"Em tempos de tanto obscurantismo, também hoje nós enfrentamos oposição quando anunciamos o Deus de Jesus Cristo. Certamente há quem prefira a erudição e a oratória de líderes religiosos inescrupulosos, moralistas de plantão, que só buscam os próprios interesses. Mas a gente segue anunciando, ainda que nos digam: 'Que sabedoria é essa? Quem é esse que nos fala?'. Mesmo desacreditados, atuamos como os profetas anunciando com a própria vida que Deus é amor; é o Deus dos fracos e dos pequeninos e não um deus fechado em legalismos e rituais estéreis."
A reflexão é de Solange Maria do Carmo, teóloga leiga. Ela possui graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE/BH e graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas. É mestre em teologia bíblica e doutora em Catequese pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE/BH. É co-autora da Coleção Catequese Permanente, pela Editora Paulus. Atualmente é professora no Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa da PUC-Minas e no Instituto Santo Tomás de Aquino - ISTA.
Leituras do dia
1ª Leitura: Ez 2,2-5
Salmo: 122, 1-2a.2bcd.3-4
2ª Leitura: 2 Cor 12, 7-10
Evangelho: Mc 6, 1-6
“Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E suas irmãs não estão aqui conosco?”
No Evangelho de Marcos, capítulo 6, versículo 3, Jesus é identificado como o carpinteiro, o filho de Maria. Na pequena Nazaré onde todos se conheciam, as referências profissional e familiar eram suficientes para dizer quem é Jesus. Não era um levita ou um saduceu, cuja função era cuidar da liturgia e do culto. Não era um fariseu ou um doutor da Lei, dedicado ao estudo e ensino das Escrituras. Não era um rabino com uma escola teológica que levava seu nome. Nem era um zelota, empenhado na libertação de Israel por meio de atitudes violentas. Não. Jesus é um Zé Ninguém, alguém do povo, que se distingue pelo labor das mãos, cuja profissão fora provavelmente herdada do pai (cf. Mt 13,55). É também o filho de Maria e irmão de Joset, Judas e Simão e tem também umas irmãs, cujos nomes não são citados. Quanto a esses irmãos e irmãos, nos absteremos de tentar explicá-los, esbarrando no dogma da virgindade de Maria. Como o texto tem interesses cristológicos e não mariológicos, não nos preocuparemos com esses dados que especulam se esses nomes citados eram de irmãos de Jesus ou seus primos e parentes próximos, para averiguar se Maria teve mais filhos além de Jesus ou não.
Voltemos ao que nos interessa. Numa sociedade patriarcal, cujas referências estão centradas no varão, no pai de família e senhor do clã, é no mínimo estranho que Marcos não cite o nome de José, como faz Lucas 4,22, mas nos diga quem é Jesus pela relação com a mãe e não com o pai. Certamente, Marcos faz referência a um texto que ele já registrou no capítulo 3. A mãe de Jesus e seus irmãos estão à sua procura, pois ele, feito louco, já não tem tempo nem para comer. Preocupada com o filho, a mãe vai ao seu encalço e o encontra cercado de gente por todos os lados.
Ao saber que sua mãe e seus irmãos o procuram, Jesus responde que sua mãe e seus irmãos são todos aqueles que fazem a vontade de Deus. Assim declara superados os laços familiares biológicos e amplia o conceito de família, passando da consanguinidade para os interesses do Reino. Trata-se da família escatológica, daqueles e daquelas que aceitam o convite ao seguimento de Jesus e desenvolvem laços afetivos e efetivos para além dos que são impostos pela genética.
Como os seus conterrâneos de Nazaré ainda não entenderam o que dissera em Mc 3 sobre a ampliação desses laços familiares, eles insistem em procurar as fontes da sabedoria de Jesus na sua ascendência ou na sua profissão. Se fosse um escriba ou fariseu, teria autoridade para ensinar daquele jeito. Se fosse filho de um rabino, traria as marcas da escola de seu pai. Mas não.
Como um carpinteiro, filho de uma jovenzinha simples e sem credenciais religiosas, poderia possuir tanta sabedoria? Como aquele menino que viram crescer entre os seus, brincando nas ruas e chapinhando nas poças d’águas em tempo de chuva, poderia ter algo a ensinar? Como um trabalhador braçal, que lavrava as roças, carpia os campos, fazia as colheitas, consertava os telhados e fabricava objetos de madeira poderia ser sábio daquele modo?
Iludidos pelo saber intelectual e formal, rejeitaram a sabedoria da vida. Mostraram-se chocados com seus ensinamentos – certamente na contramão do judaísmo legalista de seu tempo – e preferiram continuar com os velhos conceitos religiosos, elitistas e separatistas, que era domínio de poucos. Era demais para eles, a novidade da revelação divina trazida por Jesus. Ele não representava o deus conhecido pregado nas sinagogas: um deus que retribui o bem com o bem e o mal com o mal; um deus legalista e justiceiro preocupado com pequenos detalhes do código de pureza. A teologia de Jesus revelava um Deus que é Pai, amoroso e compassivo, que se importa com os pequenos, como pode ser visto nos relatos que antecedem essa perícope. Jesus curou a filhinha de Jairo, a mulher hemorroísa, o possesso de Gerasa. Ele estendeu as mãos para os doentes, os fracos e os marginalizados de seu tempo; tocou nos leprosos, libertou possessos. Fazia no sábado o que era aparentemente proibido pela Lei. Realmente, somente quem enxerga além do legalismo institucionalizado pode despertar interesse pela pregação de Jesus e pelo Reino que ele anunciou.
Segundo Marcos, Jesus reagiu à incredulidade dos nazarenos, mas não se deixou abalar. Sabendo que os profetas também não foram acolhidos em sua própria terra, colocou-se na esteira desses seus antecessores injustiçados e perseguidos. Em vez de discutir, entrar em confronto ou participar de disputas teológicas inúteis, Jesus seguiu seu caminho, percorrendo outras regiões, fazendo o bem e ensinando. Afinal, a boa-nova do Reino precisa ser espalhada, mesmo contra toda oposição de grupos privilegiados que manipulam a consciência do povo.
Em tempos de tanto obscurantismo, também hoje nós enfrentamos oposição quando anunciamos o Deus de Jesus Cristo. Certamente há quem prefira a erudição e a oratória de líderes religiosos inescrupulosos, moralistas de plantão, que só buscam os próprios interesses. Mas a gente segue anunciando, ainda que nos digam: “Que sabedoria é essa? Quem é esse que nos fala?”. Mesmo desacreditados, atuamos como os profetas anunciando com a própria vida que Deus é amor; é o Deus dos fracos e dos pequeninos e não um deus fechado em legalismos e rituais estéreis.