07 Setembro 2012
Somos, hoje, convidados a realizar o que, na verdade, somos. Não é apenas por termos sido batizados e confirmados que somos discípulos de Cristo. Pode ser que nos tornamos em surdo-mudos na Igreja, recusando ouvir a Palavra de Deus, para proclamá-la nós mesmos ao mundo de hoje.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 23° Domingo do Tempo Comum (9 de setembro de 2012). A tradução é de José Jacinto Lara.
Eis o texto.
Referências Bíblicas:
1ª leitura: Is 35,4-7a
2ª leitura: Tg 2,1-5
Evangelho: Mc 7,31-37
Na 1ª leitura de hoje, o profeta Isaías, no séc. 6º a.C, por ocasião do Exílio, anuncia ao povo de Isarel que Deus não os esqueceu. Que vem Ele próprio salvá-los e que os sinais de sua volta ao país será sinais de alegria, de cura, de abundância, de vida nova, de ressurreição. Será um novo Êxodo, promete Deus. Os exilados não acreditavam mais em sua libertação, estavam cegos aos sinais dos tempos, surdos às promessas dos profetas, paralisados, imersos no desespero. Eis porque Isaías lhes diz: «Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos, assim como brotarão águas no deserto e jorrarão torrentes no ermo» (Is 35,5-6).
Ao ler o evangelho de Marcos podemos nos perguntar: o Jesus de Marcos realiza a profecia de Isaías? «Ele tem feito bem todas as coisas: asos surdos fez ouvir e aos mudos falar» (Mc 7,3). Com efeito, Jesus ressuscitado cumpre a promessa de Isaías, abrindo o ser humano, incapaz de ouvir a Palavra e incapaz de professá-la sem gaguejar. É o sentido mesmo do milagre narrado por Marcos. Mas, atenção, não façamos um leitura literal do texto. Isto seria reduzir a mensagem evangélica veiculada por Marcos. Que mensagem é esta?
Para compreender melhor o relato do Marcos é preciso situá-lo no seu evangelho. No capítulo 7, São Marcos nos faz passar à outra margem do Mar da Galiléia, ou seja, ao território pagão. Assim sendo, o anúncio da Boa Nova não se destina apenas a um povo particular. Cristo veio estendê-la a toda a humanidade. No relato de hoje, São Marcos nos mostra a dificuldade de fazer entrar na Igreja do séc. I, um pagão, surdo à Palavra de Deus e mudo, mais do que gago, ou seja, incapaz de proclamá-la corretamente. Não devemos compreender esta cura unicamente em sentido literal, mas, antes, no sentido espiritual. Encontramos aí 5 partes:
1. A mediação: os outros é que levam a Jesus o surdo-mudo, para que lhe imponha as mãos (Mc 7, 33).
2. O encontro: O encontro com Cristo é feito privadamente, a sós os dois: «Jesus afastou-se com o homem para fora da multidão» (Mc 7, 33).
3. A nova criação: Jesus toca o surdo-mudo. Colocou o dedo em seus ouvidos, cuspiu e, com saliva, tocou a língua dele (Mc 7,33b). Trata-se de recriar, de permitir a comunicação.
4. A abertura: Mediante uma palavra aramaica (Efata! Abre-te!) Jesus restabelece a comunicação do homem com Deus e com os outros. Abrir, quer dizer, havia fechamento. Uma prisão em que o homem estava encerrado. Por sua própria saliva, posta na língua, cloca Jesus a sua própria Palavra, dando-lhe a missão de ir, por sua vez, transmtí-la ao mundo: Eis a cura!
5. Uma vez restabelecida a comunicação, o homem pode ouvir e proclamar a Palavra: «Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais recomendava, mais eles divulgavam» (Mc 7,36). Após presenciar uma tal transformação, uma tal cura, não é mais possível ficar calado.
Na 2ª leitura do domingo passado, São Tiago evocava a ajuda levada aos desprovidos (órfãos e viúvas) como sendo o critério da vida religiosa. Hoje, ele não poupa palavras para lembrar aos cristãos de sua época que, acreditando no Cristo Jesus, toda pessoa é digna de igual respeito e dignidade, seja qual for a sua situação social. O exemplo dado por ele não é certamente imaginário, pois o mesmo ainda ocorre em nossos dias. Ricos e pessoas importantes existem na igreja de Tiago e também na nossa. Como reagimos? São Tiago nos diz: «Vós dedicais atenção ao que está bem vestido, dizendo-lhe: ‘Vem, senta-te aqui, à vontade!’, ao passo que dizeis ao pobre ‘Fica aí de pé’, ou então: ‘Senta-te aqui no chão aos meus pés’" (Tg 2,3).
São Tiago interpela os judeus cristãos do seu tempo a se relacionarem melhor com os pobres. Três mensagens decorrem de suas palavras:
1. Sem discriminação: Não fizestes então discriminação entre vós? E não vos tornastes juízes com critérios injustos? (Tg 2,4).
2. Deus se identifica com os pobres: «Não escolheu Deus os pobres deste mundo, para serem ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que amam?» (Tg 2,5). Isto significa que Tiago conhecia a Bem-aventurança dos pobres (Mt 5,3 e Lc 6,20) e o Julgamento final das nações relativo aos pobres (Mt 25).
3. Interpelação da Igreja: Se isto não significa isto que, tanto a Igreja do séc. 1º quanto a do séc. 20, não é lugar em que se possa viver sem o valor evangélico da igualdade entre ricos e pobres e a dignidade de uns e de outro, onde viveremos? Sobre este tema eis uma bela reflexão do 4º século, escrita por São João Crisóstomo: "Não julgamos suficiente para o cumprimento de nossa salvação apresentar na mesa sagrada um cálice rico em pedrarias, após haver despojado as viúvas e os órfãos... Quereis honrar o Corpo do Senhor? Não o desdenhais quando o vedes coberto de andrajos; após terdes orado na igreja vestidos se seda, não o deixais fora, despidos e passando frio... Uma vez mais, Deus necessita não de cálices de ouro mas de almas de ouro... Que importa que a mesa de Cristo cintile com cálices de ouro, se ele próprio morre de fome? Aliviai primeiro as suas necessidades; depois, com o que vos restar, enriquecei como desejardes a sua mesa. E então? Ofereceis um cálice de ouro e vos recusais a dar um copo d’água? Assim sendo, ao decorardes a casa de Deus, não desprezeis o vosso irmão indigente. O templo deste irmão é mais precioso que o de Deus”.
Terminando: somos hoje convidados a realizar o que, na verdade, somos. Não é apenas por termos sido batizados e confirmados que somos discípulos de Cristo. Pode ser que nos tornamos em surdo-mudos na Igreja, recusando ouvir a Palavra de Deus, para proclamá-la nós mesmos ao mundo de hoje. O cardeal italiano Carlo Maria Martini, falecido em 31 de agosto passado, dizia: A Igreja está fatigada. Nossa cultura envelheceu, nossas igrejas são vastas, mas estão vazias e o aparelho burocrático da Igreja está crescendo. Nossos ritos e hábitos são pomposos. Encontramo-nos na situação do jovem rico que se afasta, cheio de tristeza, quando Jesus o chama a tornar-se seus discípulo». Martini nos diz, no fundo, que perdemos o sentido da missão; não ouvimos a Palavra e tornamo-nos incapazes de proclamá-la. E assim se deixa de cumprir a missão da Igreja. O exegeta Hyacinthe Vulliez diz: «Escreve o evangelista que, antes de curar o surdo-mudo, Jesus elevou os olhos ao céu e suspirou. Eu imagino que foi um longo suspiro, pois é difícil abrir os ouvidos para que verdadeiramente entendam e dar uso da palavra para que falem de verdade».
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