Jesus diz a cada um de nós: “Abre-te!”

03 Setembro 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 23º Domingo do Tempo Comum, 5 de setembro de 2021 (Marcos 7,31-37). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o comentário.

 

Jesus deixa a região de Tiro e, passando pelo território de Sidon, vai além do lago de Tiberíades, no território da Decápole. A sua viagem para fora da Galileia, da terra santa, rumo a regiões habitadas por pagãos, tem um significado preciso: Jesus não atua como missionário em meio aos pagãos, porque, segundo a vontade do Pai, a sua missão se dirige ao povo de Israel, o povo das alianças e das bênçãos (cf. Mt 10,5-6; 15,24); mas ao encostar ou atravessar rapidamente terras impuras, ele quer quase profetizar aquilo que acontecerá depois da sua morte, quando os seus discípulos se dirigirão aos gentios, levando-lhes a boa notícia do Evangelho.

Cercado por 12 homens e algumas mulheres, Jesus abre caminho ensinando aos discípulos e vivendo uma distância em relação às multidões de ouvintes da Galileia: isso permite a ele e ao seu grupo uma certa vida recolhida, íntima, mais apta à formação dos discípulos e a uma transmissão mais eficaz da palavra viva e eterna de Deus.

Nessa terra pagã, Jesus já havia curado a filha de uma mulher siro-fenícia, pertencente aos gentios, portanto totalmente pagã. Ele havia oposto uma recusa inicial à súplica da mulher, mas depois a insistência e a inteligência dela o haviam impelido a fazer a cura e a salvar a filha dela da morte (cf. Mc 7,24-30).

Agora, um surdo balbuciante é apresentado a Jesus, com a súplica para que ele realize o gesto que comunica a bênção, as energias salutares de Deus: a imposição das mãos. Esse homem levado a Jesus experimenta uma grave malformação física que também é simbólica, verdadeira imagem da condição dos pagãos: de fato, ele está impossibilitado de escutar a palavra de Deus e, portanto, de repeti-la aos outros. Ele busca e tenta louvar, confessar a Deus, mas não consegue plenamente, não tendo recebido a revelação. Mas também é um homem malformado nas faculdades da comunicação de um ponto de vista humaníssimo: não pode falar com clareza, nem pode escutar, portanto está condenado a um doloroso isolamento.

Jesus, então, também encontra esse homem: querendo libertá-lo do mal, leva-o à parte, para longe da multidão, e, com as suas mãos, age sobre aquele corpo diferente do seu, o corpo de um homem doente. Põe os seus dedos nos ouvidos, quase para abri-los, para circuncidá-los e torná-los capazes de escuta, de modo que esse homem é tornado como que o servo do Senhor descrito por Isaías: um homem ao qual Deus abre os ouvidos todas as manhãs, para que possa escutar a sua palavra sem obstáculos (cf. Is 50,4-5).

Depois, Jesus pega com os dedos um pouco da própria saliva e toca-lhe a língua: é um gesto audaz, equivalente a um beijo, em que a saliva de um se mistura com a do outro. Há algo de extraordinário nesse “fazer de Jesus”: com as suas mãos, Jesus toca os ouvidos, abre a boca do outro para nela colocar a sua saliva, faz gestos de grande confiança, quase para despertar os sentidos corporais e assim fazer o sentido da vida voltar para eles...

Essa gestualidade manual de Jesus, que cria contato com o doente, é de uma penetração extraordinária, revela a sua compaixão que se faz carícia, cuidado, confiança, contato com quem está no sofrimento. Nenhuma reserva de imunidade da parte de Jesus, mas comunidade, comunhão experimentada e vivida concretamente!

A ação de Jesus é acompanhada por uma invocação dirigida a Deus: ele olha para o céu e solta um gemido, que indica ao mesmo tempo a sua participação no sofrimento e a invocação da salvação. Jesus geme em nome de toda a criação, de todas as criaturas enredadas no sofrimento, na doença, na morte, e o seu gemido é o do Espírito que sobe das criaturas como intercessão a Deus (cf. Rm 8,22-23).

Aqui se mostra a capacidade de solidariedade de Jesus, que con-sofre com o sofredor, entra em empatia com quem está doente e se coloca ao seu lado para invocar a libertação.

Tudo isso é acompanhado por uma palavra pronunciada com força por Jesus: “Efatá, abre-te!”, que é muito mais do que um mandato aos ouvidos e à língua, mas é dirigida a toda a pessoa. “Efatá, abre-te!”: palavras extraordinárias e eficazes na boca de Jesus, palavras que não por acaso ressoavam no antigo rito batismal em Roma, quando, com um dedo embebido em saliva, tocavam-se as orelhas, as narinas e a boca do neófito, habilitando-o à vida nova em Cristo e ao exercício dos sentidos espirituais.

Abrir-se ao outro, aos outros, a Deus não é uma operação automática: é preciso aprendê-la, é preciso exercitar-se nela, e só assim podem ser percorridos caminhos humanos terapêuticos, que também são sempre caminhos de salvação espiritual.

Assim Jesus nos ensina que toda a nossa pessoa, o nosso próprio corpo deve estar comprometido no encontro e no cuidado do outro: não bastam os pensamentos e sentimentos, não bastam as palavras, mesmo que sejam as mais adequadas e santas: é preciso o encontro das carnes, dos corpos, para poder vislumbrar uma cura existencial que vai sempre além da meramente física, uma cura que abre à comunhão.

E eis que aquele surdo balbuciante é curado, escuta corretamente e fala sem obstáculos! No entanto, Jesus o manda de volta para casa e pede-lhe que se cale, assim como ordena que aqueles que viram não divulguem o que aconteceu. No entanto, aqueles pagãos, que não esperavam nem o Messias nem o Profeta escatológico, embora não pudessem chegar a uma confissão de fé, são forçados de algum modo a proclamar, com base na evidência dos fatos: “Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar!”.

Poderíamos traduzir essa exclamação daquelas pessoas não judias deste modo: “Jesus é verdadeiramente um homem bom!”. Ainda não é fé, mas já é um reconhecimento do amor, a ação de crer no amor de Jesus.

Quanto aos fiéis judeus, essa ação de Jesus devia ser lida por eles como o cumprimento da profecia escatológica de Isaías: “Então a língua dos balbuciantes (moghiláloi, o mesmo termo grego presente em Mc 7,32) gritará de alegria!” (Is 35,6 LXX).

Certamente, esse relato desperta a nossa responsabilidade como discípulos e discípulas de Jesus, chamados a renovar e atualizar de novo a sua ação libertadora. De fato, devemos realizar a diakonía do lógos, da palavra, o que não significa apenas anunciá-la, mas despertá-la naqueles que estão impedidos em relação a ela.

Por que nas nossas Igrejas não damos a palavra a quem se esforça para falar? Por que não os autorizamos a uma autêntica ação de tomar a palavra? Por que não temos a paciência para escutar quem fala com dificuldade? Por que as nossas igrejas não são lugares de “logoterapia”, tão necessária nas nossas assembleias, muitas vezes mudas? Por que não ajudamos, até curar, quem é balbuciante na fé e na vida cristã?

Efatá, abre-te!” é um convite que devemos ouvir como palavra do Senhor dirigida aqui e agora a cada um de nós. Ao mesmo tempo, é um convite que nós mesmo podemos e devemos dirigir aos outros, para que floresça a comunicação; da comunicação à partilha; da partilha à comunidade; da comunidade à comunhão. Esses são itinerários eclesiais mais urgentes do que nunca!

 

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