14 Setembro 2018
Mesmo que o Maio Francês [Maio de 68] tenha sido o emblema, durante a época foram realizadas mobilizações operário-estudantis semelhantes em mais de cem cidades. A pesquisadora analisa a que se deve essa sincronia, por que não houve revolução e que agenda os jovens de hoje propõem.
A entrevista é de Pablo Esteban, publicada por Página/12, 12-09-2018. A tradução é de Graziela Wolfart.
Para 1960, com um pomposo Estado de prosperidade e as matrículas escolares lotadas até estourar, os jovens dominavam um cenário social que, pela primeira vez, tinha-os como protagonistas. Os consumos culturais estavam na ordem do dia (jeans, rock e twist), as sexualidades floresciam e as novidades se acostumaram a viajar mais rápido a partir da expansão da TV. Ao mesmo tempo, a vitória da Revolução Cubana e os processos de descolonização na África e na Ásia pareciam colocar o mundo de pernas para o ar, em tempos onde “nada nem ninguém parecia permanecer em seu lugar”.
Embora o maio francês seja o fenômeno mais lembrado, na verdade, foram mais de cem as cidades que, ao longo de todo o planeta, participaram com mobilizações operário-estudantis. A efervescência social indicava aos jovens que eles estavam escrevendo a história e que a libertação do sistema capitalista opressor estava logo depois da esquina. Em 2018, a cinquenta anos desse memorável 1968 e a cem anos da Reforma Universitária, Página/12 conversou com Valeria Manzano – doutora em História Latino-americana (Indiana University), professora na Unsam e pesquisadora do Conicet – para explorar as luzes do passado e analisar, definitivamente, o que mais importa: qual é o papel da juventude na atualidade, com a reinserção dos garotos e garotas na política a partir de uma agenda feminista que marca o pulso.
Lembra-se o maio francês, mas na verdade foram em torno de cem as cidades dos diferentes continentes que participaram com mobilizações de estudantes e trabalhadores. Por que essa sincronia?
A simultaneidade é a chave para compreender as revoltas de 68. Na verdade, trata-se de um momento que inicia um ano antes e culmina um ano depois com a incorporação, por exemplo, do maio argentino de 69 (Cordobazo). A partir disso, para analisar como se produziram, ao mesmo tempo, estes fenômenos tão semelhantes e tão diferentes, é fundamental conhecer o sujeito social que os protagonizava. Tratava-se de estudantes e trabalhadores – geralmente – jovens.
Neste sentido, o que aconteceu na França se reproduziu no restante dos países, ou não tem muito a ver?
Penso que as manifestações não são produto de efeito dominó. De fato, as diversas cidades que organizavam seus protestos não necessariamente imitaram o que acontecia na França. Na América Latina, por exemplo, não existem vasos comunicantes que relacionem as explosões domésticas com as produzidas na outra margem do Atlântico. Na Europa, talvez, seja um pouco diferente, já que as lideranças estudantis dos países centrais – como a Alemanha, Inglaterra, Itália, França – construíram canais efetivos de interconexão e organização.
De modo que, para compreender as causas da sincronia, é preciso viajar mais longe no tempo. Em que medida os acontecimentos e fenômenos dos anos 50 serviram para preparar a cena que viria uma década depois?
Embora se costume pensar que 1968 tem um caráter de fundação, na medida em que a França parece inaugurar uma nova época e o desenvolvimento de novas subjetividades, existe uma multiplicidade de transformações socioculturais e políticas que, na verdade, iniciaram em décadas anteriores. A expansão da escolarização secundária e universitária funciona como solo fértil e acarreta em demandas antiautoritárias e de transformação curricular que atravessa todos os movimentos. Da mesma maneira, a explosão das comunicações (com a expansão da TV) habilita a disseminação de novos sentidos e significados (modas, estilos, pautas culturais) para públicos massivamente juvenis. Os jovens começam a problematizar o lugar que se previa para cada um na sociedade, em um marco de novas possibilidades de mobilidade social ascendente.
Como você comenta em alguns de seus trabalhos, eram épocas onde “nada nem ninguém parecia permanecer em seu lugar”...
Exatamente, era legítimo pensar assim. Tinha-se a percepção de que a mudança estava próxima e, na verdade, era necessário se preparar da melhor forma possível. Afirmar que “os filhos estariam em melhores condições que os pais” era uma frase típica que fazia parte da linguagem da época e do senso comum. Eram tempos em que se privilegiava “a busca do outro” político e cultural que se explicitava nas bases. Um exemplo contracultural básico é a exploração por parte dos Beatles, ou, do próprio Caetano Veloso, da filosofia oriental, assim como de outros espaços aos quais o público não estava acostumado. Na política acontece a mesma coisa, o panteão de heróis de 1968 tem referências no Terceiro Mundo: Ho Chí Minh, Che Guevara e Mao eram as figuras preferidas e mais referenciadas.
Apesar do caráter transnacional das revoltas, cada mobilização teve suas próprias características. Penso nas diferenças entre o maio francês e o Cordobazo: enquanto que a primeira muitas vezes se define como “mais cultural”, a segunda seria “mais política”.
Na Europa, a ênfase na trama cultural de 1968 faz parte de uma onda interpretativa que se sedimentou. Do meu ponto de vista, na realidade estiveram muito mais presentes os ingredientes políticos do que se tende a pensar quando se recuperam os slogans mais comuns como “A imaginação ao poder”, ou “debaixo do asfalto está a praia”. Nas próprias formas de contracultura cotidianas emergiam dimensões políticas muito fortes. Além disso, não podemos esquecer os comitês de ação operário-estudantil distribuídos por todo o território francês. Por outro lado, nas experiências latino-americanas do México, Uruguai e Argentina, a aresta contracultural não está tão visível como está a linguagem antiestatal e antiautoritária mediada por ações políticas de confrontação.
Aparentemente, tratava-se de um contexto em que a revolução parecia estar logo depois da esquina. Por que não prosperou e se evaporou tão rapidamente?
Existia uma autorização social para pensar na mudança, de forma que as transformações eram esperadas com entusiasmo e positividade. Para além da esquerda, que desde sua existência insistiu em modificar o estado das coisas do capitalismo, somam-se vetores fundamentais. A juventude, os povos descolonizados e as mulheres, ao seu tempo, questionam a validade do sujeito universal. Todo mundo empregava o termo “revolução”, inclusive o próprio Onganía o utilizou para denominar sua irrupção no governo. O problema foi que se depositou sobre os jovens todas as expectativas profundas da modificação do status quo e se fecharam logo a partir de derrotas políticas e de condições econômicas internacionais desfavoráveis.
A efervescência passa rápido.
Isso mesmo. O plano de luta e resistência é mais fácil de desenhar; o problema é o que fazer se a revolução vencer. Além disso, evidentemente, não podemos esquecer que as aspirações revolucionárias culminaram com a ação estatal repressiva. Enquanto que na Europa se desenvolveram fenômenos de cooptação estatal leves, na América Latina a situação foi muito mais violenta com a forte repressão (por exemplo, Tlatelolco, no México) e a implantação posterior das ditaduras.
Que reflexão pode ser feita nestes cinquenta anos? Que lugar as juventudes ocupam hoje?
Durante os anos 90 se pensava na declinação da participação juvenil na política e se advertia que os jovens marcassem suas presenças a partir de produções culturais em conversas, sociedades de fomento, clubes e outras formas de agregação da vizinhança. Ao contrário, se observamos os últimos 15 anos, se percebe um retorno massivo a organismos clássicos, como o movimento estudantil e dos partidos políticos.
Além disso, com uma agenda renovada.
Sim, claro. O ativismo feminista, mediado por uma linguagem inclusiva que questiona as práticas tradicionais de comunicação, desde as escolas, e em uma multiplicidade de contextos marca um ponto de inflexão muito importante. Ao mesmo tempo, e diferente do que ocorria nos anos 60, hoje a juventude é estigmatizada e suas práticas são questionadas em cada intervenção pública e midiática. Por isso, em 2018, a participação juvenil se torna duplamente valiosa, na medida em que deve ser continuamente apoiada e fortalecida.
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A juventude (não) é história. Entrevista com Valeria Manzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU