31 Outubro 2018
Desde os remotos tempos da Coroa, o baixo índice pluviométrico do Semiárido brasileiro é visto como gargalo para o desenvolvimento da região, mesmo esta sendo uma característica inerente ao clima. Historicamente as “soluções” apontadas foram desde a venda das joias reais, no período monárquico, até a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) que foi criada como uma espécie de intervenção do Estado no Nordeste, com o objetivo de promover e coordenar o desenvolvimento da região.
A reportagem é de Elka Macedo, publicada por Articulação do Semiárido Brasileiro - ASA, 25-10-2018.
Em meados da década de 1980 diversas organizações não-governamentais a exemplo da Rede do Projeto de Tecnologias Alternativas – Rede PTA – iniciou junto com as famílias agricultoras experimentos para melhoria da produção e qualidade de vida dos/as camponeses/as, respeitando as condições impostas pela natureza e levando em consideração sua fauna e flora. Muitas dessas organizações já apontavam tecnologias descentralizadas de captação de água de chuva como uma possível estratégia de superação dos tempos mais secos. Mas somente no fim da década de 1990 para início dos anos 2000 é que as cisternas de placas, idealizada por um agricultor da própria região, se popularizaram e foram reconhecidas como uma tecnologia social e, posteriormente, política pública de sucesso para o Semiárido. Além dela outras políticas e programas têm contribuído para a transformação econômica e social dos povos que habitam a região. Quem vive no Semiárido sabe contar o quanto o cenário do campo mudou nos últimos 14 anos.
Dona Iraci Barbosa, 54 anos, mora no município de Buíque, na região do agreste central de Pernambuco e é uma das agricultoras que testemunha e vivencia a transformação a partir do acesso a políticas sociais. “Temos uma casa para morar, terra para trabalhar, uma cisterna de água boa para consumo e um cisternão [como ela chama sua cisterna-calçadão] para eu plantar minhas verduras. Posso oferecer a minha família e a quem vem na minha casa uma salada com minhas verduras saudáveis, sem agrotóxico e totalmente orgânicas. Quer riqueza maior que essa?”, conta feliz.
Entretanto, o que se vê atualmente é a ameaça de um projeto político que vê na importação de tecnologias a solução para o desenvolvimento da região, incremento na produção e geração de renda, desqualificando e desconsiderando toda a trajetória de construção do conhecimento e valorização do saber popular. A ideia defendida na propaganda eleitoral e no discurso do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) prega a importação de tecnologias de Israel para solucionar e “combater a seca” no nordeste. Para o professor Doutor em Desenvolvimento Sustentável, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Roberto Marinho, não dá pra se pensar numa saída especifica para garantir que a região prospere, mas sim de um conjunto de ações que propicie mudanças no campo social, respeitando o meio ambiente e a cultura das pessoas.
“Não existe solução única. O Semiárido é de uma diversidade, de uma complexidade, tanto do ponto de vistas das suas potencialidades quanto das suas fragilidades ambientais, sociais e econômicas. O Semiárido já incorporou tecnologias importadas de outros países, a exemplo dos Estados Unidos, Austrália e Israel. A gente tem no Semiárido, áreas que já utilizam essas tecnologias e você vê que é restrito o impacto que elas trazem. A gente tem que conhecer a realidade e buscar soluções apropriadas, adaptadas para cada uma das realidades, portanto não existe uma solução só. Esperar que haja este milagre é um discurso antigo, e eu diria fajuto”, afirma.
Ele complementa ainda: “tecnologia só promove crescimento social, desenvolvimento sustentável se tiver um projeto social adjacente. Senão pode até gerar algum tipo de crescimento econômico mais vai aumentar a desigualdade. O contraponto que nós temos no Semiárido são as tecnologias que há décadas vêm sendo construídas a partir do diálogo com a população sertaneja, com as pessoas que conhecem as possibilidades e os limites do Semiárido. Então esse engodo que diz que vamos transferir a tecnologia de Israel para o Semiárido e todos os problemas serão solucionados não existe! Estas tecnologias vão vir com um modelo com a concepção de geração de crescimento econômico e geração de riqueza, mas concentrado”, ratifica.
Israel é um país localizado no Oriente Médio, no continente asiático. Com clima quente e seco e escassez de chuvas entre os meses de maio e setembro, a nação desenvolveu técnicas para economizar e melhor gerir a água, a exemplo da irrigação por gotejamento, reuso de água e dessalinização. Vale salientar que o povo do Semiárido brasileiro também conhece essas estratégias e já as vêm experimentando há um bom tempo. As tecnologias de convivência com a região são reconhecidas mundialmente, a exemplo da cisterna de placa para captação e armazenamento de água da chuva, que recebeu o Prêmio Política para o Futuro promovido pelo World Future Council em parceria com a Convenção das Nações Unidas para o combate à desertificação (UNCCD) como uma das mais eficazes medidas mundiais para se combater a desertificação do solo e suas graves consequências sociais.
Além desta, outras tecnologias e programas têm contribuído para que famílias agricultoras do Semiárido permaneçam no campo com qualidade de vida e dignidade, a exemplo do bioágua ou Sistema de Reúso de Água Cinza que garante o reuso da água cinza utilizada nos serviços doméstico, como explica o Coordenador da ASA pelo estado do Ceará, Marcos Jacinto.
“Com o reuso mais de 50% da água retorna para o processo de produção. Então, de fato, a tecnologia tem esta característica de ampliar a capacidade de acesso à água para produção de alimentos pelas famílias. Isso impacta na segurança alimentar e na soberania alimentar das famílias e na geração de trabalho e renda porque a gente faz um processo de juntar as tecnologias sociais. Então, a família tem a tecnologia de primeira água, tem a tecnologia de segunda água e tecnologia de reuso. Estas tecnologias juntas permitem que as famílias possam ter uma condição de vida cada vez melhor. No Semiárido, estamos passando por sete anos de chuva abaixo da média, e as famílias que têm acessado as tecnologias sociais, são unanimes em dizer que conseguem viver de forma mais tranquila do quê quando não tinham as tecnologias”, destaca.
Sobre uma possível importação de tecnologia de outros países para potencializar a produção da agricultura familiar na região, Marcos Jacinto é taxativo ao falar sobre a trajetória da Articulação Semiárido (ASA), na construção de conhecimento e tecnologias em parceria com as famílias. “A ASA não importa tecnologia, ela não vai buscar lá fora uma tecnologia que possa ser aplicada na nossa realidade. A ação da ASA se baseia no que as pessoas do Semiárido têm construído de conhecimento e de estratégia; parte do conhecimento, das experiências, daquilo que as famílias têm feito no campo da convivência. Na maioria das vezes, esta estratégia de trazer tecnologias de fora é muito perigosa porque lá fora ela pode funcionar, mas aqui é uma realidade especifica e todas as estratégias os programas e as politicas precisam dialogar com esta realidade e muitas vezes quando vem de fora isso não acontece”.
Ao invés de importar tecnologias de outros países, famílias agricultoras do Semiárido brasileiro estão intercambiando experiências com camponeses/as de outras regiões de clima semelhante no planeta, a exemplo da região do Sahel, no país africano de Senegal e no Corredor Seco da Améria Central, mais precisamente nos países de El Salvador e Guatemala. A ação é fruto da parceria feita entre a ASA e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
“A convivência com o Semiárido implica em combater as raízes estruturais que reproduzem a pobreza Do que eu conheço, não vejo isso em Israel, na Califórnia, na Austrália ou na Espanha. A gente já comprovou que havendo a combinação de vários fatores, por exemplo, das tecnologias de armazenamento de água da chuva, tecnologias de produção apropriadas elaboradas pelos critérios da agroecologia, combinadas com o sistema de proteção social, politicas públicas de educação e de saúde. Este conjunto de iniciativas articuladas e, sobretudo, com a população participando é que pode trazer algum resultado que seja mais eficaz para aquilo que é mais fundamental para o Semiárido que é a sua população”, finaliza Roberto Marinho.
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Rede do Projeto de Tecnologias Alternativas – Rede PTA. "Não há solução tecnológica sem que haja um projeto social" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU