A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 28º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 17,11-19.
“Mestre, tem compaixão de nós!” (Lc 17,13)
“...atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (Lc 17,16)
Jesus está a caminho, quase chegando à etapa final da viagem: Jerusalém. A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto misericordioso de Deus aos homens. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.
Entre Jesus e aquela estrada, que conduz a Jerusalém, há uma relação vital: Ele é o “autor” daquela estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à Cidade santa, à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.
Logo que Jesus entrou na aldeia, “dez leprosos” foram ao seu encontro. Pela narração do evangelista, temos a impressão de que não há mais ninguém na cena: Jesus parece estar sozinho com os leprosos. A aldeia se apresenta surpreendentemente vazia. É óbvio, os leprosos deviam estar separados e longe de todos.
Na verdade, a lepra era entendida como manifestação de uma condição de pecado.
Os leprosos, embora mantivessem a devida distância, vão ao encontro de Jesus, gritando.
Aqueles pobres miseráveis O buscam como o “misericordioso”: “Jesus, mestre, tem compaixão de nós!”.
É uma oração surpreendente, na qual o homem de Nazaré é chamado pelo próprio nome.
Jesus, por sua vez, pousa sobre eles o seu “olhar” e os envolve com tanta atenção e sedução, que os dez não hesitam, nem um momento sequer, em pôr em prática, com confiança, a ordem que lhes foi dada: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes”. Assim, Jesus se põe com eles na estrada da esperança, na estrada da experiência da solidariedade que cura e os acompanha, mesmo de longe, até aos sacerdotes.
A recuperação da saúde deles se torna também re-inserção na sociedade, no espaço familiar e na comunidade religiosa. Eles não serão mais rejeitados.
Dois sentimentos nobres são des-velados no relato deste domingo: a compaixão e a gratidão.
Dois sentimentos que se expressam como duas atitudes básicas na vida; por um lado, revelam a maturidade da pessoa e, por outro, tornam possível uma convivência harmoniosa e construtiva.
Mas, como toda arte, tais atitudes requerem um cuidado expresso e cotidiano. A partir do contexto e da situação em que cada um se encontra na vivência destes sentimentos nobres, sempre é possível dar passos nessa dupla direção, favorecendo conscientemente ser compassivos e agradecidos.
Considerados pecadores e condenados ao ostracismo, afastados de qualquer convivência social e de todo contato humano, com proibição expressa de se aproximarem de qualquer pessoa, os leprosos padeciam, esperando a morte, em colônias mais ou menos numerosas.
Compreende-se que, nessa situação, clamassem por compaixão. O ser humano sempre precisa que os demais “se coloquem em sua pele”, compreendam sua situação e seu comportamento. Mas essa necessidade se faz mais aguda quanto mais frágil e vulnerável se sente.
Esse é o significado profundo do termo “compaixão”: sentir com o outro e agir como consequência, buscando uma solução para a situação de extrema necessidade.
Jesus vive uma contínua travessia e sai ao encontro dos oprimidos e excluídos de todo tipo. Preocupa-se com todos os que encontra em seu caminho, sobretudo aqueles que estão atrofiados em sua vida. Sem a compaixão de Jesus, o relato seria impossível.
É da margem da exclusão que brotam os clamores por compaixão; e Jesus, com sua sensibilidade ativada, deixa-se afetar pelos gritos dos excluídos.
Os leprosos pedem compaixão a Jesus. Desejam ser compadecidos, perceber que sua desgraça não passa desapercebida e sentir o calor da compreensão de alguém significativo e com autoridade. Novamente, Jesus revela que só a compaixão não é suficiente e que permanecer na esfera dos sentimentos não soluciona o problema. Requer-se uma ação que ajude à pessoa a recuperar sua dignidade. Esta é a chave da misericórdia, ou seja, colocar o coração-ação na miséria humana e restaurá-la a partir de dentro.
A gratidão, por sua vez, tem a ver com nosso ser essencial, pois ativa o que há de melhor em nós.
Ela nasce do nosso eu profundo e flui por todos os membros, passa por todos os poros do nosso corpo. Não deixa sem tocar nenhuma parte do nosso ser. Abarca tudo o que somos e desperta o melhor que possamos imaginar ou que possamos aspirar.
No evangelho de hoje é, precisamente, alguém vindo de fora, desprezado pelos de dentro, o único que sabe reconhecer o dom recebido de Deus, dando uma magistral lição àqueles que não souberam agradecer.
Só um retornou para dar graças; só um se deixou levar pelo impulso vital da gratidão. Os outros nove (supõe-se que eram judeus), se sentiram na obrigação de cumprir o que a lei mandava: apresentar-se ao sacerdote para que lhe declarasse puro e pudesse ser reintegrado à sociedade. Para eles, voltar a fazer parte da instituição religiosa e social era a verdadeira salvação. Os nove voltam a submeter-se ao abrigo da instituição: vão ao encontro com Deus no templo e nos ritos. O Samaritano, no entanto, sentiu ser mais urgente voltar para agradecer. Foi aquele que se deixou conduzir pelo coração, porque, livre das ataduras da lei, se atreveu a expressar sua vivência profunda. Este, encontra a presença de Deus em Jesus. É mais importante responder vitalmente ao dom de Deus que o cumprimento de alguns ritos externos.
Pois, foi Deus mesmo quem, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensinou a “sermos gratuitos e gratos”.
A gratidão é um sentimento que enriquece as relações e eleva o “tom vital” da pessoa agradecida. Quem vive a gratidão manifesta um dinamismo aberto, cordial e animoso, praticamente imune ao desalento.
A gratidão nasce da vivência da gratuidade e caminha de mãos dadas com a aceitação de que tudo é dom. Quando se percebe que tudo é graça, não se pode viver sem agradecimento. E quando se vive em sintonia com a realidade, é possível dar graças por tudo o que dela provém, pois tudo traz uma mensagem e uma oportunidade.
O oposto ao reconhecimento da gratuidade é o narcisismo exigente e auto-referencial que se considera com “direitos” frente a tudo, numa postura egocentrada, incapaz de sair e si e dar valor ao que recebeu.
A gratidão possibilita fluir com a vida, permitindo que se expresse livre e adequadamente através de nós.
A gratidão é uma arte que pode ser alcançada na medida em que é ativada. E o melhor caminho para isso é “dar graças” por tudo. Tudo é graça, de graça; somos seres agraciados, cheios de graça...
Cabe a nós, enquanto seguidores de Jesus, pensar-sentir agradecidamente e ter gestos de gratuidade.
Cabe a nós falar agradecidamente. A expressão “muito obrigado” é das primeiras que se aprende quando alguém se inicia em outro idioma. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o “gratuito” marca a pessoa por inteiro.
A vida nova vem da vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
Criar um clima de ação de graças. Tudo é Graça.
Ponderar com muito amor tudo o que o Senhor fez por mim, por meio dos outros, da Criação e de minha história passada e presente. Como Ele me cumula de seus próprios bens. Tudo é dom de Deus; tudo foi criado por amor para mim (Deus providente).