27 Agosto 2012
"Do teatro grego para as competições de oratória no foro romano, até os palanques midiáticos da era televisiva, a democracia e a competição política apresentaram-se no mundo ocidental em forma de espetáculo público, ou seja, de apresentação de argumentações e programas submetidos ao julgamento dos espectadores. Estes eram chamados a opinar e escolher suas peças preferidas, o discurso mais bonito ou seus candidatos", escreve Massimo Di Felice, sociólogo, professor de teoria da opinião pública na ECA-USP e coordenador do Centro de Pesquisa Atopos (ECA-USP), em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 26-08-2012.
Segundo ele, "nossa época é marcada por uma paradigmática transformação que vê o advento de uma nova forma de democracia. Ela é baseada na articulação de consenso através da construção colaborativa de redes informativas que articulam novas formas de sinergia entre indivíduos e informações".
Eis o artigo.
Num fim de tarde e no começo da primavera, todos os moradores das cidades gregas tinham que cumprir a obrigação de subir as colinas para chegar ao teatro e assistir às apresentações cujas temáticas abordavam questões éticas e políticas. Sempre construídos numa posição estratégica, geralmente numa parte alta que se debruçava sobre o mar, os teatros gregos apareciam como um lugar irreal no interior dos quais, através de efeitos técnicos e narrativos (o coro, as máscaras, a música), o público era conduzido ao delírio e à comoção. Era exatamente por meio desse elemento emotivo e nesse excesso de empatia (hybris) que o cidadão grego recebia os valores morais e a ética sobre os quais fundavam-se as leis e a vida de sua cidade.
Tal função político-pedagógica do teatro antigo demonstra claramente a importância da cultura do espetáculo e sua profunda relação com a política na cultura ocidental.
Desde seus primórdios no Ocidente o público, o espetáculo e a cultura política formaram um único universo, incindível, que foi o verdadeiro embasamento da democracia - nascida, como observava criticamente Platão, como "teatrocracia", isto é, como a ditadura do espetáculo e do julgamento popular. Evento fútil para os seguidores das verdades, competição imprevisível e prazeroso entretenimento para moradores das antigas cidades da Magna Grécia, de fato, as representações teatrais marcaram o nascimento do encontro entre a comunicação, o espetáculo e a política.
Do teatro grego para as competições de oratória no foro romano, até os palanques midiáticos da era televisiva, a democracia e a competição política apresentaram-se no mundo ocidental em forma de espetáculo público, ou seja, de apresentação de argumentações e programas submetidos ao julgamento dos espectadores. Estes eram chamados a opinar e escolher suas peças preferidas, o discurso mais bonito ou seus candidatos.
Teatro, imprensa, rádio, cinema e TV construíram na historia da nossa civilização a forma/conteúdo da participação e as arquiteturas para a disputa do consenso. Embora com características distintas e diferente poder de difusão das informações, tais práticas mantiveram a mesma arquitetura analógica comunicativa, baseada na distribuição unidirecional das informações de um emissor (ator, jornalista, locutor, apresentador televisivo ou político) para o público espectador, que batia palmas, vaiava, opinava, escolhia e votava. Tal distinção identitária entre quem produzia e distribuía a mensagem e o público espectador chega inalterada à época da eletricidade e da TV. Se a sociedade do espetáculo e o marketing político têm origem antiga e anteriores às estratégias comunicativas descritas por Maquiavel em O Príncipe, é evidente que a interação entre política e televisão introduz um conjunto de elementos novos na linguagem e nos conteúdos da política moderna.
Em primeiro lugar, o incremento da importância das estéticas e do visual do candidato. Em segundo, sua capacidade de adaptação à necessidade de elaboração de respostas rápidas e agilidade na contra-argumentação impostas pela velocidade da linguagem e pela especificidade da temporalidade televisiva. E terceiro, só para citar os mais notórios, sua total submissão à audiência e à programação televisiva. Nesse sentido, o mais conhecido conceito de Marshall McLuhan, "o meio é a mensagem", pode nos orientar para entender a relação entre TV e política. É suficiente observar como a atuação dos marqueteiros e as estratégias comunicativas mudaram nas últimas décadas a forma de fazer política e a qualidade do seu discurso.
A linguagem televisiva tornou os discursos e os programas políticos mais visuais e transformou os profissionais da política em personagens midiáticas preocupadas com suas rugas, a cor do seu cabelo e o ângulo de tomada da câmera. Mas, sobretudo, o alto custo de produção da mídia de massa aumentou os custos da política e, consequentemente, favoreceu a difusão de atuações ilícitas e da corrupção, chegando a fazer coincidir na opinião pública do mundo inteiro a imagem do político - e mesmo a atividade política - com aquela da corrupção e da desonestidade.
Com o advento da comunicação digital esse modelo comunicativo, que permaneceu presente no decorrer da história nas distintas épocas midiáticas e culminou com a forma da espetacularização da política televisiva, entra definitivamente em crise. Com a difusão das mídias móveis e das redes sociais digitais, muda a arquitetura de produção e distribuição das informações, alterando aquele modelo antigo que uniu o teatro grego à TV. Se a mídia e a política de massa criavam público e buscavam consenso através da comunicação frontal, as arquiteturas interativas digitais nos propõem a forma de produção colaborativa de conteúdo que se desenvolve mediante a interação reticular de sujeitos ativos. Do YouTube ao Facebook e à Wikipedia assistimos à passagem de uma forma receptiva de comunicação a uma forma interativa e coletiva.
Se por milênios os fluxos comunicativos foram unidirecionais e a forma de distribuição dos conteúdos mantinha as dinâmicas piramidais da emissão de informações de um centro (emissor) para uma periferia (receptor), a revolução comunicativa digital introduz, pela primeira vez na história da humanidade, um modelo comunicativo interativo, baseado no sistema de rede que, anulando a distinção identitária entre emissor e receptor, oferece a todos os internautas (tecnoatores) o mesmo poder comunicativo e igual oportunidade de acesso. Além disso, tal ruptura comunicativa inaugura um tipo de interação que ativa a comunicação e a torna possível somente no interior das interações dinâmicas entre interfaces, redes e internautas, conferindo aos últimos o papel de construtor das informações e produtor de conteúdos.
Os pressupostos dessa nova cultura midiática interativa são o exato contrário da forma analógica. Para a descrição das arquiteturas comunicativas das interações digitais parece, consequentemente, necessário substituir o conceito de público para aquele de redes, nas quais o significado e o conteúdo do comunicar não são mais pré-codificados e estabelecidos pelo emissor, mas construídos e viabilizados pelo processo interativo.
Essa passagem da mídia de massa para a personal mídia, do analógico para o digital e do ver para o tecnoagir não deixará de alterar a natureza da sociedade e os significados da ação política.
De um ponto de vista político midiático, nossa época é marcada por uma paradigmática transformação que vê o advento de uma nova forma de democracia. Ela é baseada na articulação de consenso através da construção colaborativa de redes informativas que articulam novas formas de sinergia entre indivíduos e informações. Mais que sobre o consenso e apresentação de candidatos, essas novas formas de atuação produzem mudanças diretamente sobre os territórios por meio da participação e da troca informativa de rede de cidadãos. À figura do político portador de um programa e líder de uma corrente partidária sucede o ativismo dos tecnoatores, que através do livre acesso às informações articulam-se, discutem e produzem informações de forma colaborativa. Em todos os continentes produz-se uma forma tecnoinformativa de participação, cidadania e processos de transformações sociais. Foi assim que os cidadãos das antigas cidades gregas tornaram-se autores e atores das tramas encenadas no final da tarde no começo de outras primaveras.
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