17 Outubro 2018
Enquanto o patriarca ecumênico ortodoxo prossegue com os planos de reconhecer uma Igreja independente na Ucrânia, apesar das duras reações russas, os líderes da Igreja Católica em toda a Europa têm mantido distância da contenda interortodoxa.
Analistas católicos admitem, no entanto, que o conflito poderia ter consequências regionais significativas, bem como levantar questões sobre as futuras relações católico-ortodoxas.
A reportagem é de Jonathan Luxmoore, publicada por National Catholic Reporter, 16-10-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
“Estritamente falando, isso não é realmente um conflito - o patriarca ecumênico está cumprindo seus deveres canônicos ao reconhecer uma Igreja independente, e os ortodoxos russos estão contestando isso”, disse Marcin Przeciszewski, diretor da KAI, a agência de informações católica da Igreja Polonesa. “Claro, isso não é uma questão para a nossa Igreja ou para o Vaticano, e eles não vão emitir declarações sobre isso. Mas os católicos em países como o nosso, naturalmente, querem que a Ucrânia seja totalmente soberana, e não o será enquanto parte de sua Igreja permanece dependente do Patriarcado de Moscou, da Rússia”.
Cristãos ortodoxos, concentrados principalmente no leste europeu, representam nominalmente 70% dos 44 milhões de habitantes da Ucrânia. Mas eles estão divididos desde o colapso do domínio soviético, em 1991, entre uma hierarquia da Igreja ainda sujeita a Moscou e duas comunidades menores, o Patriarcado de Kiev e a Igreja Autocéfala Ucraniana, nenhuma das quais é canonicamente reconhecida pelos líderes ortodoxos no exterior.
Greco-católicos ucranianos e católicos romanos respondem por um décimo da população da Ucrânia, sendo os greco-católicos, que combinam o rito oriental com a lealdade a Roma, chamados pejorativamente de “uniatas” por líderes ortodoxos e sofreram perseguição selvagem depois que sua Igreja foi proibida em 1946.
Os apelos por uma Igreja Ortodoxa Ucraniana unida e independente foram ouvidos após a anexação forçada da Crimeia pela Rússia em 2014. Esses apelos se tornaram cada vez mais intensos à medida que uma sangrenta campanha de separatistas apoiados pela Rússia se arrastava no leste da Ucrânia, deixando mais de 10.000 mortos e centenas de milhares de exilados.
O Patriarcado de Kiev apoiou as aspirações pró-ocidentais da Ucrânia sob seu líder Filaret Denisenko, que foi declarado anatematizado [não reconhecimento] pela Igreja Russa no início dos anos 1990. Por outro lado, a Igreja ligada a Moscou favoreceu laços estreitos com a Rússia e rejeitou o movimento de independência.
A interação tensa entre religião e geopolítica foi destacada em julho durante o aniversário de 1030 anos da cristianização dos Rus’ de Kiev, a partir dos quais a Rússia e a Ucrânia moderna foram formadas.
Enquanto os políticos ucranianos, liderados pelo presidente Petro Poroshenko, participaram de comemorações em Kiev com Filaret e outros líderes eclesiásticos dissidentes, o patriarca russo Cirilo I compareceu ao evento na Praça Vermelha de Moscou com o presidente Vladimir Putin, agradecendo aos ucranianos ortodoxos por “permanecerem bravamente leais” a Moscou contra “inimigos da raça humana”.
Naquele momento, Poroshenko e outros políticos ucranianos apoiaram os pedidos por uma Igreja independente, levando seu apelo ao patriarca ecumênico Bartolomeu I de Constantinopla, de Istambul.
Mantendo a primazia honorária entre os líderes das 14 principais igrejas ortodoxas do mundo, Bartolomeu I tem tradicionalmente afirmado seu direito de reconhecer e aprovar novas igrejas. Quando ele indicou sua prontidão em conceder aos ucranianos os “tomos de autocefalia” necessários, o Patriarcado de Moscou ficou furioso, advertindo que seus seguidores resistiriam a qualquer tentativa de que assumissem o controle de seus monastérios e paróquias.
No início de setembro, a disputa chegou ao auge quando Bartolomeu I nomeou dois exarcas, ou bispos, ortodoxos para supervisionar os preparativos para uma Igreja Ucraniana independente uma semana depois de não conseguir chegar a um acordo com o russo Cirilo I em uma cúpula de três horas em Istambul.
O Santo Sínodo que governa a Igreja Russa respondeu em 14 de setembro com uma declaração classificando as nomeações como uma “violação grosseira da lei da Igreja” e suspendendo toda a “comunhão eucarística” com o Patriarcado Ecumênico de Bartolomeu I.
A Ortodoxia Ucraniana esteve sob a jurisdição de Moscou desde o século XVII, insistiu o Sínodo. Bartolomeu I perderia sua primazia ortodoxa honorária caso suas “atividades interferentes” continuassem.
“A política vil e traiçoeira de Constantinopla está prejudicando não apenas a ortodoxia russa, mas todo o mundo ortodoxo”, disse o diretor de relações exteriores da Igreja Russa, metropolita Hilarion Alfeyev, ao canal de TV Rossiya-24. “O caminho agora proposto é, na verdade, um ato de roubo contra o território de outra igreja local. É por isso que a Igreja Ortodoxa Russa vê as ações de Constantinopla como uma invasão de seu território canônico, uma tentativa de capturar seu rebanho”.
A hipérbole russa foi rejeitada como “desonrosa” por um porta-voz do Patriarcado Ecumênico, arcebispo Job Getcha, que disse que as pretensões de Moscou de “dirigir a vida religiosa na Ucrânia” eram “infundadas e impróprias” e acusou Hilarion e outros de tentarem “intimidar o mundo ortodoxo” com suas palavras duras.
“Constantinopla não está interferindo nos assuntos de outra igreja - está agindo dentro de sua esfera canônica”, disse Getcha à agência de notícias ucraniana Cerkvarium. “A Ucrânia não faz mais parte do império russo ou da União Soviética, e se uma divisão que dura quase 30 anos deixou milhões de pessoas fora de qualquer igreja canônica, o Patriarcado Ecumênico tem o dever de tomar as medidas apropriadas”.
Neste verão, parecia que os católicos poderiam ser atraídos para a controvérsia, pondo em risco as melhores relações anunciadas pelo histórico encontro do Papa Francisco com Cirilo I em fevereiro de 2016 em Havana, Cuba.
Durante o aniversário dos Rus’ de Kiev, Cirilo I reclamou da agitação de “grupos dissidentes e uniatas”, enquanto Hilarion, seu confidente próximo, advertiu sombriamente sobre derramamento de sangue, dizendo à agência de notícias Interfax que a campanha pela autocefalia estava sendo fomentada por “estruturas cismáticas e greco-católicos” na esperança de trazer mais ucranianos para a união com Roma.
Em maio, Francisco assegurou a Hilarion - em Roma, com uma grande delegação ortodoxa russa - que a Igreja Católica reconhecia “apenas um Patriarcado” e não “se envolveria em assuntos internos da Igreja Ortodoxa Russa, nem em questões políticas”.
Alegações do envolvimento católico foram negadas insistentemente pelo líder da Igreja Greco-Católica, arcebispo Svietoslav Shevchuk, de Kiev-Halych.
“Enquanto as discussões sobre o autogoverno causam um confronto cada vez maior entre os patriarcados de Constantinopla e de Moscou, às vezes tenho a impressão de que há um desejo de atrair a Igreja Católica para o conflito”, disse Shevchuk à agência KAI da Polônia em junho. “Mas enquanto nós temos laços fraternos com as igrejas ortodoxas e não podemos ser indiferentes às suas feridas internas, nunca nos intrometemos nessas dolorosas divisões ortodoxas”.
Outras figuras católicas foram igualmente cautelosas.
No início de outubro, o chefe de relações intercristãs da Conferência dos Bispos Católicos da Rússia, bispo Kirill Klimovich, assegurou ao NCR que a disputa interortodoxa “não é uma preocupação” para os católicos russos.
Em uma declaração de 26 de setembro, a nunciatura do Vaticano em Kiev negou uma declaração do governo ucraniano de que o secretário de relações interestaduais da Santa Sé, arcebispo Paul Gallagher, apoiou a formação de uma Igreja Ortodoxa independente em conversas com o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Pavel Klimkin, e insistiu que o Vaticano não tinha “intenção alguma” de avaliar “uma questão interna da Igreja Ortodoxa”.
Viktor Khroul, professor católico da Universidade Estadual de Moscou e ex-editor de um jornal católico, duvida que qualquer membro da hierarquia católica possa ser seriamente acusado de tomar partido, em vista dos recentes esforços do Papa para melhorar os laços com Cirilo I ao lado de suas calorosas relações com Bartolomeu I.
Mas pode ficar mais difícil para os católicos encontrarem parceiros ortodoxos, acredita Khroul, caso os líderes ortodoxos acabem ainda mais amargamente divididos.
Os católicos da Ucrânia já estão tendo problemas para trabalhar com os ortodoxos em projetos sociais e de caridade, ressalta Khroul. As dificuldades poderiam ser refletidas internacionalmente, já que as delegações ortodoxas rivais se recusam a trabalhar juntas para ajudar os cristãos no Oriente Médio, ou na Comissão Internacional para o Diálogo Teológico Católico-Ortodoxo.
“Enquanto Cirilo I, Hilarion e outros costumavam acusar os católicos de fazer proselitismo na Rússia e na Ucrânia, tais acusações não foram ouvidas recentemente”, disse Khroul ao NCR. “Mas será prejudicial se às relações com os católicos for atribuída uma importância menor, já que os ortodoxos acabam se concentrando inteiramente em seus problemas internos”.
Przeciszewski, o diretor da KAI, acha que a linguagem inflamatória usada por Hilarion e por outros não deve ser levada tão a sério. O mesmo vale para a constante insistência da Igreja Russa em seus direitos legais e canônicos - um princípio que, se aplicado literalmente, bloquearia permanentemente qualquer mudança.
O Patriarcado de Moscou reagiu com indignação semelhante quando a pequena Igreja Ortodoxa da Polônia se tornou independente em 1918, observa Przeciszewski, e quando a Estônia declarou sua autonomia nos anos 90 após o colapso do domínio soviético.
Em cada caso, apesar de toda a retórica raivosa, a situação logo voltou ao normal. Nenhuma quantidade de argumentos legalistas e canônicos pode alterar o fato de que os ucranianos são agora também independentes e soberanos, e que têm direito a sua própria igreja.
“Pessoas como Hilarion estão tentando assustar o mundo com conversas sobre resultados terríveis - essa é a política do medo que Moscou usa rotineiramente”, disse Przeciszewski ao NCR. “Na realidade, mesmo que Moscou ameace se retirar de tudo, isso não significa que vá. Os contatos com o Vaticano e com a Igreja Católica são importantes para que o Estado e a Igreja da Rússia fortaleçam sua posição no mundo. Não é do interesse de ninguém os afastar, muito menos quando o Papa Francisco está mostrando tanta boa vontade”.
De qualquer forma, os ucranianos estão avançando com os planos para a independência ortodoxa, que chegou um passo mais perto em 11 de outubro, quando o Patriarcado Ecumênico emitiu um decreto anulando a reivindicação de Moscou de três séculos de jurisdição sobre os cristãos ortodoxos na Ucrânia e formalmente restabelecendo sua própria stauropegion, ou missão, em Kiev.
O pequeno documento de cinco pontos confirmou a intenção de Bartolomeu I de prosseguir com a independência e disse que ele agora também aceitou petições de Filaret e Makariy Maletych, líderes das duas igrejas separatistas, para serem canonicamente reintegradas e terem seus seguidores restaurados para a plena comunhão ortodoxa. Apelou a todos os lados para que não se apropriassem das igrejas e das propriedades uns dos outros e evitassem atos de “violência e retaliação”.
Como esperado, o Santo Sínodo Ortodoxo Russo reagiu confirmando sua decisão de setembro de cortar relações, com Hilarion denunciando a ação de Constantinopla como uma violação “predatória” da unidade da Igreja.
Poroshenko prometeu proteção aos cristãos que se juntarem à nova Igreja, confiante de que isso demonstrará que “nenhum estado, muito menos um estrangeiro, pode intervir nos assuntos internos da Ucrânia”.
“Os representantes do patriarca ecumênico me asseguraram que o processo de concessão de autocefalia está próximo da conclusão. Estou certo de que já avançamos tanto até agora que isso não pode ser revertido”, disse o presidente ao parlamento ucraniano (Verkhovna Rada) no início de outubro.
“Nosso estado respeitará a escolha daqueles que decidirem permanecer na estrutura da igreja que mantém unidade com a Igreja Ortodoxa Russa. Mas eu também garanto que o estado protegerá os direitos dos padres e leigos que voluntariamente decidirem deixar de estar sob Moscou”.
Enquanto isso, as tensões entre os patriarcados de Moscou e Constantinopla não mostram sinais de apaziguamento.
Quando uma transcrição da cúpula de Istambul, de 31 de agosto, entre Bartolomeu I e Cirilo I foi publicada por uma agência ortodoxa grega, mostrou como a delegação russa havia rejeitado a ideia de uma “nação ucraniana separada”, insistindo que o governo de Poroshenko seria em breve derrubado pelos separatistas apoiados pelos russos.
“A concessão de autocefalia para a Igreja Ucraniana é uma questão não apenas para a Igreja de Constantinopla, mas diz respeito a todos os ortodoxos”, disse Cirilo I a Bartolomeu I, de acordo com a transcrição. “Pessoas que tomaram o poder em um golpe durante o período ‘Maidan’ estão pedindo a autocefalia para fortalecer sua autoridade, porque detêm o poder ilegalmente. É por isso que estão buscando apoio e prestígio do Patriarcado Ecumênico”.
No entanto, isso foi negado por Bartolomeu I, que insistiu que os ucranianos agora queriam “liberdade religiosamente plena, assim como a conseguiram politicamente”.
Bartolomeu I acusou Hilarion, que acompanhava Cirilo I, de “mentir conscientemente” ao alegar que ele havia aceitado subornos de Poroshenko. Ele alertou que a “atitude constantemente agressiva e hostil” de Hilarion prejudicaria a posição do Patriarcado de Moscou.
Uma pesquisa conjunta realizada em setembro pelos centros de pesquisa Razumkov e Socis, com sede em Kiev, e publicada pelo Religious News Service da Ucrânia, sugeriu que o apoio à igreja ligada a Moscou caiu para 16,9% dos ucranianos ortodoxos, com 45,2% se identificando com o dissidente Patriarcado de Kiev.
Mas Cirilo I apelou a outros líderes ortodoxos para que resistam às “ações unilaterais” do Patriarcado Ecumênico e apoiem o status quo, que faz da Ucrânia “parte do território da Igreja Russa”.
Enquanto isso, a troca de declarações inflamadas continua.
No início de outubro, um porta-voz da Igreja Ucraniana ligada a Moscou, Vasily Anisimov, acusou Bartolomeu I de ficar do lado dos greco-católicos em uma “união manchada de sangue com o Vaticano”, enquanto o sem rodeios Hilarion o acusou, em uma entrevista a um jornal, de uma “consciente e aberta imposição de poder através de reivindicações papistas”.
Khroul, o professor da Universidade de Moscou, acha que a melhor resposta católica será orar pelo fim da crise, ao mesmo tempo em que mantém distância dos lados conflitantes.
“Certamente enfrentaremos dificuldades em nossos futuros contatos”, disse Khroul ao NCR. “Mas talvez alguns Ortodoxos também olhem para a Igreja Católica mais favoravelmente agora, vendo como sua própria unidade interna, mesmo com vários ritos e tradições, contrasta com os profundos conflitos que ocorrem agora entre suas próprias igrejas”.
Przeciszewski está confiante em relação ao direito da Igreja Ortodoxa Ucraniana à autocefalia e ao direito do Patriarcado Ecumênico de concedê-la, e acredita que a posição do Patriarcado de Moscou contraria os princípios ortodoxos e apenas destaca sua estreita identificação com os interesses do Estado Russo.
“Agora que a Ucrânia é um país independente, a tradição ortodoxa exige que sua igreja seja independente também - não há absolutamente nenhuma justificativa para que permaneça subordinada a Moscou”, disse ele ao NCR. “Mas isso é uma questão para o mundo ortodoxo resolver - não deve afetar as relações com o Vaticano e a Igreja Católica. Nem, apesar de todos os protestos barulhentos, deve levar a uma terceira guerra mundial”.
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Católicos da Europa Oriental em meio a conflito interortodoxo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU