11 Dezembro 2018
Fundada em 1919, a Gazeta do Povo foi durante a maior parte de seus quase 100 anos um jornal importante em Curitiba mas de pouca relevância fora do Paraná. Mas uma guinada abrupta à direita iniciada em 2015 fez do veículo – repaginado como um portal de internet que publica uma edição semanal impressa – a cara e a voz do cada vez maior conservadorismo brasileiro.
A reportagem é de Rafael Moro Martins, publicada por The Intercept, 10-12-2018.
Do ponto de vista estratégico, foi um achado. Há alguns dias, a Gazeta anunciou ter sido o jornal mais lido do Brasil em outubro, mês das eleições presidenciais – foram 33,7 milhões de visitantes únicos, segundo o comScore MyMetrix, quase 600 mil a mais que o site da Folha de S. Paulo, ainda líder em tiragem e circulação entre os diários impressos brasileiros.
A audiência se deve, em parte, a um bem feito trabalho de formatação de conteúdo, o chamado SEO, que fez com que qualquer que digitasse, por exemplo, as palavras “candidatos deputado estadual Paraíba” no Google recebesse como primeiro resultado o site da Gazeta. Ainda assim, é um resultado notável para um veículo que, até há dois anos, tinha alcance meramente regional.
Do ponto de vista do prestígio com os novos donos do poder, idem. Coube à Gazeta o privilégio de publicar o primeiro artigo do futuro chanceler Ernesto Araújo após a escolha dele por Jair Bolsonaro – ou pelo filósofo de ultra direita Olavo de Carvalho. O portal também conseguiu entrevistas exclusivas com ministros do futuro governo e teve um de seus colunistas recomendado pela jurista Janaina Paschoal ao presidente eleito.
Do ponto de vista do bom jornalismo, há vários poréns. Ao se assumir como porta-voz de pautas conservadoras como a “crítica ao comportamento homossexual” e do liberalismo econômico, a Gazeta reduziu o destaque à cobertura local e o espaço a vozes discordantes, processo que culminou na demissão de seu principal jornalista, o colunista político Rogerio Galindo, também tradutor literário e irmão do premiado Caetano Galindo.
Desde sempre um jornal de perfil conservador, a Gazeta percebeu no avanço da direita no Brasil, palpável desde as manifestações de 2013, uma oportunidade para romper as barreiras de Curitiba. Foi como juntar a fome à vontade de comer: o atual presidente do GRPCOM, grupo que edita a Gazeta e é dono das afiliadas da TV Globo no Paraná, Guilherme Döring Cunha Pereira, é numerário do Opus Dei, a conservadora prelazia da igreja católica. Numerário é a denominação dada a membros que, como ele, são celibatários e dedicam parte importante da vida às atividades apostólicas e de formação de fiéis.
Hoje com pouco mais de 50 anos de idade, Cunha Pereira é um homem magro, cortês, que nunca eleva o tom de voz ou interrompe o interlocutor e fez, ainda jovem, votos de castidade e pobreza. Usa ternos e roupas simples e vive numa residência comunitária da Opus Dei em Curitiba. Desde 2009, com a morte do pai, Francisco Cunha Pereira Filho, ele vinha introduzindo algumas de suas obsessões – o termo é do próprio veículo – na pauta da Gazeta.
“[O conservadorismo adotado pela Gazeta] Tem uma ressonância com parte importante da população brasileira, que não encontrava outros veículos com idêntico posicionamento”, me disse Cunha Pereira na longa entrevista que concedeu em sua sala na redação. “A gente percebeu que isso é uma riqueza também do ponto de vista estratégico, e montou toda uma estratégia em que o posicionamento [conservador] adquiriu status especial. Ele é um direcionador estratégico muito importante.
”Mesmo antes da guinada radical iniciada em 2015, Cunha Pereira havia criado na Gazeta um site chamado Sempre Família, que durante as últimas eleições se dedicou a atacar um padre que celebrou uma missa pela eleição de Fernando Haddad – incentivando críticos a protestarem contra o sacerdote a seu superior hierárquico –, elencou motivos para católicos não levarem seus filhos às passeatas promovidas por mulheres contra Jair Bolsonaro sob o bordão #elenão e colocou figuras como Magno Malta e Eduardo Bolsonaro numa lista de “defensores da vida”.
Ali, a voz que se ouve é a de Cunha Pereira. Os jornalistas responsáveis pelo Sempre Família não respondem à direção da redação, mas diretamente ao presidente do grupo.
“Há um grupo de editorias chamadas internamente de ethos do portal que são dominadas por gente que pensa igual o patrão: Opinião, Sempre Família, Justiça & Direito, Educação. E, por extensão, República [nome da seção que publica material sobre a política nacional]. Na editoria de política local, a liberdade é total. Em República, o cerco é mais apertado. No núcleo duro, o cerco é total. Não há espaço para pluralismo”, me disse Rogerio Galindo.
A curva à direita se acentuou em outubro de 2015 com uma mudança que colocou no comando da redação o jornalista Leonardo Mendes Júnior, co-autor do “Guia politicamente incorreto do futebol“, livro que se dedica a criticar a “ingenuidade” da seleção brasileira de 1982 e afirma que a Democracia Corinthiana era na verdade “uma ditadura” comandada por Sócrates, Wladimir e Casagrande. São ele e mais dois jornalistas – Jones Rossi, o outro co-autor do “Guia”, e Ewandro Schenkel – os executores do plano de tornar a Gazeta uma espécie de versão patropi do Breitbart News – o ultra conservador site de notícias dos EUA que trabalhou pela eleição de Donald Trump.
“Ele levou a guinada conservadora a novos parâmetros, quando anunciaram o encerramento do jornal impresso e a cara nova do site”, contou Galindo, que até novembro era o mais lido analista político da Gazeta – foi responsável por 1 milhão dos leitores que o portal atraiu em outubro.
A Gazeta do Povo que renasceu digital em 2017 tem um novo time de colunistas, todos alinhados à direita. Resgatou do limbo Rodrigo Constantino, que fora demitido e deletado do site da revista Veja. Trouxe também Ricardo Amorim e Leandro Narloch, que ganhariam nos meses seguintes companhias como Guilherme Fiúza e Bruno Garschagen. Nesse time de articulistas, a presença de Galindo – que me disse ver o mundo a partir de um ponto de vista de “esquerda democrática” – era algo como se Barack Obama fizesse parte do ministério de Trump.
“Os donos do jornal sempre me deram respaldo para falar o que quisesse. Nunca me pediram para não publicar alguma coisa, evitar um tema ou falar bem de alguém. Mas é evidente que, do ponto de vista deles, aquilo era uma permissão. Eles dizem acreditar que opiniões diferentes devem ter espaço. O meu papel ali sempre foi o de oposição consentida. Eu tinha consciência disso, eles também, e a gente conviveu bem por um bom tempo”, avaliou Galindo.
Mas em breve a relação começaria a azedar.
Em fins de 2017, a Gazeta colocou no ar uma ferramenta chamada Monitor da Doutrinação, que incentivava leitores a enviarem ao jornal, para publicação, vídeos em que professores alegadamente estariam “doutrinando” seus alunos – à esquerda, é claro. A repercussão foi imensa, e péssima. Educadores, advogados, sindicatos e até empresários reagiram. Quatro dias depois, o portal recuou e tirou o Monitor do ar.
Segundo Cunha Pereira, a ideia partiu da redação, e não dele, que me disse ser contra a Escola Sem Partido. “Foi uma iniciativa da [equipe que cobre a] área [de Educação]. A redação, a equipe que acompanhava esses casos, recebia um volume grande de denúncias de abusos concretos. A intenção deles era alertar para um problema, o que acho legítimo. Foi um trabalho puramente jornalístico”, argumentou.“Mas sou contra o Escola Sem Partido. A ideologização do ensino é um problema grave, mas não se resolve isso criando tensão entre alunos e professores. E como um aluno vai ter condições de se arvorar como juiz do professor, permanentemente, numa idade em que se deve fomentar um respeito grande pelo professor?”, questionou Cunha Pereira.
Foi ali que as divergências entre Galindo e o comando da redação começaram a ficar mais agudas. “Escrevi [a Mendes Júnior] dizendo que achava aquilo [o Monitor] um absurdo. Passamos três dias brigando pelo WhatsApp até que eles recuaram e anunciaram que iriam tirar do ar”, contou o jornalista.
A ojeriza da Gazeta do Povo ao PT e sua “agenda permissiva” de “suporte à descriminalização do aborto e novos arranjos familiares” – e alguma simpatia por Bolsonaro – já eram evidentes no vídeo em que o portal anunciou sua cobertura das eleições presidenciais. Em certo momento, Mendes Júnior afirmou que a eleição do capitão reformado era “certeza na segurança [pública]”.
Mas ela se cristalizou em editoriais como o publicado no dia do primeiro turno das eleições, que garantia que o PT era uma “ameaça real” à democracia brasileira mas não fez menção aos impropérios que Bolsonaro colecionou durante sua carreira. Àquela altura, já era claro que o pleito seria decidido entre Haddad e o militar reformado, e a Gazeta fez sua aposta no político do PSL.
“É impensável apoiar um partido, que não apenas declarou, mas realizou concretamente um volume sem precedentes de atentados à democracia. Não são meramente palavras, [mas] uma realização concreta e o aparelhamento do estado de uma maneira inacreditável para uma tomada paulatina, penetrar em todas as instâncias do poder para dominar o país. E mesmo depois da condenação em última instância no Mensalão, todos os petistas condenados [foram] aclamados como guerreiros da causa”, argumentou Cunha Pereira, não sem razão.
Semanas antes, Galindo publicara texto em que afirmava que a candidatura de Bolsonaro era “moral e inaceitável numa democracia” – até hoje o texto é um dos mais lidos e comentados do portal.
“Ficou claro para mim, conforme a campanha presidencial foi avançando, que a Gazeta decidiu que, para evitar o petismo, era necessário abonar qualquer outra candidatura. O apoio deles [a Bolsonaro] foi envergonhado, a partir do momento em que eles viram que era ele ou PT. Pedi uma reunião com o Guilherme [Cunha Pereira]. Ele me recebeu e ouviu meu pedido para que disséssemos [em editorial] que o outro candidato [Bolsonaro] também tinha problemas, punha em risco a democracia. Ele ficou de pensar, mas evidentemente nunca mudou de ideia. Foi nossa última conversa”, disse o jornalista.
Embora o empresário tenha me garantido que tal preferência não contaminou a cobertura do pleito – “Nossa posição é muito clara nos editoriais, mas a cobertura é totalmente dada pela equipe [da redação], com liberdade” – , não foi o que ouvi em conversas com jornalistas da casa, que naturalmente pediram para não serem identificados.
Um deles relatou ter sido orientado a não usar conteúdo da Folhapress, agência ligada à Folha de S.Paulo, por em tese ser “mais duro com Bolsonaro”. Outro relatou que matérias com Haddad deveriam obrigatoriamente trazer informações negativas ao petista – como, por exemplo, as visitas semanais a Lula na cadeia em Curitiba.
Acompanhei atentamente a cobertura da eleição presidencial da Gazeta do Povo. Desde o primeiro turno, Bolsonaro era presença garantida na homepage do portal, algo que se explica não apenas pela preferência da casa – notícias sobre ele eram cliques garantidos, contou um jornalista. Em certo dia, já durante o segundo turno, a editoria “República”, que reúne o noticiário sobre a política nacional, publicou 11 textos. Nove traziam “Bolsonaro” no título – e eram, na maioria, favoráveis ao capitão reformado.
“É evidente, nítido e inegável que [o apoio a Bolsonaro] teve influência nas colunas [de opinião] e, em certa medida, no noticiário”, cravou Galindo.
O Sempre Família, por sua vez, colocou no ar o Vota, Família. Ilustrado com a foto de uma família de pessoas brancas e de cabelos claros, o site se propunha a indicar as posições de “candidatos e partidos políticos sobre temas morais importantes para a instituição familiar”. Não qualquer família, é claro – candidatos favoráveis ao casamento gay, como Haddad, recebiam sinal vermelho.
“Eu não acho que sejam iguais [os casamentos entre homossexuais e heterossexuais]. A nosso ver, [o casamento é] a união entre um homem e uma mulher pela única razão que esse é o caminho natural para a perpetuidade da sociedade. E imagino que os próprios homossexuais ficariam satisfeitos [com isso, dizendo] não queiram [o Estado e a legislação] interferir no meu relacionamento”, argumentou Cunha Pereira.
O alinhamento, cabe ressaltar, segue após a eleição. Na quinta-feira, 6, os editores do portal fizeram que não viram uma das principais notícias do dia, publicada pelo Estadão: a de que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) registrou movimentação considerada “atípica”, de R$ 1,2 milhão, de um ex-assessor de Flávio Bolsonaro, senador eleito e filho do capitão reformado.
Em 28 de outubro, a Gazeta do Povo publicou um editorial intitulado “Uma chance para consertar o estrago”, conclamando o voto contra o PT – sem usar uma única vez o nome de Bolsonaro – listando, entre as razões, o fato de que o partido “quis tratar como criminosos aqueles que têm opinião crítica ao comportamento homossexual”. À noite, Galindo colocou na imprensa a responsabilidade pela eleição de Bolsonaro. Oito dias depois, ele estava demitido.
“Minha demissão tem muito a ver com o processo eleitoral deste ano. Não tenho certeza se foi [motivada] por algum texto em especial. Avisei a direção que faria um texto dizendo que a imprensa errou [ao dar holofotes a Bolsonaro]. Me disseram que o blog era meu e eu tinha liberdade. Publiquei no dia da eleição. Segui trabalhando por mais uma semana e, num domingo, Leonardo [Mendes Júnior] me chamou para ir à redação no dia seguinte. Fui e fui demitido”, me contou Galindo.
“Ele [Mendes Júnior] me disse que nossas dissensões estavam ficando cada vez mais graves, e que [a causa da demissão] não era o fato de eu divergir, mas sim a maneira como eu me posicionava, sugerindo que eu estava me excedendo no tom que usava para criticar [a posição do jornal] internamente. Admito que me excedi, cheguei a pegar uma suspensão. A situação vinha ficando há muito tempo insustentável”, ele prosseguiu.
“Acho que [a demissão] foi um mau sinal. Acho que uma dissensão tão franca, aberta, gritante, talvez não seja mais do interesse deles. [Mas] saio sem nenhum ressentimento. O que aconteceu foi uma batalha de ideias, e eu perdi. Faz parte da democracia. Mas não desisti. Vou achar um cantinho e instalar minha guerrilha, que é a dos direitos humanos, do direito das pessoas de serem diferentes”, desabafou o jornalista.
De todos os temas que eu trouxe à mesa, a demissão de Galindo foi o único que Cunha Pereira se recusou a comentar.
“Quando fui informado da decisão, ela já estava tomada [pela chefia da redação]. Acho que havia elementos, acho que a redação tomou [a decisão] em função de um série de circunstâncias da gestão. Por isso não é justo eu fazer um comentário porque é difícil explicar o conjunto dos elementos que podem levar a uma decisão dessas”, justificou-se. “Mas não é verdade que a demissão signifique um fechamento da Gazeta do Povo a vozes discordantes.”
Até o fechamento deste texto, porém, nenhum jornalista com o perfil de Galindo havia sido contratado pela Gazeta do Povo. Pelo contrário: outro repórter premiado da casa, Felippe Aníbal, demitiu-se após as eleições.
Quando foi avisado de que perderia o emprego, Galindo acabara de ser pai pela terceira vez. A pequena Gabriela completou um mês de vida dois dias após a demissão.
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Como a Gazeta do povo, do Paraná, deu uma guinada à direita e virou porta-voz do Brasil de Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU