O nascimento da filosofia. Proposta para um novo horizonte. Artigo de Alexandre Francisco

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25 Março 2024

"Será que a humanidade está disposta a renunciar ao poder, a ambição, a destruição do planeta, a religião que cria conflitos, do cientificismo que extermina em massa, em prol da uma vida comunitária e em plena consonância com a natureza terrestre? Algumas civilizações antigas já mostraram ser possível. Cabe a nós escolhermos qual será nosso futuro", escreve Alexandre da Silva Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Eis o artigo.

A presente análise se constrói através da leitura do livro Filosofia: Antiguidade e Idade Média – Vol. I de Dario Antiseri e Giovanni Reale.

A filosofia, segundo os autores, teve na Grécia seu berço, isto é, a maneira lógico-racional do pensamento sistemático para explicar fenômenos naturais, a relação do homem com o mundo, dentre outras. Hoje em dia, há estudos mais aprofundados que buscam verificar se a filosofia grega pode ter sido influenciada por outros povos, tanto do continente africano, os egípcios, como do oriente, como afirmam “Antes de Alexandre, não nos consta que tenham podido chegar à Grécia doutrinas dos indianos ou de outros povos da Ásia, nem nos consta que, na época em que nasceu a filosofia na Grécia, houvesse gregos em condições de compreender o discurso de um sacerdote egípcio ou de traduzir livros egípcios” [1].

Para os autores, é historicamente demonstrado que os povos orientais com os quais os gregos entraram em contato possuíam, sim, uma forma de “sapiência”, feita de convicções religiosas, mitos teológicos, e “cosmogônicos”, mas não uma ciência filosófica baseada na pura razão (no logos, como dizem os gregos). Ou seja, possuíam um tipo de sapiência análoga àquela que os próprios gregos possuíam antes de criar a filosofia [2].

Sabe-se que os gregos herdaram, de fato, conhecimentos matemáticos e geométricos dos egípcios, dos babilônios, conhecimentos astronômicos, e dos orientais, conhecimentos científicos. Portanto, não é de todo improvável que a filosofia também pudesse ter sido influenciada por outros povos.

Tais estudos foram aprimorados pelos gregos, indo muito além de objetivos meramente práticos, de utilizar a geometria para medir campos para cultivo de alimentos, como faziam os egípcios, por exemplo. Os gregos elevaram a essas práticas a densidade teórica, através de seu amor pelo puro conhecimento.

Para além, os gregos também utilizaram das artes, do mito e da religião para entender o ser humano de forma externa e interna, criando no bojo dessa mistura, sua filosofia. “A arte visa alcançar, de forma mítica e fantástica, ou seja, mediante a intuição e a imaginação, os objetivos que são próprios também da filosofia” [3].

As tragédias gregas exerciam função extremamente importante na cultura helênica. Constata-se que os poemas de Homero, como a Ilíada, e a Odisseia, tiveram peso semelhante àquela que a Bíblia exerceu nos judeus, tendo em vista que na Grécia não havia textos sagrados.

Os gregos mostram que é possível uma civilização inteira baseada viver espiritualmente preenchida através da prática de arte e cultura. “A poesia de Homero não se limita a narrar uma séria de fatos, mas busca também suas causa e razões (embora em âmbito mítico-fantástico. A ação em Homero “não se desdobra como fraca sucessão temporal: vale para ela em cada ponto, o princípio de razão suficiente, cada evento recebe rigorosa motivação psicológica” (W.Jaeger). E nesse modo poético de ver as razões das coisas, prepara aquela mentalidade que em filosofia conduzirá à busca da “causa” e do “princípio”, do “porquê” último das coisas [4].

A influência dos mitos e da arte na formação da filosofia grega, como discutido no texto, é crucial para entendermos o contexto em que Nietzsche desenvolveu sua concepção sobre o nascimento da tragédia. Assim como os gregos antigos buscavam compreender o mundo através da arte, do mito e da religião, Nietzsche argumenta que a tragédia grega não era apenas uma forma de entretenimento, mas uma expressão profunda da visão de mundo daquela sociedade. Nietzsche introduziu os conceitos de Apolíneo e Dionisíaco para descrever as forças primordiais que ele via como fundamentais na tragédia grega. O Apolíneo representa a razão, a forma, a beleza, a ordem e a individualidade, enquanto o Dionisíaco representa o instinto, o caos, a natureza irracional e coletiva, e a dissolução das fronteiras do eu. Para Nietzsche, a tragédia não só refletia as tensões e contradições fundamentais da existência humana, mas também servia como um meio de afirmar a vida em toda a sua complexidade, incluindo o sofrimento e a dor. Nesse sentido, o surgimento da tragédia grega pode ser visto como parte de um movimento mais amplo em direção à reflexão filosófica sobre as questões fundamentais da existência humana, um movimento que Nietzsche viu como culminando na filosofia trágica de seus próprios escritos.

Posteriormente Hesíodo, com sua teogonia, que descreve o nascimento de todos os deuses, trouxe uma explicação mítico-poética e fantástica da gênese do universo e seus fenômenos cósmicos. O poema “Os trabalhos e os dias” também constituem parte dos escritos de Hesíodo que ajudaram a criar na mentalidade grega o pensamento ético, e a justiça.

Concernente a religião, os deuses gregos nada mais são do que forças naturais personificadas em formas humanas idealizadas, ou são forças e aspectos do homem sublimados e sedimentados em esplêndidas semelhanças antropomórficas. Zeus é a representação da justiça, Atenas da inteligência, Afrodite do amor, e assim por diante.

Nesse sentido, esses deuses, são, portanto, homens amplificados e idealizados, e portanto diferente do homem comum somente por quantidade, e não por qualidade. Por isso, os estudiosos classificam a religião pública dos gregos como uma forma de “naturalismo”, pois ela não exige que o homem mude a própria natureza, ou seja, que se eleve acima de si mesmo, mas, pelo contrário, que a siga.

Nesse ponto, podemos recorrer aos estudos de Sigmund Freud, especialmente sua teoria sobre o inconsciente e os processos psíquicos. É evidentemente claro que Freud utilizou-se das tragédias gregas para construir seus vastos estudos no campo da psicanálise.

Assim como os gregos antigos criaram mitos e personificações dos fenômenos naturais para dar sentido ao mundo ao seu redor, Freud argumentou que os mitos e as narrativas simbólicas têm um papel fundamental na formação das nossas psiques. Segundo Freud, o inconsciente é composto por conteúdos reprimidos e desejos instintivos, que se manifestam por meio de símbolos e imagens presentes em sonhos, fantasias e lapsos freudianos. Ao analisar essas manifestações, Freud identificou dois princípios fundamentais que regem a mente humana: o princípio do prazer, representado pelo instinto de busca pelo prazer imediato, e o princípio da realidade, que impõe limites e regulações às nossas ações em relação ao mundo externo.

Ao aplicarmos a perspectiva freudiana à compreensão dos mitos gregos, podemos enxergar os deuses como representações simbólicas dos impulsos e conflitos humanos. Por exemplo, Zeus, o deus do trovão e do raio, pode ser interpretado como uma personificação dos instintos primordiais e das forças da natureza que estão presentes no inconsciente coletivo. Da mesma forma, Atenas, deusa da sabedoria e da estratégia, pode ser vista como uma projeção dos desejos humanos por conhecimento e direção.

Assim como os gregos viam seus deuses como reflexos amplificados de si mesmos, Freud argumentaria que essas divindades representam aspectos internalizados da psique humana, projetados no mundo exterior. Essa interpretação permite uma compreensão mais profunda da forma como os mitos gregos contribuíram para a formação da identidade e da cultura helênicas, e nos permite também traçar um paralelo com os estudos da modernidade, em que o mito dá lugar a explicação dos fenômenos pela racionalidade.

Tudo mudou na Grécia com a chegada do orfismo, que introduziu na sociedade helênica um novo esquema de crenças. Enquanto a tradicional concepção grega, a partir de Homero, considerava o homem mortal e punha o fim total da sua existência justamente com a morte, o orfismo problema a imortalidade da alma e concebe o homem segundo o esquema dualista que contrapõe o corpo à alma.

Surge então a ideia dos prêmios e dos castigos do além-túmulo, nasceu evidentemente para eliminar o absurdo que com frequência se constata sobre a terra, isto é, que os virtuosos sofrem e os viciados gozam. Eis aqui a visão que vai ser a semente da filosofia socrática-platônica, e que posteriormente germinará no cristianismo.

