14 Agosto 2018
"Os errantes não são uma classe. Não são uma raça. Não são "a multidão". Eu diria que são uma parte móvel da humanidade, suspensa entre a violência do desenraizamento e a da repressão", escreve Étienne Balibar, filósofo francês, em artigo publico por il manifesto, 12-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
No Mediterrâneo, a situação é cada vez mais tensa. Um massacre diário, parcialmente disfarçado. Estados que, pelo seu lado, instituem ou toleram práticas de eliminação que a história julgará, sem dúvida, como criminosas. Ao mesmo tempo, são tomadas iniciativas que incorporam o esforço pela solidariedade da "sociedade civil": cidades-abrigo, "passeurs de humanidade", navios de resgate muitas vezes forçados à guerrilha contra a hostilidade das autoridades públicas. Essa situação também existe em outras partes do mundo. Mas para nós, cidadãos europeus, reveste-se de um significado e tem uma urgência especial.
Ela exige uma nova fundação de direito internacional, orientado para o reconhecimento da hospitalidade como um "direito fundamental" que imponha aos Estados obrigações, cujo alcance seja pelo menos igual ao das grandes proclamações do pós-guerra (1945,1948,1951). Devemos, portanto, discutir sobre isso.
Em primeiro lugar, de quem estamos falando? De "refugiados", "migrantes" ou outra categoria que os inclua? É bem sabido que essas distinções estão no centro das práticas administrativas e de sua contestação. Mas, acima de tudo, pela forma como nomeamos os seres humanos que temos de proteger ou bloquear, também depende o tipo de direitos que nós reconhecemos a eles e o modo como qualificamos o fato de privá-los deles. O termo que proponho é de errantes. Eu me atrevo a falar de errância migratória ou “migrância” ao invés de "migração". O direito internacional da hospitalidade deve ser estendido aos errantes de nossa sociedade mundializada, refletir as características das errâncias migratórias como tais, com particular atenção às violências que se concentram nos percursos.
Vários argumentos seguem nessa direção. Em primeiro lugar, a obsessão pela rejeição da imigração chamada ilegal e a identificação dos "falsos refugiados" levou a uma "inversão do direito de asilo" (Jérôme Valluy). As autoridades estão usando a categoria de 'refugiado' não para organizar o acolhimento de pessoas que fogem da crueldade de sua existência, mas para deslegitimar qualquer um que não corresponda a determinados critérios formais ou não saiba como responder adequadamente a um interrogatório. Mas isso não seria possível se os critérios oficiais não fossem extraordinariamente restritivos, de modo a separar a concessão do estatuto de refugiado do direito de circulação, colocando ao mesmo tempo a soberania dos estados fora de qualquer possibilidade de realmente ser contestada. Não há lugar para condições como a guerra civil ou guerra econômica, a ditadura ou a restrição da democracia ou a catástrofe ambiental, todas estas situações que hoje estão na raiz da errância. Além disso, ao negar essas realidades, além de fazer violência contra aqueles que as vivem, os estados transformam massas de migrantes em refugiados sem abrigo, expulsos de um campo para outro. Esses são usos (e maus usos) que são feitos dessa distinção que nos obriga hoje a repensar o problema, a dar uma solução que também tem aspectos legais.
Sobre esse tema, várias justificativas são invocadas. Uma concepção humanista afirmará que a liberdade de circulação é um dos direitos humanos, tão fundamental quanto a liberdade de expressão ou o habeas corpus. Isso exigirá que os Estados ponham o mínimo de obstáculos possível.
Uma concepção liberal expressará a mesma necessidade em termos de "deixar passar", que se aplica tanto a seres humanos como para as mercadorias, os capitais ou as informações. Nas variantes igualitárias, insistirá na injustiça que existe em reservar o direito de mudar de residência para os ricos e os poderosos, excluindo os pobres e os explorados. Todos esses argumentos não carecem de força ou fundamento, mas não me parecem que abordem a especificidade da ‘migrância’ contemporânea, porque neutralizam o choque entre situações de miséria e as intervenções estatais que as confrontam.
Muito mais pertinente parece-me ser a aplicação rigorosa dos conceitos contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em relação à circulação, à residência e ao asilo: por um lado, por causa da lógica que consiste em correlacionar os direitos de sinal contrário (como o direito de emigrar e o direito de retorno), por outro, por causa da preocupação de não criar indivíduos sem direitos ou não-pessoas. A principal limitação aqui é que fazem do pertencimento nacional e da soberania territorial o horizonte absoluto para os dispositivos de proteção das pessoas, enquanto que na presente situação, a necessidade óbvia é a de limitar o arbítrio dos estados, opondo contra-poderes legítimos, internacionalmente reconhecidos. Por isso, sugiro ir além desses textos, dando corpo a um direito de hospitalidade, cujo princípio é que os errantes (e aqueles que lhes prestam socorro) podem reivindicar obrigações do próprio estado "soberano", de modo que a sua dignidade e segurança não sejam, como hoje, sistematicamente esmagadas.
É igualmente necessário referir-se aqui a uma das principais fórmulas de 1948: "todo indivíduo tem o direito, em toda parte, ao reconhecimento de sua personalidade jurídica" (Artigo 6 da Declaração Universal).
Em todo lugar também significa nos departamentos de imigração, durante um controle de fronteira, em um campo de refugiados e, se possível, até mesmo no fundo de um bote que está à deriva em alto mar ... É aqui que é preciso pedir à autoridade que respeite suas obrigações, mas é também aqui que é preciso resistir, por causa da tendência específica de sacrificar os direitos humanos às exigências "securitárias". O princípio dos princípios é que os migrantes em situação de errância gozam de direitos concretos que podem se opor às leis e regulamentos estatais, o que implica que também podem defender-se ou fazer-se representar perante uma jurisdição ad hoc ou de direito comum.
A partir desse princípio resultariam consequências de várias ordens:
a) a proibição de rejeição: não apenas os errantes não podem ser violentamente repelidos de uma fronteira ou uma costa, mas também devem poder expressar as suas necessidades em condições em que seja respeitada a sua dignidade, a integridade corporal, a autonomia individual e seja levado em consideração o sofrimento passado. O "ônus da prova" não deve ficar a cargo dos errantes, mas dos estados que hesitam em acolhê-los.
b) os estados e a polícia que operam nas fronteiras ou dentro de um território não devem brutalizar os errantes: noção infelizmente muito ampla, que varia da violência contra indivíduos sem documentos até a criação daquilo que a atual primeira ministra britânica Theresa May chamou de "hostile environment", um ambiente hostil para os estrangeiros, através do fechamento dos campos e da separação das famílias.
c) os estados não devem elaborar listas de países de origem, cujos cidadãos tenham a priori uma proibição para entrar, com base em critérios raciais, culturais, religiosos ou geopolíticos (apesar da necessidade dos estados de se prevenir contra ações terroristas às quais a ‘errância’ poderia servir de cobertura).
d) as operações militares não devem tentar destruir as organizações ou redes de passeurs, colocando em risco a vida dos errantes, que são as vítimas e não os contratantes. Naturalmente, as decisões que impedem operações de socorro ou tentam fazê-las fracassar, devem ser consideradas como cumplicidade criminosa (crimes contra a humanidade).
e) os estados, para lavar as mãos, não devem terceirizar a "gestão" dos fluxos de migrantes e refugiados. Em particular, não devem negociar com países terceiros, definido pelas circunstâncias como “seguros”, acordos de permuta (retenção forçada através de subsídios), que, de modo inconfessável, os rebaixam ao mesmo nível dos "passeurs" mafiosos de quem denunciam as atividades.
Essas disposições colocam principalmente limites e proibições, em vez de prescrever comportamentos. Isso é consistente com a natureza do discurso jurídico quando se trata de retificar violência ou abuso. Não se trata de por um fim por decreto para a errância dos migrantes e requerentes de asilo, nem de desconsiderar as causas que provocaram o êxodo. Mas é uma questão de impedir que, com a desculpa de hierarquizar as causas, a política dos estados transforme o êxodo em um processo de eliminação. Os migrantes em errância e aqueles que vêm em seu auxílio devem ter o direito do seu lado, em seus esforços para resistir. É pouco - mas talvez seja muito.
Não existe um direito à hospitalidade, pois é uma disposição coletiva que depende da liberdade, uma "responsabilidade compartilhada" (M.Delmas-Marty). Mas é preciso desenvolver o direito à hospitalidade, uma atividade cívica de pleno direito, devido à urgência da situação. Indo além da proposta kantiana de um "direito cosmopolita" limitado ao direito de visita, generalizaria a norma fundamental: os estrangeiros não deveriam ser tratados como inimigos.
Infelizmente, esse é justamente o efeito das políticas de um número crescente de estados contra a ‘migrância’ global.
Os errantes não são uma classe. Não são uma raça. Não são "a multidão". Eu diria que são uma parte móvel da humanidade, suspensa entre a violência do desenraizamento e a da repressão. É apenas uma parte da população mundial (uma pequena parte do resto), mas altamente representativa, uma vez que sua condição concentra os efeitos de todas as desigualdades mundiais atuais e porque é a portadora daquilo que Jacques Rancière denominou a “parte dos sem parte", ou seja, a falta de direitos que é preciso preencher para que finalmente haja igualdade na humanidade. É uma questão de saber se a humanidade vai expulsar essa parte de si mesma ou se vai integrar as suas exigências na ordem política, no seu sistema de valores. É uma escolha de civilidade. É a nossa escolha.
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Por um direito internacional da hospitalidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU