"Ele faz surdos ouvir e mudos falar (v. 37). Na trama do evangelho de Marcos, para levar os discípulos a reconhecer que Jesus é o Messias, este milagre tem valor simbólico: é surdo-gago/mudo quem não é discípula/o. Em outras palavras, ouvir e falar livremente, é necessário tornar-se discípula/o. Não basta a palavra, é necessário um contato íntimo com aquele que cura. O contato é cada vez mais íntimo: dedo nos ouvidos, saliva na língua, palavra nos ouvidos. Tanto a saliva quanto a palavra saem da boca de Jesus para criar as condições necessárias para a fé. Só pode ser discípula/o quem tem intimidade com Jesus; só pode ser discípula/o quem deixa que Jesus coloque suas palavras nos ouvidos e na língua."
O subsídio é elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF:
Dr. Bruno Glaab
Me. Carlos Rodrigo Dutra
Dr. Humberto Maiztegui
Me. Rita de Cácia Ló
Edição: Prof. Dr. Vanildo Luiz Zugno
Primeira Leitura: Is 35, 4-7a
Salmo: 145, 7.8-9a.9bc-10
Segunda Leitura: Tg 2, 1-5
Evangelho: Mc 7, 31-37
O Evangelho de hoje inicia com um percurso muito estranho de Jesus: Saindo de Tiro, ele veio por Sidônia até o mar da Galileia, através dos territórios da Decápole (v. 31). Este trajeto seria como se alguém para ir do Rio de Janeiro a São Paulo passasse por Brasília, ou fosse de Porto Alegre a Pelotas e passasse por Passo Fundo!
Trouxeram-lhe um surdo e gago (v. 32). O surdo e gago (em algumas traduções, mudo) não se aproxima de Jesus e nem pede a cura, mas é trazido por pessoas anônimas. A surdez, na tradição profética (Is 42,18-19; Jr 5,21; Ez 12,2), é símbolo da resistência à mensagem de Deus. Neste evangelho, semelhantemente, ela é relida como símbolo de resistência a ouvir o anúncio e a proclamar a boa nova.
Levando-o em particular, para longe da multidão (v. 33a). No evangelho de Marcos, a expressão "em particular" é aplicada sempre aos discípulos (4,34; 6,31-32; 9,2.28; 13,3): quando necessário para dissipar dificuldades provocadas por seu ensinamento, Jesus explica tudo novamente a seus discípulos “em particular”, isto é, separadamente e de forma exclusiva. Mas o que é ensinado “em particular” serve para fortalecer os discípulos na sua missão. Por isso, o mal que pode afligir a comunidade e o discípulo é não proclamar a boa nova a todos os povos.
No v. 33b, Jesus põe seus dedos nos ouvidos do surdo-gago, cospe na língua dele, ora e dá uma ordem. O gesto de cuspir na língua do surdo-gago/mudo, para nós, é algo estranho e, para alguns, até nojento. Na Antiguidade, porém, a saliva era considerada um elemento medicinal, ainda mais a saliva de um profeta. Ou seja, trata-se de uma ação que deve ser lida no conjunto dos ritos de cura do mundo antigo.
O gesto curandeiro de Jesus produz seu efeito e o rapaz começa a ouvir e a falar com desenvoltura. Não obstante, Jesus recomendou-lhes que não dissessem nada a ninguém (v. 36). Como em diversas ocasiões, o Jesus de Marcos ordena que não se divulgue por aí o que ele faz. É o chamado “segredo messiânico”.
Por que essa mania de segredo? O evangelho não nos responde. Aliás, já desde 1,1 estamos cientes do messianismo de Jesus. No evangelho de Marcos, vários títulos judaicos são dados a Jesus, mas, nenhum título é suficientemente denso para exprimir o real significado de Jesus de Nazaré. A finalidade desse “segredo messiânico" parece ser o seguinte: corrigir progressivamente a falsa ideia que os judeus e os discípulos tinham em relação ao Messias. Com efeito, a revelação de quem Jesus realmente é só será concluída e plena após sua morte e ressurreição, isto é, somente após a experiência pascal os discípulos compreenderão perfeitamente quem é Jesus: sua pessoa, sua obra, sua doutrina. Por isso, a ordem de silêncio está unida à cruz e à ressurreição.
Ele faz surdos ouvir e mudos falar (v. 37). Na trama do evangelho de Marcos, para levar os discípulos a reconhecer que Jesus é o Messias, este milagre tem valor simbólico: é surdo-gago/mudo quem não é discípula/o. Em outras palavras, ouvir e falar livremente, é necessário tornar-se discípula/o. Não basta a palavra, é necessário um contato íntimo com aquele que cura. O contato é cada vez mais íntimo: dedo nos ouvidos, saliva na língua, palavra nos ouvidos. Tanto a saliva quanto a palavra saem da boca de Jesus para criar as condições necessárias para a fé. Só pode ser discípula/o quem tem intimidade com Jesus; só pode ser discípula/o quem deixa que Jesus coloque suas palavras nos ouvidos e na língua.
Na primeira leitura, o profeta Isaias (35,4-7a) anuncia a chegada de YHWH como o go’el de Israel. No Antigo Testamento, a palavra go’el significa, primeiramente, “resgatador”. Trata-se de um parente próximo (irmão, primo, tio) que tem vários encargos, entre eles, casar-se com a viúva de seu parente, para suscitar uma descendência ao falecido (cf. o caso de Booz e Rute); resgatar uma propriedade da família, caso tal propriedade (casa ou campo) tenha sido tomada como pagamento de uma dívida e socorrer um parente que sofre violência.
No Antigo Testamento, YHWH é chamado de “o go’el de Israel”, porque ele vem resgatar Israel da escravidão e humilhar os inimigos de seu povo. Por isso o profeta proclama “Coragem! Não temais” (v. 4) e “Vosso Deus vem salvar-vos” (v. 5). A chegada de YHWH e sua atividade como go’el do povo humilhado é motivo para recobrar a coragem e a esperança, porque ele fará acontecer uma realidade nova: desaparecerão as enfermidades e as deficiências físicas (vv. 5-6a), “o sertão vai virar mar” (vv. 6a-7a), será expulso tudo o que é ameaçador (v. 7b). O juízo de YHWH será contra os inimigos do seu povo.
Hoje
Vemos como este anúncio profético é atual: o profeta nos convida a acreditar que YHWH sabe muito bem que, por causa do desrespeito à dignidade humana, o povo sofre. O profeta nos convida a esperar: nosso Deus é o Deus da vida e não deixará de se vingar dos que promovem o sofrimento e a morte.