Nesse sentido, o pensamento socrático-platônico representa uma das culminâncias dessa evolução filosófica. Sócrates, um dos mais importantes filósofos da Grécia antiga, foi fundamental na transição do pensamento mítico para o racional. Sua abordagem filosófica, caracterizada pelo questionamento sistemático das crenças e valores aceitos, buscava a verdade através do diálogo e da investigação crítica. Sócrates argumentava que o autoconhecimento e a busca pela virtude eram essenciais para uma vida bem vivida, e sua influência foi significativa na formação do pensamento filosófico subsequente.

Platão, discípulo de Sócrates, expandiu e desenvolveu muitas das ideias de seu mestre em sua própria filosofia. Em suas obras, Platão explorou uma ampla gama de temas, incluindo ética, política, metafísica e epistemologia. Ele também introduziu conceitos fundamentais, como a teoria das ideias ou formas, que postula a existência de um mundo de realidades perfeitas e imutáveis além do mundo sensível. Para Platão, a realidade percebida pelos sentidos era apenas uma sombra ou imitação imperfeita das formas ideais, e a verdadeira sabedoria residia na contemplação dessas formas.

Platão descobrirá e procurará demonstrar que a realidade ou o ser não é de um gênero único e que, além do cosmo sensível, existe também uma realidade inteligível e transcendente ao sensível e, portanto, descobrirá aquela que mais tarde será chamada metafísica (estudo das realidades que transcendem as realidades físicas). Essa descoberta levará Aristóteles a distinguir física verdadeira e própria como doutrina da realidade física de uma metafísica, exatamente como doutrina da realidade suprafísica, e a física passará assim a significar estavelmente ciência da realidade natural e sensível.

A questão que se levante, é ter o pensamento filosófico ter mudado de perspectiva com relação ao sensível e ao suprassensível. Deste modo, ao sair do natural e ir para o supranatural, a filosofia passou a deixar de lado o que tinha de mais valioso, a convivência com o mundo natural, sem almejar um além-mundo. Destarte, tanto o mito, a religião, quanto a criação deste mundo ideal a ser perseguido pelo homem, ou seja, o mundo da verdade, o mundo da racionalidade, afastaram e ainda afastam o ser humano de sua verdadeira essência humana demasiado humana. Ter a coragem de viver a vida sem muletas metafísicas parece um verdadeiro desafio. No entanto, os gregos em certa medida, conseguiram por um certo período, através da arte trágica, ou seja, a união da comunidade em prol da arte, teatro e poesia, possibilitaram um pleno desenvolvimento humano terreno, sem ambições além vida.

O questionamento e a provocação que fica é a seguinte: será que a humanidade está disposta a renunciar ao poder, a ambição, a destruição do planeta, a religião que cria conflitos, do cientificismo que extermina em massa, em prol da uma vida comunitária e em plena consonância com a natureza terrestre? Algumas civilizações antigas já mostraram ser possível. Cabe a nós escolhermos qual será nosso futuro.

Abaixo transcrevo a letra de Imagine, lançada por John Lennon em 1971. Acredito que a canção reflete as propostas deste singelo texto.

Imagine que não há paraíso

É fácil se você tentar

Nenhum inferno abaixo de nós

Acima de nós, apenas o céu

Imagine todas as pessoas

Vivendo para o hoje

Ah Imagine que não há países

Não é difícil de fazer

Nada pelo qual matar ou morrer

E também nenhuma religião

Imagine todas as pessoas

Vivendo a vida em paz

Você Você pode dizer que sou um sonhador

Mas não sou o único

Eu espero que um dia você se junte a nós

E o mundo será como um só

Imagine sem posses

Eu me pergunto se você pode

Sem necessidade de ganância ou fome

Uma fraternidade humana

Imagine todas as pessoas

Compartilhando todo o mundo

Você Você pode dizer que sou um sonhador

Mas não sou o único

Eu espero que um dia você se junte a nós

E o mundo viverá como um só

Referências 

[1] Reale, Giovanni. História da filosofia: Antigüidade e Idade Média / Giovanni. Reale, Dario Antiseri; - São Paulo: PAULUS, 2017. - Pág. 12.

[2] Idem.

[3] Idem. Pág.13

[4] Idem.

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