14 Junho 2018
"A megalomaníaca proposta de fazer ou reformar 12 estádios de futebol para a Copa do Mundo de 2014 só se justifica pelo interesse daqueles políticos e empreiteiros que visavam lucrar com a corrupção das obras superfaturadas. Cidades com Manaus, Cuiabá, Brasília e Natal nem possuem times na primeira divisão do campeonato brasileiro. As obras feitas estão ociosas, as obras inacabadas dão prejuízos e transtornos e toda a população brasileira", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; em artigo publicado por EcoDebate, 13-06-2018.
Começou o circo da Copa do Mundo de Futebol, desta vez na Rússia. Quatro anos depois da última Copa (aquela famosa pelo 7X1), o Brasil está em pior situação econômica, vive um caos político e ainda está pagando pelos “elefantes brancos” que começou a construir, convive com obras inacabadas e ainda investiga a corrupção que favoreceu os espertos que souberam manipular o futebol como ópio do povo e capitalizar o mito do país do futebol de drible e ginga fáceis.
O governo vendeu a ideia de que os grandes eventos – Copa do Mundo e Olimpíada – seriam uma forma de reafirmar o desenvolvimento nacional e mostrar ao mundo que o Brasil estava preparado para ser a 4ª potência mundial. O próximo passo seria participar do Conselho de Segurança da ONU, como membro permanente ao lado de EUA, China, Rússia, Reino Unido e França (todos potências nucleares). O Brasil até começou a fazer um submarino movido a propulsão nuclear para poder navegar de forma pujante no mar das elites nucleares e defender as riquezas do pré-sal (nosso passaporte para o futuro) das ameaças da ganância imperialista.
O sonho do Brasil potência dos militares foi reciclado para o sonho do Brasil potência democrática e líder terceiro-mundista. “Com brasileiro, não há quem possa!”. Se vencemos o “complexo de vira-lata” e nos tornamos os líderes das canchas futebolísticas, por que não nos tornaríamos líderes em outros campos?
Mas como disse o ensaísta inglês Samuel Johnson (1709-1784): “O patriotismo é o último refúgio do canalha”. O patriotismo brasileiro é sempre revivido de quatro em quatro anos e não será diferente na Copa da Rússia. Porém, enquanto a seleção brasileira disputa a “honra nacional” nos gramados russos, não se deve esquecer o desastroso legado da Copa de 2014.
No Rio de Janeiro, o projeto de gentrificação do Porto Maravilha ficou pelas tabelas e está se transformando em um grande desastre financeiro. Artigo de Adriano Belisário, para o site Pública (26/02/2018) mostra que a operação do Porto Maravilha “ficou refém do seu gigantismo e enfrenta dificuldades para pagar o consórcio formado pela Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia, que faz obras e serviços como limpeza de ruas e coleta de lixo na região”. O mecanismo financeiro para viabilizar as obras do Porto Maravilha foi a venda dos Certificados do Potencial Adicional de Construção (Cepacs) pelo fundo da Caixa Econômica (CEF), que comprou todos os títulos da prefeitura, em lote único, em 2011 por R$ 3,5 bilhões. A compra usou recursos dos trabalhadores (FGTS), com a expectativa de revendê-los mais caros no mercado para empreendedores interessados em aumentar a quantidade de andares de seus imóveis na região. O problema é que foram poucos os compradores, e os Cepacs estão encalhados.
Não há novos projetos licenciados com consumo de Cepacs no Porto Maravilha desde meados de 2015. Como resultado, o fundo controlado pela CEF declarou em maio de 2016 falta de dinheiro em caixa (iliquidez) para pagar a parceria público-privada (PPP) com as empreiteiras. Em julho de 2017, após meses sem receber, a concessionária formada por essas empresas suspendeu as atividades na região. Só 15% dos empreendimentos financiaram a operação. Entre os 77 empreendimentos do mercado imobiliário licenciados, mais da metade (48) não consumiu nem consumirá nenhum Cepac, ou seja, não injetará recursos na PPP. Em síntese, as maravilhosas promessas do Porto Maravilha ficaram pela metade e a Prefeitura do Rio terá que injetar dinheiro público para a manutenção que deveria estar sendo feita pela iniciativa privada.
Ainda no Rio, o Maracanã – “maior estádio de futebol do mundo” – que já tinha abrigado um público de duas centenas de milhares (dizem que na final da Copa de 1950, entre Brasil e Uruguai, o número de torcedores era superior a 200 mil) foi reformado, na gestão Sérgio Cabral. A reforma do estádio estava orçada em R$ 700 milhões, mas custou R$ 1,2 bilhão, e virou uma “arena” com menos de 80 mil lugares. O resultado é que os jogos no Maracanã não dão retorno financeiro para os clubes, pois o custo de manutenção e funcionamento levam toda a renda dos jogos. Desta forma, o ex-“maior estádio do mundo” fica mais fechado do que aberto ao público. Atualmente, quem circula pelo entorno do Maracanã reclama do abandono e do aumento da criminalidade. O número de roubos de celular, por exemplo, aumentou 220% se comparado com 4 anos atrás. O roubo de veículos aumentou 190%.
O Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) indicou que as obras de reforma do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014 foram objeto de milionários superfaturamentos. O Ministério Público do Rio pediu que as construtoras Odebrecht, Andrade Gutierrez e Delta Engenharia, encarregadas das obras, restituíssem R$ 200 milhões ao Tesouro Público. O cimento foi comprado a um preço três vezes maior que o do mercado, com um impacto de R$ 23 milhões no custo. Alguns serviços, como o aluguel de gruas, foram faturados em duas vezes, revelam os documentos. Outro importante impacto no preço final foi o da substituição da cobertura das arquibancadas, cuja preservação era prevista no projeto original. O Maracanã permaneceu em estado de abandono durante três meses, devido um imbróglio político-legal entre a concessionária e o comitê organizador das Olimpíadas de 2016 e agora sobrevive aos trancos e barrancos.
Reportagem do site G1, mostra que em Belo Horizonte, obras prometidas para a Copa de 2014 ainda estão inacabadas. No Aeroporto Internacional de Confins há obras de ampliação e modernização do terminal paradas desde setembro de 2014. A empresa que opera o local desde agosto daquele ano afirma que melhorias prometidas para a Copa são responsabilidade da Infraero.
Em Cuiabá, nove obras prometidas para a Copa de 2014 seguem inacabadas, o que tem custado caro aos cofres públicos. Entre elas, está a construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que já consumiu R$ 1,066 bilhão e está parada desde dezembro de 2014. Só 6 km de trilhos foram concluídos, do total de 22 km.
Em Curitiba, quatro das 13 obras prometidas para a Copa ainda não foram concluídas, três de responsabilidade do governo estadual, e duas, da Prefeitura de Curitiba. Todas elas fazem ligação entre a capital e a Região Metropolitana, como o corredor Aeroporto-Rodoferroviária, onde já foram investidos mais de R$ 44 milhões e a reforma e ampliação do Terminal do Santa Cândida.
Em Brasília, ainda há cinco obras prometidas para a Copa atrasadas, entre elas a urbanização do entorno do estádio Mané Garrincha e a construção do VLT entre o Aeroporto de Brasília e o Plano Piloto. Em 2012, o governo do DF desistiu de entregar o entorno do estádio a tempo para a Copa. O projeto do VLT foi cancelado definitivamente em 2015.
Em Fortaleza, a entrega da expansão do Aeroporto Pinto Martins foi cancelada em maio de 2014. O Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) que iria cruzar 22 bairros também não foi entregue e, em alguns pontos da obra, moradores convivem com transtornos há seis anos.
Em Manaus, o BRT, sistema de ônibus rápido, seria o principal meio de transporte para os torcedores até a Arena da Amazônia. Porém, em 2012, o governo estadual e a prefeitura desistiram de entregar a obra para a Copa, alegando atraso na liberação de recursos para o projeto. Até hoje a obra ainda nem foi licitada. Dos três Centros de Atendimento aos Turistas prometidos para a Copa, um está com as obras paradas e os outros nem saíram do papel.
Em Natal, pelo menos quatro obras previstas para a Copa ainda não foram entregues. A mais atrasada é a reforma e padronização de 55 km de calçadas nas avenidas que dão acesso à Arena das Dunas, na Zona Sul da cidade. A obra dos acessos ao Aeroporto Internacional Governador Aluízio Alves (bastante distante do centro da cidade) ainda deve ser entregue, mas de maneira parcial.
Em Porto Alegre, a obra na Avenida Cristóvão Colombo está parada desde que o consócio que ganhou a concorrência desistiu do contrato alegando dificuldades financeiras. Das 18 obras previstas para a Copa de 2014 na capital gaúcha, dez estão atrasadas e duas nem começaram.
Em Recife, cinco das obras de mobilidade prometidas para a Copa ainda não foram entregues. Além disso, o governo do estado rescindiu no ano passado o contrato para construir a Cidade da Copa, projeto apresentado como primeiro modelo de cidade inteligente no Brasil.
Em Salvador, as reformas no aeroporto internacional da capital baiana se arrastam até hoje. Houve troca de administração da Infraero para uma empresa francesa, que ainda irá concluir a nova área de check-in. A implementação do BRT na cidade chegou a estar na lista das obras prometidas para a Copa de 2014, mas foi retirada porque não ficaria pronta a tempo.
Em São Paulo, a Linha 17-Ouro do monotrilho, que chegou a ter a inauguração anunciada para antes da Copa de 2014, até hoje não teve nenhuma estação entregue. O projeto foi retirado da lista de obras do Mundial por causa da mudança do estádio da Copa para Itaquera, na Zona Leste. Desde então, os valores da obra aumentaram, e os prazos foram sucessivamente ampliados.
A megalomaníaca proposta de fazer ou reformar 12 estádios de futebol para a Copa do Mundo de 2014 só se justifica pelo interesse daqueles políticos e empreiteiros que visavam lucrar com a corrupção das obras superfaturadas. Cidades com Manaus, Cuiabá, Brasília e Natal nem possuem times na primeira divisão do campeonato brasileiro. As obras feitas estão ociosas, as obras inacabadas dão prejuízos e transtornos e toda a população brasileira foi onerada com o desperdício do dinheiro público e a ineficiência das construções. O grande destaque foram os protestos de rua contra a Copa, contra a ilusão midiática dos grandes eventos e contra a manipulação do mito da “pátria de chuteiras” e a paixão cega pelo futebol.
Em 2015 estourou o escândalo da Fifa, quando 7 dirigentes da entidade máxima do futebol foram presos na Suíça, após serem acusados por suspeitas de corrupção envolvendo um montante de até US$ 150 milhões. A Fifa se mostrou uma das entidades mais corruptas do mundo. Três brasileiros foram implicados no esquema de corrupção, de acordo com o departamento de Justiça dos EUA. O ex-presidente da CBF José Maria Marin, José Hawilla, dono da Traffic Group (que morreu recentemente) e José Lazaro Margulies, proprietário das empresas Valente Corp. e Somerton Ltda. A CBF e a Fifa saíram com a imagem totalmente arranhadas e a população já percebe que há “algo de podre” no reino do futebol.
Outra revelação que veio a público recentemente foram os casos de abusos sexuais. Em campanha do Sindicato de Atletas de São Paulo, 33 atletas e ex-profissionais, entre eles Edu Dracena e Moisés (Palmeiras), Rodrigo Caio e Diego Lugano (São Paulo), Felipe (Porto-POR), Cicinho (Brasiliense) e Giovanni, ídolo do Santos na década de noventa, fazem um alerta sobre assédio e abuso sexual de crianças e adolescentes em categorias de base. Um vídeo com depoimentos dos jogadores e a hashtag #chegadeabuso é o primeiro passo da campanha, que deve se desdobrar em ações preventivas nos clubes ao longo do ano, segundo o jornal El País.
Quatro anos depois da Copa do Mundo de 2014, muitas verdades vieram à tona sobre o circo do futebol enquanto as promessas do Brasil grande foram afogadas em uma crise econômica sem precedentes. O déficit fiscal brasileiro é monstruoso e a dívida pública cresce de maneira explosiva. O país não tem dinheiro para investimento em infraestrutura e o desemprego atingiu níveis astronômicos. A violência é desesperadora. O exército que veio garantir a “paz” durante a Copa e a Olimpíada, agora voltou para fazer uma intervenção no Rio de Janeiro, que teve até a paralisação do trenzinho da Urca pela primeira vez na história.
Mas os interesses comerciais do “patriotismo canalha” (na expressão de Samuel Johnson) vão tentar fazer o povo brasileiro mergulhar no ufanismo do futebol tupiniquim e torcer mais uma vez para a “seleção canarinha” da “Pátria de chuteiras”, esquecendo que a Copa de 2014, foi um fracasso dentro e fora dos campos. Porém, a beleza do futebol está em reconhecer a vitória de quem joga melhor e mais bonito, sem a carga pesada da manipulação do nacionalismo idiota.
Referências:
G1. Quatro anos depois, ainda há obras prometidas para Copa no Brasil inacabadas em 11 das 12 cidades-sede, 23/05/2018
Adriano Belisário. Porto Maravilha corre o risco de parar novamente em 2018, Pública, 26/02/2018
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O desastroso legado da Copa do Mundo de Futebol de 2014 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU