17 Junho 2014
Há mais de dez anos o professor de Filosofia da PUC Marcelo Perine dedica-se a uma pesquisa sobre a tradição indireta do platonismo, isto é, as chamadas doutrinas não escritas de Platão, o filósofo grego que revelava seu pensamento por meio de diálogos entre mestres e discípulos, ocultando a si mesmo em seus escritos. Essa estratégia é analisada pelo professor em seu novo livro, Platão Não Estava Doente, frase extraída de seu Fédon e que dá título ao volume, ao qual o Caderno 2 teve acesso com exclusividade.
A entrevista é de Antonio Gonçalves Filho, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 14-06-2014.
Platão não estava mesmo doente na despedida de seu mestre Sócrates, condenado à morte pelas autoridades atenienses em 399 a.C., acusado de corromper a juventude. A frase do Fédon, segundo Perine, “traduz uma estratégia de ocultamento, pela qual Platão sinaliza claramente que a sua obra escrita não pretende se apresentar como um conjunto de documentos históricos”. Para entender Platão, defende ele, é preciso misturar a tradição direta dos escritos e a indireta, ou seja, o legado deixado por seus discípulos.
Eis a entrevista.
Filósofos da escola de Tübingen consideram imprescindível ler os Diálogos à luz das doutrinas não escritas. Que novo Platão emerge dessa leitura?
Novo Platão é até o título de uma publicação organizada pelo grupo de Tübingen-Milão. Na verdade, eu não diria que se trata de um novo Platão, mas do velho Platão por inteiro. Pela tradição indireta se conhecem elementos da filosofia de Platão que ele, por deliberação pessoal, não confiou aos escritos, mas que pertencem ao ensinamento platônico.
Por que Platão escreveu textos quando criticava a comunicação escrita e considerava a filosofia verdadeira a oral, esotérica?
Faço uma pequena distinção. Não que Platão considerasse a filosofia verdadeira somente a oral, mas ele viveu num momento da universalização da escrita alfabética na Grécia, um fenômeno relativamente novo em sua época. Escrever era uma novidade, que se pode comparar hoje ao advento da informática.
Platão explica suas restrições à escrita no diálogo Fedro. Fundamentalmente, estava convencido de que as coisas mais importantes têm de ser escritas na alma, só se transmitem pela frequentação entre mestre e discípulo. A palavra esotérica, assim, não tem a conotação de segredo, é simplesmente um forma de proteção. Para ele, era filósofo aquele que não põe por escrito as coisas mais importantes, pois elas só podem ser transmitidas quando a alma do interlocutor está preparada.
Platão acreditava que o conhecimento não vinha do acúmulo de informações, o contrário do que se vê disseminado hoje. Que lugar ocupa Platão na sociedade contemporânea?
Ele é um clássico da cultura universal – tanto que o atual presidente da Sociedade Platônica é um japonês. Platão é um patrimônio irrenunciável, não uma peça de museu. É o verdadeiro inventor da dialética como procedimento de busca da verdade e da compreensão da realidade, embora outros atribuam essa invenção a Heráclito. Platão está presente na cultura do efêmero com a defesa de que a viagem do conhecimento tem um porto de chegada, e esse porto é o bem, que é o fim do caminho, o máximo do conhecimento. A busca do conhecimento não é, portanto, um trabalho de Sísifo.
O jovem Platão queria ser político, mas o conflito de 404, em Atenas, o levou à filosofia. Em que medida o drama de Fedro não é uma representação alegórica do próprio drama de Platão, uma vez que se trata de uma tentativa de cooptar Fedro para a filosofia?
É curioso. O nome de Platão só aparece três vezes em toda a obra dele. Ele está sempre ausente – e por isso a frase do Fédon, a que alude o título de meu livro, "Platão, Creio, Estava Doente", é uma escusa para justificar sua ausência na hora da morte de Sócrates, uma estratégia de ocultamento. Talvez o que exista de mais autobiográfico em Platão esteja na Carta VII. Fedro é todo um processo de iniciação à filosofia, como você bem lembrou.
