05 Outubro 2015
"Seus votos foram ouvidos e cumpridos. Filêmon e Báucis, os esposos hospitaleiros, serviram no templo enquanto durou sua respiração", comenta Leonardo Boff, teólogo e escritor.
Eis o artigo.
Os milhares de refugiados que estão fugindo da guerra na Síria e do norte da África e buscam simplesmente a paz nos países europeus, nos fazem lembrar um dos mais belos mitos da cultura grega: os dois velhinhos Báucis e Felêmon, transmitido pelo poeta latino Ovídeo em suas Metaformoses. Admiremos a beleza e o profundo sentimento desse mito.
“Certa vez Júpiter, pai-criador do céu e da terra e seu filho Hermes, princípio de toda comunicação (donde vem a palavra hermenêutica), resolveram disfarçar-se de pobres e vir ao reino dos mortais para ver como ia a criação que haviam posto em marcha. Ambos se desfizeram de sua glória Pareciam realmente pobres e andarilhos dos caminhos.
Passaram por muitas terras. Pediam ajuda a uns e a outros e ninguém lhes estendia a mão. Muitos outros sequer os olhavam. Era o que mais lhes doía, por não serem sequer olhados, como se fossem cães lazarentos da estrada. Assim passaram fome e toda sorte de privações. Depois de tanto peregrinar e de sentir-se alijados por todos, o que mais queriam era encontrar alguém que lhes desse uma mínima hospitalidade.
Até que um dia, chegaram à Frígia, província das mais longinquas e inóspitas do império romano. Ai vivia um casal muito pobre. Ele se chamava Filêmon (em grego, “aquele capaz de amar”) e ela Báucis, (em grego, “delicada e terna”).
Sobre uma pequena elevação construíram sua choupana, rústica, porém, muito limpa. Foi lá que, ainda jovens, uniram seus corações. Viviam em grande paz e harmonia pois ambos faziam tudo juntos, um auxiliando sempre o outro. Quem mandava era tambem quem obedecia.
Eis que chegaram Júpiter e Hermes, disfarçados de pobres mortais. Bateram à porta. Qual não foi a sua supresa quando o bom velhinho Filêmon, sorridente, apareceu à porta e, sem muito reparar, foi logo dizendo:
“Forasteiros, vocês devem estar muito cansados e com fome. Venham, entrem na casa. É pobre, mas está aberta a hospedá-los”. Báucis, a delicada e terna, logo se apressou em lhes oferecer dois tamboretes de madeira para se sentarem.
Antes que manifestassem qualquer desejo, ambos, Filêmon e Báucis, começaram a reanimar o fogo, quase se apagando, para aquecer a água e aliviar os pés dos dois hóspedes. Filêmon foi à horta atrás da choupana e colheu algumas folhas e legumes, enquanto Báucis tirava da vara, o último pedaço de toucinho. Numa panela de barro, bem antiga, cozinharam os legumes com o toucinho que enchia a casa de perfume. Báucis tomou do azeite turvo e grosso, mas perfumado e o derramou por sobre a sopa. Depois tomou alguns ovos e os meteu sob a cinza quente. Filêmon se lembrou do vinho que jazia numa vasilha escura no canto da casa. Tomaram alguns pedaços de pão do dia anterior, aqueceram-nos na borda do fogão. E de repente tudo estava sobre a mesa em pratos quentes.
“Queridos hóspedes, vamos comer pois vocês merecem se alimentar depois de tantas canseiras. Perdoem simplicidade e a pobreza da cozinha”. Os imortais comeram à saciedade. Muito comovidos ficaram quando os dois velhinhos ofereceram a própria cama para dormir. Colocaram lençois limpos, embora visivelmente gastos. Estenderam por sobre o leito uma cobertura de honra, um velho tapete, usado nas festas.
Quando Júpiter e Hermes estavam se levantando para ir dormir, eis que sobreveio grande e inesperada tempestade. Raios e trovões ribombavam pelo vale afora. Ocorrreu uma inundação vitimando pessoas e animais.
Báucis e Filêmon se desculparam junto aos Imortais e apressados, se preparavam para ajudar os flagelados. Mas Júpiter freou a devastadora tempestade.
Foi então que aconteceu a grande revelação. Báucis e Filêmon viram sua choupana se transformar num luzidio templo de mármore. Colunas em estilo jônico enfeitavam a entrada. O teto de ouro reluzia como o sol recém saido das nuvens. E Júpiter e Hermes mostraram toda sua glória.
Filêmon e Báucis cairam em si. Puseram-se de joelhos, inclinando a cabeça até o chão para venerar o Deus presente. Júpiter depois bondosamente disse: “Bom e justo Filêmon, digna e terna esposa Báucis: façam um pedido que eu, em agradecimento, quero atender”. Baucis se inclinou para Filêmon e colocou sua cabeça encanecida sobre o peito dele. E, como se tivessem previamente combinado, disseram unissonamente: “O nosso desejo é de servir a Deus nesse templo por todo o tempo que nos resta de vida”.
E Hermes acrescentou: “Eu também quero que façam um pedido para eu o realizar”. E eles, novamente, como se tivessem combinado, sussuraram conjuntamente: “Depois de tão longo amor e de tanta concórdia, gostaríamos de morrer juntos”.
Seus votos foram ouvidos e cumpridos. Filêmon e Báucis, os esposos hospitaleiros, serviram no templo enquanto durou sua respiração.
Certo dia, enquanto, sentados no átrio, recordavam de como hospedaram, sem saber, Deus em sua choupana, Filêmon viu que o corpo de Báucis se revestia de folhagens floridas até a cabeça.
E Báucis viu também que o corpo de Filêmon se cobria todo de folhagens verdes. Mal puderam balbuciar juntos o derradeiro adeus. Aconteceu a grande metamorfose. Filêmon foi transformado num enorme carvalho e Báucis numa frondosa tília. Em cima, as copas e os galhos se entrelaçaram. E assim abraçados ficaram unidos para sempre.
Quem passar por aquela região da Frígia, atualmente a Turquia, ainda hoje ouvirá esta fantástica história contada de geração em geração. Os mais velhos repetem sempre a lição: quem acolhe um pobre faminto, hospeda anonimamente Deus.
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O mito da hospitalidade e os refugiados de hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU