavra do Senhor foram criados os céus, e pelo alento de sua boca todos os astros” (Sl 33,6). “Por tua palavra tudo fizeste” (Sb 9,1). Precisamente isto é dito do Logos joanino: “Tudo foi feito por ela, e sem ela nada se fez” (Jo 1,3). Sem dúvida, este discurso é inspirado na história de criação de Gn 1, especialmente para a expressão “no princípio”.
Em relação a Deus, é atribuído ao Logos outros requisitos: ele estava perto Deus e ele era Deus.
Se, além disso, considerarmos os outros predicados: “Nela estava a vida e a vida era a luz dos seres humanos” (1,4), salta aos olhos a relação com a literatura sapiencial. Já no momento da criação, a Sabedoria personificada é retratada como arquiteta (Pr 8, 27-30), conselheira (Sb 4), artista (Sb 8,6), até criadora (Sb 7,12). A Sabedoria não é igualada a Deus, mas é vista como a força graças à qual Deus criou tudo.
Contra este pano de fundo sapiencial, o Logos torna-se o criador do universo, mas também a vida e a luz das pessoas (1,4). Em Sb 9, de Deus é dito não só que ele fez tudo pela sua Palavra, mas também que apetrechou os seres humanos de sua Sabedoria. Visto que a Sabedoria ensina todos os caminhos da virtude (Sb 8,7), está intimamente ligada à Lei divina.
O texto volta nossa atenção para o mundo humano, para o qual a Palavra de Deus é vida e luz, como Sabedoria que ilumina, vivifica e enche tudo de alegria, mas da qual as pessoas se afastaram incompreensivelmente. Finalmente, o evento que supera tudo é descrito: a encarnação do Logos, que armou sua tenda entre os seres humanos. Assim se abriu definitivamente a revelação de Deus e abriu-se o caminho da vida (1,18).
Com a afirmação: “E o Logos (a Palavra) se fez carne e habitou entre nós” (1,14), João vai além da ideia de um poder habitação espiritual pré-existente no mundo. A expressão “fez-se carne” não nos deixa dúvidas que João está pensando no homem Jesus Cristo, de carne e sangue, que apareceu entre a nós em determinado contexto histórico e nos revelou as fontes da Sabedoria de Deus. O termo sárks, “carne”, designa o elemento de fraqueza e caducidade humana. O Logos tornou-se perfeitamente solidário com o gênero humano.
Há um paradoxo na frase “e a Palavra se fez carne”. O texto apresenta o Logos na forma de um homem fraco e fugaz, que, no entanto, possui em si poderes salvadores. Fraqueza da carne e força do espírito estão paradoxalmente unidos. O Logos não encontrou acolhimento no mundo embora este tivesse sido criado por ele e fosse sua propriedade. Os seres humanos, a quem ele deveria trazer vida e luz, o recusaram.
O que se expressa aqui é uma mudança no modo de ser do Logos: antes ele estava “com Deus” (v.1), agora ele coloca sua tenda “entre nós” (v.14), na plena realidade da ‘carne”. O “tornar-se carne” da Palavra indica um ponto de virada e abre para os seres humanos a possibilidade de salvação.
A expressão cháris kaì alétheia: “graça e verdade”, corresponde ao hebraico hesed – ’aemet que expressa no AT o amor e a fidelidade de Deus a seu povo. A bênção desta presença divina é certamente experimentada (apenas?) pelos crentes, que alcançaram a plenitude da graça em virtude do testemunho daqueles que viram a glória do Encarnado (v.12-14b). O v. 13 destaca ainda mais o sentido da filiação divina: não é um nascer natural, mas nascer de Deus. A comunidade dos crentes professa a sua fé: “de sua plenitude todos nós recebemos graça por graça” (v. 16), um dom em lugar de outro, a nova revelação em lugar da antiga.
Do conjunto das Leituras, fica nítida a ideia de que o Verbo encarnado é o mediador, para os seres humanos, da existência da criação. Ele é o transmissor de tudo o que dá plenitude e sentido à sua existência particular: vida e luz. Os dois conceitos são intimamente relacionados entre si; mas, deles, o da ‘vida’ é o principal e a ‘luz’ o qualifica, colocando essa ‘vida’ sob um aspecto particular: a vida que estava no Logos significa, para a humanidade, luz.
O texto de Isaias é um cântico de júbilo que acolhe a boa notícia da chegada triunfante do Senhor. O centro da boa notícia é o anúncio do Reinado de Deus (v. 7), ou seja, da manifestação do Senhor como salvador e consolador do seu povo.
Na Epístola aos Hebreus (v. 3) encontramos o tema da igualdade da natureza do Pai e do Filho mediante a imagem da luz irradiada e da Palavra que “sustenta”, conserva existencialmente toda a criação.