O texto pode ser uma chave de leitura de sua conversão da política à filosofia – e não se deve esquecer que Platão, de família aristocrática, fundou uma escola para ensinar filosofia, inclusive para governantes. Ele estava convencido de que um político com direção justa podia até converter um povo de demônios.
Como conhecer de fato as intenções de Platão, que nunca aparecem nos diálogos dos quais ele mesmo é autor?
Por meio da tradição indireta, de discípulos como Aristóteles. Essa tradição remonta à primeira geração da Academia. A lição sobre o bem, por exemplo, não é um diálogo, mas há testemunhos de discípulos sobre ela. Há muita desconfiança sobre a legitimidade desses testemunhos, mas isso existe em todos os gêneros literários. Platão foi o primeiro filósofo do qual se conservou toda obra.
Naturalmente, qualquer coisa que não esteja nela causaria estranheza. A Escola de Tübingen-Milão se caracteriza por mostrar a necessidade de recorrer ao ensinamento oral de Platão para compreender essa obra. A formulação desse paradigma teve antecedentes importantes, como o livro A Teoria Platônica das Ideias e dos Números Segundo Aristóteles, de Leon Robin, de 1908, seguindo-se os escritos de Julius Stenzel. Mas a obra pioneira da nova interpretação de Platão foi a tese de Hans Krämer, de 1957, na qual ele examina a ontologia platônica a partir da noção de arete (excelência) e dos grande conceitos como metron (medida) e agathon (bem). Outra grande obra sobre o ensinamento oral de Platão foi escrita em 1963 por Konrad Gaiser. Mas, como disse antes, a existência dessa tradição indireta nunca foi negada. Com esse revival, há também exageros. Teve gente que foi de tal maneira entusiasmada com essa recuperação que chegou a afirmar que existiria um novo Platão, totalmente desconhecido.
Fedro pode ser lido como um drama em que Lísias é o retórico sem profundidade e Sócrates, o condutor de almas à sabedoria suprema. Se Platão não está interessado na natureza da retórica enquanto tal, por que, então, o eixo de sustentação do Fedro é a arte de fazer discursos?
Platão é um patrimônio irrenunciável, não uma peça de museu.
É curioso que Platão declare guerra à retórica em Górgias. No Fedro, que é posterior, Platão faz um novo balanço da sua relação com a retórica. No Górgias ele diz que a retórica não era uma téchne como a medicina. No Fedro, ele reconhece a retórica como uma forma de arrastar a alma. Quando Platão analisa as ciências auxiliares do político, uma delas é a retórica, pois é a arte capaz de ajudar o verdadeiro político a formar uma opinião reta. Platão evolui a partir do confronto. Num segundo momento, ele se dá conta que a retórica funciona.
No próprio Fedro ele faz uma análise da estrutura da retórica, mas mantém para si o privilégio de trabalhar não com o convencimento pelas emoções, e sim pela razão.
O senhor lembra em seu livro que a obra pioneira da nova interpretação de Platão foi a tese autoral de Hans Krämer, seguido por Konrad Gaiser. Quais são os estudos que avançaram em relação a esses dois?
Há fundamentalmente três nomes que eu gostaria de citar: o primeiro é Thomas Alexander Szlezák (Platão e a Escritura da Filosofia). O segundo grande nome é o de Giovanni Reale (Para Uma Nova Interpretação de Platão). E o terceiro é Maurizio Migliori (Platão e Aristóteles – Dialética e Lógica), que foi o primeiro discípulo de Reale a fazer uma tese de doutorado nessa perspectiva da tradição indireta. Ele é o pesquisador que mais avançou, depois de Reale, nesse campo. Entre os brasileiros gostaria de citar o jovem pesquisador Dennys Garcia Xavier, da Universidade de Uberlândia, o que mais tem produzido nessa área.
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‘Platão Não Estava Doente’ usa personagens para revelar pensamento camuflado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU