21 Mai 2018
Erika Kokay nunca foi grande entusiasta do esporte nacional. Militante dos direitos humanos há mais de 40 anos e deputada federal em segundo mandato pelo PT-DF, ela se aproximou da bola ao presidir a CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes antes da Copa do Mundo no Brasil. Ao longo dos trabalhos, recebeu diversas denúncias de assédio e abuso de garotos no futebol.
Decidiu abraçar a causa e convocou a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a prestar esclarecimentos na Câmara dos Deputados. “Eu descobri que o futebol é um meio muito propício para a prática de diversos abusos”, conta a parlamentar. “Não poderíamos ficar de braços cruzados.”
A reportagem é de Breiller Pires, publicada por El País, 20-05-2018.
Às vésperas da Copa 2014, ela fez com que a CBF firmasse um pacto diante da CPI se comprometendo a adotar 10 medidas para prevenir o abuso e a exploração sexual em categorias de base. No entanto, quatro anos depois, o Congresso Nacional constatou que a confederação ainda não tomou as devidas providências. Em audiência pública para debater o tema na última terça-feira, enquanto colegas de plenário – sobretudo os integrantes da “bancada da bola” – pisavam em ovos ao interpelar o secretário-geral da CBF, Walter Feldman, a deputada subiu o tom de voz ao questionar o descumprimento do pacto: “Ao desrespeitar o acordo, a CBF está desrespeitando as vítimas e também o parlamento”.
Kokay tenta aprovar um projeto de lei que obriga os clubes que recebem patrocínios de entidades públicas a oferecer contrapartidas de proteção a crianças e adolescentes. “Percebemos que existe uma naturalização da violência sexual no futebol. Por medo de terem a carreira prejudicada, sendo que muitas famílias pobres depositam nos garotos a esperança de mudar de vida, eles se calam. E os clubes fingem que não têm nada a ver com isso.” Além da proposta que prevê contrapartidas dos times, apreciada pela Comissão do Esporte, ela tem outros dois projetos de lei voltados aos garotos futebolistas em tramitação na Câmara.
Em São Paulo, a vereadora Patrícia Bezerra, do PSDB, conseguiu aprovar um projeto de lei semelhante, que regulamenta o funcionamento de centros de formação esportiva para crianças e adolescentes na capital paulista. Além de garantir o cumprimento da frequência escolar, clubes e escolinhas terão de oferecer um canal de denúncia em caso de abusos e destacar ao menos um funcionário para zelar pelo bem estar dos atletas nos alojamentos. O projeto foi aprovado em segundo turno no início deste mês pela Câmara Municipal e agora depende da sanção do prefeito Bruno Covas. “Há muitos casos de olheiros que trazem jogadores de vários cantos do país com a promessa de jogar em São Paulo e acabam lucrando com a exploração sexual desses meninos. Se a lei for aprovada, pode servir como exemplo de enfrentamento ao abuso no futebol para o país.”
Em uma modalidade historicamente dominada por homens, que ainda resistem em reconhecer o abuso sexual como um problema a ser encarado, não são apenas as mulheres da política que se mobilizam para virar o jogo. Silvana Trevisan é do tempo em que dirigentes, sobretudo da CBF, se desvencilhavam da obrigação de cumprir direitos infantojuvenis no processo de formação de jogadores. A assistente social foi uma das pioneiras em clubes, no fim da década de 90. Começou na base do Juventus, passou por Corinthians e Santos, onde hoje orienta atletas de 10 a 23 anos. No futebol brasileiro, há somente 59 assistentes sociais trabalhando com categorias de base.
“Quando comecei, era ainda mais difícil, principalmente ao abordar com os meninos o tema do abuso sexual, que é um enorme tabu no meio”, diz Trevisan. Em outro campo de atuação, mas de forma paralela ao departamento de serviço social, a psicóloga Sonia Román colaborou por mais de dez anos com a base do Santos, que recentemente foi palco de um escândalo de abuso sexual. Para ela, o fato de ser um ambiente com poucas vozes femininas de comando torna o futebol propenso à investida dos abusadores. “A mulher costuma ter uma postura mais incisiva diante de uma situação de risco para crianças e adolescentes”, afirma Román. “Um homem não pode tomar conta sozinho de 15 meninos em um alojamento. Precisa ter supervisão, sobretudo de psicólogos, educadores e assistentes sociais.”
Especializada em psicologia do esporte, ela ressalta que o abuso sexual não é exclusividade do futebol. Compreende, entretanto, que é necessário um olhar especial sobre os abusos que afetam jovens do sexo masculino. “A vítima carrega um trauma muito grande, porque pensa que sua condição de homem, a masculinidade tão propagada pelos treinadores, foi ferida depois de sofrer o abuso”, explica. De acordo com Silvana Trevisan, a mulher empresta uma visão mais humanizada ao universo das categorias de base. “É uma característica maternal, de cuidar do ser humano. Faço questão de lutar para que a formação de jogadores seja conduzida com dignidade e respeito aos direitos fundamentais da criança.”
Mãe de duas meninas, a vereadora Patrícia Bezerra defende tese parecida à da assistente social. “Eu olho para os garotos no futebol com o sentimento de mãe que zela pelos seus filhos. O abuso sexual destrói a esperança e o sonho deles. Isso não pode mais ser tratado como norma.” O abuso de meninos é um crime subnotificado. De acordo com relatórios anuais do Disque 100, menos de 30% das denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes recebidas pelo serviço referem-se a vítimas do gênero masculino. Para piorar, as poucas campanhas de sensibilização sobre abusos sexuais no âmbito esportivo acabam direcionadas apenas a atletas do gênero feminino, como o Programa Esporte Sem Assédio, lançado em março pelo Ministério do Esporte.
“A maioria das vítimas de abuso é do gênero feminino. Mas, no futebol, essa proporção se inverte, já que boa parte dos atletas nas categorias de base é do gênero masculino”, pondera a deputada Erika Kokay. “Não podemos esquecer que os meninos também sofrem com a violência sexual.”
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As mulheres que combatem o abuso sexual de meninos no futebol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU