Por: João Vitor Santos | Tradução Sandra Dall'Onder | 24 Dezembro 2016
O estado de crises em que o mundo parece mergulhado, de problemas humanitários a políticos e econômico-sociais, pode ser resumido como “crise global de hospitalidade”. É nesse sentido que vai a perspectiva do professor e teólogo italiano Marco Dal Corso. “Trata-se de uma crise cultural e, talvez, espiritual, antes de uma crise social e política. Se isso é verdade, precisamos repensar nossas categorias fundantes, pelo menos aquelas sobre as quais construímos a chamada cultura ocidental”, explica. Desde a perspectiva teológica, acredita que “a hospitalidade como princípio pode ajudar a repensar também a própria comunidade: quando as relações econômicas não são medidas pela posse, aquelas políticas determinadas pelas fronteiras e pela pátria e as religiosas com a pretensão de deter a verdade”. Para ele, nesta lógica, a hospitalidade também “ajuda a recriar o ecumenismo cristão e, como aprendemos com a América Latina, o macroecumenismo com as outras religiões”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor usa o texto bíblico da tenda de Abraão para, a partir dele, refletir sobre a hospitalidade hoje. Assim, para Corso, a partir dessa narrativa de Gênesis, “podemos observar algumas características principais sobre a pessoa hospitaleira. Antes de tudo, manter a porta aberta. A tenda de Abraão não tem chaves para fechá-la, mas portas que abrem”. Ele ainda vai à cultura de povos originais para observar outros princípios hospitaleiros que podem inspirar a mudança do paradigma contemporâneo. É o caso de algumas tribos africanas, em que a hospitalidade “acontece em um lugar vital para todo o vilarejo quase como se quisesse lembrar, viver e dar um conteúdo experiencial ao pensamento hospitaleiro que sustenta a prática da hospitalidade: eu sou porque nós somos”. O professor ainda reflete sobre a mudança de época em que vivemos. É verdade que essa mudança gera um tempo de crises, mas que podem incitar a pensar noutra lógica de humanidade. “A crise da nossa época, como dito, é uma crise espiritual antes de ser social. As igrejas e as comunidades religiosas em geral são chamadas a dar uma resposta”, reflete.
Dal Corso | Foto: Festival Comunitá Educante
Marco Dal Corso é teólogo, professor de religião em uma escola secundária em Verona, Itália, e professor visitante do Instituto de Estudos Ecumênicos "San Bernardino" em Veneza. Também é membro da equipe editorial de Estudos Ecumênicos e EMC Mondialità; Pazzini Editore, onde dirige a série "Frontiere" (Fronteiras, em tradução livre). Ele é o autor de vários livros, entre eles, L'ospitalità come principio ecumenico (Verucchio, Itália: Pazzini, 2008) e Per un cristianesimo altro. Le esperienze religiose amerindie (Verucchio, Itália: Pazzini, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o conceito de hospitalidade? E como entender este conceito em relação à realidade de hoje?
Marco Dal Corso - Há uma crise global de hospitalidade que solicita, antes ainda de agir, que pensemos de forma diferente, mais além e ainda mais. Trata-se de uma crise cultural e, talvez, espiritual, antes de uma crise social e política. Se isso é verdade, precisamos repensar nossas categorias fundantes, pelo menos aquelas sobre as quais construímos a chamada cultura ocidental. Na busca de um novo pensamento uma importante contribuição pode ser dada pelo pensamento bíblico, se liberado da "gaiola" helenística, assim entendida por muito tempo. Assim, podemos nos confrontar, como nos advertem os intelectuais mais sensíveis (Levinas [1], Derrida [2]...) com o paradigma sobre a identidade e seu mito, que seria a base da crise de hospitalidade que hoje vemos os efeitos e consequências.
O pensamento bíblico deselenizado [3] vai além da identidade racional do pensamento grego, está concentrado no ser e nos chama a “tornar-se o que és”. Mas vai ainda além da identidade moderna que centraliza o eu, promovendo a autocriação do sujeito, agora autônomo e projetual, senhor da história e do seu destino. O apelo bíblico identitário não para diante da subjetividade lúdica do pós-moderno, cujo “pensamento frágil” quer contestar a crise das grandes narrativas. O bíblico é de fato um apelo à responsabilidade onde a identidade se constrói no ser para o outro. Neste sentido, a narrativa bíblica aparece como real contestação em relação ao pensamento moderno ocidental: o humano, para a bíblia, não termina na lógica do ser, mas na sua superação. Aparece como uma real contestação em relação ao pensamento moderno. Vem a ser o ser para o outro [4].
Enfim, a hospitalidade não é, segundo a lógica bíblica, uma exortação moral, mas uma característica fundante da crença. A hospitalidade é, em qualquer caso, um imperativo ético, não jurídico, é o que distingue a dinâmica religiosa que tende a transformar em lei o amor ao próximo daquele da fé, que coloca o amor ao próximo como critério para julgar a lei. É por isso que o mandamento bíblico para a hospitalidade é um convite e não uma obrigação. Nenhuma lei, nenhuma cultura, nenhuma teologia a satisfaz completamente; continua a ser um convite para ouvir e satisfazer e com o qual se, ao menos, confrontar. A obrigação da hospitalidade não é baseada no estatuto do crente, mas no direito do pobre. Por isto, acreditar é diferente de pertencer, e a justiça, conforme a sensibilidade judaica, tem a primazia sobre a liturgia como a ética sobre a religião.
IHU On-Line - De que forma a perspectiva da hospitalidade pode contribuir para o debate sobre o diálogo inter-religioso?
Marco Dal Corso - Enquanto a urgência do diálogo aparece de forma evidente (não somente sócio-político, em tempos de fundamentalismo globalizado, mas também e até mais na questão cultural e religiosa), ao mesmo tempo cada tradição espiritual defronte ao pluralismo cultural e religioso é chamada a reconsiderar de forma crítica os seus escritos, as suas tradições doutrinais e morais, e gozar da biodiversidade religiosa, da presença difusa do Espírito… Se as antigas verdades das religiões não mudam, o que deve mudar são as práticas sociais e culturais. Na história as religiões já modificaram, por exemplo, as suas posições sobre a escravidão, discriminação racial, a situação da mulher, a relação com a ciência, a centralização do rito e as suas formas históricas…
A urgência histórica e humanitária não pode nos deixar esquecer que estamos diante de uma mudança de paradigma. Por isto a hospitalidade não se propõe simplesmente como uma postura, mas antes de tudo como um pensamento, um paradigma diferente. Os que foram utilizados até aqui ou insistem sobre a dimensão identitária ou sobre a alteridade e a diferença, como emerge do estudo da teologia das religiões elaboradas até aqui. Trata-se de unir de outra forma identidade e alteridade.
Temos certeza de que o paradigma da hospitalidade pode responder a esta chamada do pluralismo: como uma identidade fruto da hospitalidade (“fui imaginado então existo”) é possível pensar em uma relação com o outro de tipo hospitaleira (segundo a qual o hipotético hostis-inimigo se torna hospes-hóspede). A teologia da hospitalidade (a ser quase toda escrita), não é outro capítulo da teologia das religiões onde o pluralismo é “de facto”, mas não “de iure”; se propõe então como uma reflexão que interroga o pluralismo, interpretando-o dentro da economia da salvação divina. O diálogo inter-religioso que virá deve ser “informado” a partir da teologia do pluralismo religioso cuja marca da hospitalidade se propõe como categoria fundante.
IHU On-Line - A hospitalidade pode ser entendida como um princípio ecumênico? Por quê?
Marco Dal Corso - Pensar e não somente praticar a hospitalidade comporta a adoção de uma série de “primazias”. A primeira é a eteronomia sobre a autonomia. Não significa renunciar a conquista moderna da autonomia, mas repensá-la de forma crítica. A “primazia” que auxilia na passagem do paradigma identitário (sobre o qual se constroem as políticas sociais) ao paradigma da hospitalidade, do paradigma da exclusão (como tema ideológico e cultural) ao da co-hospitalidade.
Segunda primazia é a do princípio da hospitalidade como responsabilidade (em relação ao outro) sobre a liberdade (do eu). Significa que a resposta às necessidades do outro é o caminho para encontrar a busca de sentido. A bíblia aqui diria: escolhe o bem e serás livre. Isto libera as relações de interesse e faz com que sejam possíveis como doação.
A hospitalidade entendida como princípio, indica uma terceira primazia: o da justiça sobre o amor. Mais uma vez, não porque o amor deixa de ser uma medida da vida da fé, ou somente a coerência com aquilo em que se acredita, mas porque o princípio da hospitalidade ajuda a passar de uma justiça radical interpretada como “do ut des” a uma justiça como gratuidade, assimetria, relações, como resposta radical aos problemas da injustiça estrutural e pessoal. Se levado a sério, o princípio da hospitalidade ajuda a repensar o divino: antes de ser invocado, Ele é advogado. Ao invés de distante, o divino é descoberto próximo a nós e antes de ser onipotente, Ele é descoberto como condescendente.
Mas o princípio da hospitalidade serve para repensar o humano: não mônade, nem absorvido pela totalidade, mas relação. E enfim, a hospitalidade como princípio pode ajudar a repensar também a própria comunidade: quando as relações econômicas não são medidas pela posse, aquelas políticas determinadas pelas fronteiras e pela pátria e as religiosas com a pretensão de deter a verdade. Nesta perspectiva a hospitalidade ajuda a recriar o ecumenismo cristão e, como aprendemos com a América Latina, o macroecumenismo com as outras religiões.
IHU On-Line - Quais as reflexões sobre a hospitalidade que nos podem ser indicadas pelo texto sobre a tenda de Abraão (Gênesis 18)?
Marco Dal Corso - A passagem de Gen, 18 foi interpretada como uma narrativa paradigmática da hospitalidade e não poderia ser diferente. Uma narrativa muito comentada, onde, todavia, podemos observar algumas características principais sobre a pessoa hospitaleira. Antes de tudo, manter a porta aberta. A tenda de Abraão não tem chaves para fechá-la, mas portas que abrem.
Depois, a pessoa hospitaleira, conforme o exemplo de Abraão, é a que dá as boas-vindas: consciente, isto é, que a pessoa que chega, como diz a palavra, traz o “bem” para a casa. Além disso, a pessoa hospitaleira se dá conta daquilo que o outro necessita. Ou seja, tem uma capacidade empática, que vai além da tolerância ou da indiferença: o outro “é importante para ele”.
Enfim, a pessoa hospitaleira aprende com Abraão e com a sua esposa a dar espaço para o outro e doar aquilo que tem, ensinando a despojar-se dos bens. Como Abraão, a pessoa hospitaleira sabe que estar mais próximo de Deus é salvar os homens, por isto, acolher e servir o hóspede é mais importante que acolher e servir a Deus. Em outras palavras: a justiça goza de uma primazia sobre a liturgia. Por isto, como diz o Papa Francisco, afirmar que a “Igreja é um hospital de campanha” (para todos os feridos, também os estrangeiros) não é uma metáfora edificante, mas uma afirmação teológica coerente.
IHU On-Line - Podemos associar a destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis 18-20) à ideia de hostilidade ou não hospitalidade plena? E quais associações podemos fazer com o tempo atual de conflitos e não acolhimento aos estrangeiros?
Marco Dal Corso - A Bíblia, como outros códigos culturais antigos, narra em várias ocasiões a prática da hospitalidade. A história de Lot [5], após a de Abraão, que recebe em sua tenda dois personagens desconhecidos, é uma dessas ocasiões. A narrativa tem sido muitas vezes interpretada com o registro ético-sexual: quando a culpa dos habitantes de Sodoma seria a sua tentativa de abuso sexual em relação aos estrangeiros. Tal interpretação, no entanto, aprisiona o texto em relação a sua mensagem real, como observado pelos estudiosos bíblicos há tempos. A culpa dos sodomitas está na violação da hospitalidade e na destruição da cidade e dos seus habitantes, mais que um sinal da vontade punitiva e vingativa dos hóspedes ofendidos, propõe-se uma metáfora da morte da pessoa que não é acolhedora.
Hospedar, mais uma vez, não é um simples ato generoso, mas uma experiência geradora, tanto para quem hospeda como para quem é recebido. Negar-se a acolher, conduz à própria morte, ao fechamento, a não realização de si, conforme a Bíblia. Que, ao contrário de outras literaturas, quando narra, como neste episódio, que no centro do pedido de hospitalidade está o estrangeiro (estes são os dois personagens de que falamos) indica o estrangeiro não simplesmente como um lugar social, mas como um lugar teológico: Deus se revela no estrangeiro. Porque hospedar é sair de si mesmo, é escolher amar de forma assimétrica como se ama a Deus.
Se esta hermenêutica bíblica se sustenta, a sua mensagem chega até aos nossos dias. A não hospitalidade destes “dias ruins” antes de ser um problema dos outros, é um problema para mim: todas as comunidades que se fecham estão destinadas à "morte". E a crise da nossa época, como dito, é uma crise espiritual antes de ser social. As igrejas e as comunidades religiosas em geral são chamadas a dar uma resposta.
IHU On-Line - Na cultura dos povos indígenas, como é o conceito de hospitalidade? Quais relações são estabelecidas a partir desse contato com o outro?
Marco Dal Corso - Porque, como disse Eliade [6], a experiência do sagrado está diretamente ligada ao esforço do ser humano em construir um mundo que faça sentido, podemos nos dirigir aos mundos tradicionais e aos povos originários não como uma comparação exótica (quase como uma viagem no tempo e em um mundo que não existe mais), mas como uma comparação com uma outra lógica, capaz de ficar à frente dos problemas de hoje e indicar perspectivas para o futuro. Podemos aprender com eles e descobrir, por exemplo, que a hospitalidade africana não é somente um comportamento, mas é, sobretudo, um tema: que a prática da hospitalidade seja como um dote, isto é, um pensamento hospitaleiro.
Uma tradução exemplar disto poderia ser a experiência dos povos Bapunu entre Gabon e Congo Brazzaville. Estes, assim como outros povos africanos, dispõem de uma verdadeira estrutura para a hospitalidade no vilarejo. Nos referimos ao caso do Mulebi [7]. Uma das máximas dos Bapunu, é: “Quando estás prestes a te sentar à mesa, deves olhar para a entrada do vilarejo. Talvez esteja chegando um forasteiro.” (U ji wi ji dissu o kodu dimbu). “Enquanto comes, pense no estrangeiro, que pode aparecer de um momento para o outro”.
Enfim, a hospitalidade na África tem uma estrutura, acontece em um lugar vital para todo o vilarejo quase como se quisesse lembrar, viver e dar um conteúdo experiencial ao pensamento hospitaleiro que sustenta a prática da hospitalidade: eu sou porque nós somos. E talvez, retomando e transpondo o famoso axioma de memória cartesiana: não o “penso, logo existo”, mas “fui pensado, então existo”. A contribuição do pensamento “outro” africano aparece desde o início: repensar a metafísica ou a base do ser humano. Se isto se aplica às religiões tradicionais africanas, mesmo os povos nativos e os mundos tradicionais da América Latina podem contribuir para repensar a relação com o outro. Em pelo menos dois aspectos.
O primeiro é, por exemplo, repensar a pessoa dentro de tramas relacionais também com o meio ambiente. A visão política filosófica ocidental não tem incidido sobre a relação do ser humano com a natureza, exceto pela recente "preocupação ecológica” [8]. A democracia ocidental, em suma, parece fazer pouco caso do ambiente onde vivem os homens. Os habitantes dos Andes, por outro lado, sabem que Pacha Mama é a noiva mística do Céu e que o Céu é fecundado pelo sol e pela chuva. É a manifestação da energia cósmica "feminina", a manifestação da função "materna" da divindade. Todos os seres vivos — plantas, animais, homens — são gerados pela Mãe Terra e por ela alimentados. Por isso, a terra pode ser utilizada somente como usufruto. O eu hospedado deve saber que é o guardião, e não o proprietário da criação, diria a Bíblia.
A segunda contribuição, olhando para o mundo tradicional na terra de Abya-Yala, é ajudar a repensar o destino comum dos bens. A sociedade globalizada atual corre o risco de "perder o mundo", porque, entre outras coisas, perdeu o sentido do bem comum. Nas festas indígenas, a instituição do mordomo, ou seja, do festeiro, refere-se ao princípio da redistribuição dos bens. Na verdade, ele tem à sua disposição um ano inteiro, onde toda a sua energia e a força de trabalho da família servem para acumular o necessário para preparar grandes quantidades de comida e bebida para ser consumida durante o dia, ou nos dias da festa. Durante o ano qualquer necessidade pessoal, mesmo que legítima, está subordinada à tarefa que a comunidade destinou ao mordomo. Este, no final do ano, terá acumulado (às vezes contraindo dívidas) tal quantidade de gêneros alimentícios (milho, farinha, carne, cocaína, álcool), tornando-se a pessoa mais “rica” do vilarejo, mas esta riqueza é passageira. Durante a festa, o mordomo gasta todas as suas provisões, e assim, o mais rico se torna o mais pobre da comunidade. Terminada a festa, outro candidato tomará seu lugar e começará a trabalhar, economizar, acumular para que a festa do próximo ano seja boa para todos. O santo patrono, por sua vez, aceita este ano de tantos sacrifícios destinados ao bem da comunidade como uma prova de amor em relação a ele e recompensa aqueles que se submetem, abençoando os seus campos e os seus animais.
Antes de ser um costume cultural interessante para os turistas, a tradição do “festeiro” lembra a sociedade ocidental sobre o significado de mundo, que está no compartilhamento e não no amealhar bens. A Bíblia diria que o eu hospitaleiro pode ser recebido e também acolher. Pode, conforme o misticismo bíblico, “ter tudo sem ter nada”. Os bens são para todos. Enfim, para um pensamento ocidental centrado no hoje e desprovido de responsabilidade em relação ao futuro, quase incapaz de pensar na “dívida intergeracional”, existe outro pensamento, falado anteriormente, ligado ao seu “papel” hospitaleiro, que tem responsabilidades em relação ao futuro. Somente desta forma creio que exista um sentido em pensar nos povos originários, suas culturas e cosmovisões.
IHU On-Line - Quais são os desafios para praticar a hospitalidade no ambiente cotidiano?
Marco Dal Corso - Mais do que desafios, eu falaria, seguindo a escola de Panikkar, em interpelações. A referência aos místicos e intelectuais como Raimon Panikkar [9] pode nos ser útil na identificação. A experiência da hospitalidade que viveram, por exemplo, nos faz entender — como disse Massignon [10], definido como um “muçulmano católico” por Paulo VI [11] — que para compreender o outro não é necessário integrá-lo, é necessário ser seu hóspede. A verdade é encontrada somente através da hospitalidade.
Da experiência do diálogo hospitaleiro somos chamados à nossa liminaridade, a habitar a terra do meio, como lembra a fascinante e dramática parábola de Henri le Saux, monge beneditino que habitou o coração da espiritualidade hindu. Aprendemos também que participar do diálogo é o mesmo que frequentar um lugar inquietante, porque somos chamados a mudar a nossa própria autocompreensão, se quisermos entender seriamente a posição do outro, como diz Panikkar.
Outra máxima hospitaleira é o testemunho de Simone Weil [12] , capaz de atingir o mundo todo: nada está descartado, nenhuma dúvida e, sobretudo, nenhuma pessoa. Na escola de Teilhard de Chardin [13], no entanto, podemos aprender e tentar traduzir no nosso ambiente quotidiano e na nossa vida comum que só uma verdadeira paixão pela vida, pela matéria e pelo mundo, pode ajudar a compreender a presença de Deus em tudo. Desesperar-se no presente, então, é uma traição da mística da hospitalidade, lição admirável dada pelo grande monge que foi Thomas Merton [14].
E, finalmente, neste esboço de interpelações que resultam da "mística da hospitalidade", onde estamos conscientes de que a vida contemplativa politiza a fé. Uma mística de olhos abertos como no diálogo e no encontro com o outro, que não pode ser neutro conforme as poesias de outro místico contemporâneo, Ernesto Cardenal [15]. Seu compromisso político é o resultado de uma introspecção espiritual profunda. Nós seremos capazes de praticar a hospitalidade em nossas vidas diárias, se entendermos e vivermos a mística.
IHU On-Line - Como a perspectiva teológica da hospitalidade pode contribuir para reflexões sobre a crise dos migrantes?
Marco Dal Corso - Para responder a esta pergunta, gostaria de indicar o projeto de pesquisa sobre a “teologia da hospitalidade" que um grupo de pesquisadores, teólogos, pastores e laicos estão fazendo a algum tempo, coordenados por alguns professores do Instituto de Estudos Ecumênicos - ISE San Bernardino em Veneza. Aproveito para dizer que o projeto está aberto para todas as colaborações, também em solo brasileiro. O porquê de analisar a hospitalidade tem a ver com a pergunta anterior. Nós nos perguntamos: por que precisamos de um novo paradigma? E as nossas respostas iniciais foram:
Este mundo de hoje é globalizado, interligado não somente de forma cultural, mas também religiosa, onde os conflitos não são mais determinados (somente) pelas ideologias econômicas e políticas, mas também pelas identidades reativas onde as religiões tiveram e (têm) uma colaboração significativa. É necessária uma nova autocompreensão das religiões para ajudar e favorecer a conivência entre as pessoas (a atual autocompreensão das religiões ainda é um obstáculo à convivência). Uma crença hospitaleira ajuda na convivência entre as nações.
É necessário superar as formas históricas do passado se quisermos acompanhar os novos tempos de pluralismo religioso. Na história as religiões já modificaram, mudaram, repensaram diversos temas/problemas (por exemplo, escravidão, igualdade de gênero, relação com a ciência...). Nesta “mudança de época” (muito mais que época de mudanças), deve-se ter um novo pensamento, além do que foi herdado (também teologicamente). Uma crença hospitaleira é o futuro do diálogo inter-religioso.
Mesmo tendo ultrapassado o pensamento exclusivista (“em nome de Deus” e “pela sua glória”), não superamos ainda a mania de superioridade, da pouca valorização das outras religiões, do fechamento no seu próprio modo de pensar, da incapacidade de dialogar inter-religiosamente (modalidade operacional derivada de um pensamento inclusivo). Uma crença hospitaleira, ao contrário, não quer ser privada da força espiritual das diversas tradições religiosas e culturais: as riquezas espirituais são para todos.
Um novo princípio para o dialogo inter-religioso não pode ser somente uma preocupação intraeclesiástica ou um tema interno, das religiões. A busca por um novo modo de pensar (e de viver) o diálogo inter-religioso é um tema de tipo civil, político e humanitário. A contribuição da teologia pública para a cidade a serviço do crescimento espiritual (e cultural) da humanidade. A crença hospitaleira é uma modalidade pública e política das tradições religiosas e culturais.
Estes porquês querem responder à crise não somente dos migrantes, mas a crise da sociedade em geral.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo?
Marco Dal Corso - Para concluir, me permito indicar alguns textos, cuja edição está em língua italiana, que passam pelos temas tratados aqui e que, sobretudo, testemunham a pesquisa sobre a categoria da hospitalidade, que há algum tempo envolve os meus interesses e pesquisas. O primeiro é assinado juntamente pelo amigo e teólogo Placido Sgroi [16], L’ospitalità come principio ecumenico (Pazzini, 2008), onde o “pensamento hospitaleiro” é interpretado como pensamento recriador também para o ecumenismo.
Em relação à hospitalidade e, sobretudo sobre a sua negação, temos dois textos: Per un cristianesimo altro: le esperienze religiose amerindie (Pazzini, 2007), onde, partindo do sul do mundo, tenta-se contar uma outra forma de vida e interpretar o cristianismo; apresento, ainda, uma outra lógica cultural e religiosa dos povos originários em Religioni Tradizionali (EMI, 2013). Sobre a pedagogia inter-religiosa temos ainda o caderno monográfico de estudos ecumênicos intitulado Per una pedagogia del dialogo interreligioso (ISE San Bernardino, 2014); e a reflexão teológica em relação às religiões, onde podemos pensar em uma verdadeira teologia da hospitalidade está no volume de Brunetto Salvarani Molte volte e in diversi modi: manuale di dialogo inter-religioso (Cittadella, 2016). Por fim, gostaria de citar que a próxima edição do texto do amigo Faustino Teixeira [17] intitulado Per una mistica dell’ospitalità, está prevista para o início de 2017, na coletânea “Frontiere” dirigida por mim.
Notas:
[1] Emmanuel Levinas (1906-1995): filósofo e comentador talmúdico lituano, de ascendência judaica e naturalizado francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, cuja obra Ser e tempo o influenciou muito. “A ética precede a ontologia” é uma frase que caracteriza seu pensamento. Escreveu, entre outros, Totalidade e Infinito (Lisboa: Edições 70, 2000). Sobre o filósofo, confira a entrevista com Rafael Haddock-Lobo, publicada em 30-08-2007 no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, intitulada Lévinas: justiça à sua filosofia e a relação com Heidegger, Husserl e Derrida, e a edição número 277 da IHU On-Line, de 14-10-2008, intitulada Lévinas e a majestade do Outro. (Nota da IHU On-Line).
[2] Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador do método chamado desconstrução. Seu trabalho é associado, com frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre as principais influências de Derrida encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua extensa produção, figuram os livros Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, 1973), A farmácia de Platão (São Paulo: Iluminuras, 1994), O animal que logo sou (São Paulo: UNESP, 2002), Papel-máquina (São Paulo: Estação Liberdade, 2004) e Força de lei (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007). Dedicamos a Derrida a editoria Memória da IHU On-Line nº 119, de 18-10-2004. (Nota da IHU On-Line)
[3] No sentido de retirar a perspectiva helenística. (Nota da IHU On-Line)
[4] Para estas categorias ver, entre outros, Carmine Di Sante, L’io ospitale, Edizioni Lavoro, Roma 2001. (Nota do entrevistado)
[5] Gn, 19. (Nota da IHU On-Line).
[6] Mircea Eliade (1907- 1986): escritor e filósofo romeno, uma das maiores autoridades no estudo das religiões. Estudou a linguagem dos símbolos, usada em todas as religiões, para chegar às origens, que se situariam sempre no sagrado. Em 1928, obteve seu mestrado em Filosofia na Universidade de Bucareste. Estudou sânscrito e filosofia hindu na Universidade de Calcutá (1928-1931) e morou em um ashram em Rishikesh, ao pé do Himalaia, na Índia. Em 1933, voltou à Universidade de Bucareste e obteve o doutorado com o tema Yoga: Essai sur les Origines de lqa Mystique Indiène. Em 1945, lecionou na École de Hautes Études, na Sorbonne, e, em 1956, foi professor de História das Religiões na Universidade de Chicago, Estados Unidos. Foi também honoris causa em numerosas universidades de todo o mundo, além de premiado em 1977 pela Academia Francesa com a Legião de Honra. Sua interpretação essencial para as culturas religiosas e a análise de experiência mítica caracterizavam suas obras. Em Eliade, o conceito de hierofania corresponde às manifestações do sagrado, desde aquelas mais elementares, como, por exemplo, sua manifestação num objeto qualquer, em uma pedra ou uma árvore, até a sua forma suprema, que, para um cristão, seria a manifestação de Deus no homem Jesus Cristo, residindo aí um ato misterioso: a manifestação de algo divino em objetos que fazem parte de nosso mundo material, “profano”. (Nota do IHU On-Line).
[7] As informações aqui constante foram dadas pelo aluno Berri Hilare que defendeu a sua tese em Teologia Ecumênica junto ao Istituto di Studi Ecumenici “San Bernardino” em Veneza intitulada: “La morfologia dell’ospitalità del Mulebi” como contribuição africana aos diálogos ecumênico e inter- religioso. (Nota do entrevistado)
[8] A recente encíclica do Papa Francisco propõe uma nova abordagem sobre o tema quando chama a atenção sobre a ecologia como o “cuidado da casa comum”. Temos ainda uma confirmação da tese acima citada se for verdade que a “Laudato Sì” faz referência frequente ao “magistério” das igrejas do sul do mundo. Para posterior estudo inter- religioso da encíclica e uma avaliação da sua linguagem ver o recente Quaderni di Studi Ecumenici n. 33: Dal Corso M.- Salvarani B. (a cura di), Le religioni e la cura della casa comune, Pazzini, Villa Verucchio (RN), 2016. (Nota do entrevistado)
[9] Raimon Pannikar (1918-2010): padre e teólogo espanhol. Durante sua carreira acadêmica, teve a oportunidade de abordar diferentes tradições culturais. Publicou mais de 40 livros e 300 artigos de filosofia, ciência, metafísica, religião e hinduísmo. Foi membro do Instituto Internacional de Filologia (Paris, França) e presidente do Vivarium - Centro de Estudos Interculturais da Catalunha. Há um amplo material no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU dos quais destacamos: Superar a cristologia tribal, o desafio proposto por Raimon Panikkar; Raimon Panikkar: diálogo e interculturalidade; Raimon Panikkar, teólogo da dissidência. (Nota da IHU On-Line)
[10] Louis Massignon (1883-1962): escritor e católico francês perito no islã. (Nota do IHU On-Line)
[11] Paulo VI (1897-1978): Giovanni Battista Montini foi papa da Igreja Católica entre 1963 e 1978. Chefiou a Igreja Católica durante a maior parte do Concílio Vaticano II e foi decisivo na colocação em prática das suas decisões. (Nota da IHU On-Line)
[12] Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã francesa, centrou seus pensamentos sobre um aspecto que preocupa a sociedade até os dias de hoje: o tormento da injustiça. Vítima da tuberculose, Weil recusou-se a se alimentar, para compartilhar o sofrimento de seus irmãos franceses que haviam permanecido na França e viviam os dissabores da Segunda Guerra Mundial. Sobre Weil, confira as edições 84 da Revista IHU On-Line, de 17-11- 2003, e 168, de 12-12-2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX. Confira, também, a edição 17 dos Cadernos IHU Em Formação, intitulada Hannah Arendt e Simone Weil. Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política do século XX. (Nota da IHU On-Line)
[13] Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955): paleontólogo, teólogo, filósofo e jesuíta que rompeu fronteiras entre a ciência e a fé com sua teoria evolucionista. O cinquentenário de sua morte foi lembrado no Simpósio Internacional Terra Habitável: um desafio para a humanidade, promovido pelo IHU em 2005. Sobre ele, leia a edição 140 da IHU On-Line, de 09-05-2005, Teilhard de Chardin: cientista e místico. Veja também a edição 304, de 17-08-2009, O futuro que advém. A evolução e a fé cristã segundo Teilhard de Chardin. Confira, ainda, as entrevistas Chardin revela a cumplicidade entre o espírito e a matéria, na edição 135, de 05-05-2005, em e Teilhard de Chardin, Saint-Exupéry, publicada na edição 142, de 23-05-2005, ambas com Waldecy Tenório. Na edição 143, de 30-05-2005, George Coyne concedeu a entrevista Teilhard e a teoria da evolução. Leia também a edição 45 edição do Caderno IHU Ideias A realidade quântica como base da visão de Teilhard de Chardin e uma nova concepção da evolução biológica; a edição 78 do Cadernos de Teologia Pública, As implicações da evolução científica para a semântica da fé cristã; e a edição 22 do Cadernos de Teologia Pública, Terra Habitável: um desafio para a teologia e a espiritualidade cristãs. (Nota da IHU On-Line)
[14] Thomas Merton (1915-1968): monge católico cisterciense trapista, pioneiro no ecumenismo no diálogo com o budismo e tradições do Oriente. O livro Merton na intimidade - Sua Vida em Seus Diários (Rio de Janeiro: Fisus, 2001), é uma seleção extraída dos vários volumes do diário de Thomas Merton, autor de livros famosos como A Montanha dos Sete Patamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas sementes de contemplação (Rio de Janeiro: Fisus, 1999). O livro foi editado por Patrick Hart, também monge e colaborador de Merton. Na matéria de capa da edição 133 da IHU On-Line, de 21-03-2005, publicamos um artigo de Ernesto Cardenal, discípulo de Merton, que fala sobre sua relação com o monge. A edição 460 da revista IHU On-Line, sob o título A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, dois centenários analisa a legado de Merton. (Nota da IHU On-Line)
[15] Ernesto Cardenal: monge trapista nicaragüense, escritor e discípulo de Thomas Merton. Ernesto Cardenal foi ministro da Cultura da Nicarágua no governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Hoje, está rompido com a entidade. Citamos, entre as publicações de Cardenal, Evangelio de Solentiname (Salamanca: Sígueme, 1975); La Revolución Perdida (Madrid: Editorial Trotta, 2003); Im Herzen der Revolution (Wuppertal: Peter Hammer Verlag, 2004); Antología poética (Rosario: HomoSapiens Ediciones, 2004); Catulo y Marcial (Santiago de Chile: Ediciones Tácitas Ltda, 2004). Cardenal nos enviou um texto sobre sua direção espiritual com Thomas Merton, publicada na edição 133ª de IHU On-Line, de 21/03/2005. Acesse aqui. (Nota do IHU On-Line)
[16] O autor também é um dos entrevistados dessa edição da IHU On-Line. (Nota da IHU On-Line)
[17] O autor assina um artigo sobre o tema, também presente nessa edição da IHU On-Line. (Nota da IHU On-Line)
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A emergência de uma humanidade atravessada pela hospitalidade. Entrevista especial com Marco Dal Corso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU