22 Fevereiro 2018
Umas das ligações que mais marcaram a atendente Camilla*, que trabalha desde 2016 no Disque-Denúncia (100), foi um caso de abuso sexual de um bebê de um ano de idade.
Ela recebeu a ligação de uma pessoa - que não pode ser identificada para preservar o anonimato garantido pelo serviço - dizendo que, ao trocar a fralda da criança, encontrou seu órgão genital machucado e com pus.
A reportagem é de Letícia Mori, publicada por BBC Brasil, 21-02-2018.
Segundo o relato, a menina estava sendo abusada pelo padrasto, e a mãe não fazia nada porque não queria que o marido fosse preso.
Camilla anotou todos os detalhes sobre a vítima - nome, onde morava, informações sobre a família - e o caso foi encaminhado à polícia do Estado para ser apurado.
Mas é impossível descobrir, de forma organizada e sistemática, o destino de denúncias graves como a relatada pela atendente.
A BBC Brasil buscou dados para uma reportagem sobre o percentual de denúncias de violência sexual contra crianças que resultavam em abertura de inquérito e possível punição de culpados. Procurou também informações centrais sobre crianças reportadas como vítimas em denúncias, como saber se estão em segurança. Encontrou não dados, mas um verdadeiro buraco negro de informações e descontrole estatístico por parte das autoridades.
A reportagem, que envolveu dezenas de telefonemas e envios de emails para autoridades federais e também em todos os 26 Estados e o Distrito Federal, revela que nenhum órgão mapeia denúncias e monitora o que acontece com elas.
Não há controle consistente e padronizado em nível federal, estadual ou municipal que acompanhe quantas eram procedentes, quantas se tornaram inquéritos policiais, quantas chegaram à Justiça ou o que aconteceu com as crianças.
A falta de dados centralizados prejudica o combate - já que o primeiro passo para criação de políticas públicas que contra o crime é saber o tamanho do problema, como ele costuma acontecer, se há maior ocorrência em determinados Estados e que questões, em alguns casos culturais, precisam ser combatidas em busca de uma solução.
"É muito difícil pensar políticas públicas sem ter dados e estatísticas", afirma o pesquisador Herbert Rodrigues, que foi associado ao Núcleo de Violência da USP e é autor do livro Pedofilia e suas Narrativas.
"Os dados sobre o assunto são um caos. Os órgãos não estão preparados para lidar com o problema", afirma ele, que fez uma extensa pesquisa em diversos bancos de dados para sua tese de doutorado.
Ele defende que o poder público tenha um sistema exclusivo para monitoramento de abuso sexual infantil a exemplo do que ocorre em países como os Estados Unidos e o Reino Unido.
Em terreno britânico, os números divulgados por diversas entidades governamentais são reunidos pela NSPCC (sigla em inglês para Sociedade Nacional para a Prevenção de Crueldade contra Crianças).
Nos EUA, diversas entidades reúnem esse tipo de informação. O Departamento de Saúde federal tem um escritório específico de cuidado às crianças que publica relatórios periódicos. E o Crimes Against Children Research Center ("centro de pesquisa sobre crimes contra crianças") também reúne dados nacionais - e o acompanhamento das denúncias é feito pelo FBI, a polícia federal americana.
No Brasil, a primeira pergunta sem resposta diz respeito ao total de denúncias de violência sexual contra crianças que chegam a diferentes autoridades.
Elas podem chegar a delegacias de polícia (especializadas ou não), ir direto ao Ministério Público, a conselhos tutelares ou a Varas de Infância e da Juventude. Casos envolvendo crimes virtuais são investigados pela Polícia Federal. Não há números consolidados de número de denúncias feitas no país todo por nenhum desses caminhos.
As suspeitas também podem chegar pelo Disque-Denúncia e serem encaminhadas a algum desses outros canais. Só por este caminho chegaram cerca de 9 mil denúncias no primeiro semestre de 2017. Em 2016, foram 15.707. Os dados são do Ministério dos Direitos Humanos, que mantém o serviço do Disque 100.
A segunda lacuna é com os dados sobre o que aconteceu com as denúncias que chegaram por esse caminho.
As suspeitas são passadas individualmente para serem investigadas pelas polícias estaduais ou por outras autoridades. Todos os casos são repassados e, em tese, investigados. Mas como não há uma regra que obrigue quem recebeu as denúncias de dar retorno, os feedbacks que chegam são poucos.
O serviço só recebe retorno sobre o andamento da apuração em 16% dos encaminhamentos na média, segundo o Ministério dos Direitos Humanos.
Em busca dessas informações sobre o destino das denúncias que chegam por outros caminhos, a BBC Brasil procurou as polícias estaduais e também o Ministério Público de todos os 26 Estados brasileiros e o Distrito Federal.
Na maioria dos Estados, nem a própria polícia ou secretaria de segurança agrupa essas informações. A ausência de dados centralizados gera a impossibilidade de cobrança e acompanhamento de uma esfera superior.
A BBC Brasil recebeu informações apenas da Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais e dos Ministérios Públicos de Santa Catarina, Distrito Federal, Acre, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
As Secretarias de Segurança Pública de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina e os Ministérios Públicos de Minas Gerais, Goiás e Ceará admitiram não ter os dados.
Os outros órgãos não responderam ou não deram explicações para não terem enviado as informações.
Os únicos dados centrais que a BBC Brasil conseguiu identificar revelam a brutalidade deste tipo crime, ou seja, quando vítimas vão parar em um hospital com machucados, doenças ou outros problemas decorrentes do abuso.
Em 2016, o sistema de saúde registrou 22,9 mil atendimentos a vítimas de estupro no Brasil. Em mais de 13 mil deles - 57% dos casos - as vítimas tinham entre 0 e 14 anos. Dessas, cerca de 6 mil vítimas tinham menos de 9 anos.
As estatísticas são do Sinan, o sistema de informações do Ministério da Saúde, que registra casos de atendimento de diferentes ocorrências médicas desde 2011. É uma espécie de ponta do iceberg do problema.
O sistema consolida dados tanto dos serviços de saúde pública quanto da rede privada.
"Crianças e adolescentes de até 14 anos são mais vulneráveis à ocorrência de estupro principalmente na esfera doméstica. Os autores da violência, na maioria das vezes, são familiares e pessoas conhecidas", afirma a médica Fátima Marinho, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
Mas mesmo os números do Sinam, que oferecem um visão central do problema, não retratam todos os casos de abuso sexual de crianças que acabaram no sistema de saúde. Isso porque nem todos os municípios do país reportam os casos, embora o procedimento seja obrigatório.
A definição de estupro utilizada pelo Ministério da Saúde é a mesma adotada no âmbito penal. São notificados como estupro, por exemplo, conjunção carnal, masturbação, toques íntimos, a introdução de dedos ou objetos na vagina, sexo oral e sexo anal.
Nos casos de estupros de menores, os profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento em hospitais devem comunicar as ocorrências aos conselhos tutelares locais.
A partir deste ponto, o sistema de saúde não faz mais o acompanhamento - portanto mesmo pelos números da área de saúde não há como saber quais desses casos chegaram à polícia ou à Justiça.
Para a delegada Kelly Cristina Saccheto, de São Paulo, "estatísticas são importantes, mas, para as investigações individuais, o que mais importa é ter dados suficientes no registro da ocorrência para que polícia abra o inquérito."
Segundo ela, muitas das denúncias chegam sem informações suficientes - como nome completo do acusado ou endereço - para que a polícia identifique os suspeitos.
Se muitas vítimas adultas já não denunciam seus casos à polícia por medo de represálias ou de serem desacreditadas, as crianças estão ainda mais vulneráveis - e a chance de o problema nunca chegar às autoridades é maior, segundo especialistas.
"Nos casos que chegam à Justiça é possível ver, em muitos processos, tentativas de desqualificar e deslegitimar as crianças para inocentar o agressor. É reflexo de uma sociedade que tem baixa confiança nas crianças, onde elas são desconsideradas, como se não tivessem agência no mundo", afirma Herbert Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Violência da USP.
O desembargador Eduardo Freitas Gouvea, da Coordenação de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, acredita que legislação existente é bem extensa e adequada para proteger as crianças - o que falta é sua aplicação.
"É necessário um trabalho de prevenção" afirma. "Hoje em dia o Judiciário é visto como caminho de resolução de tudo, mas é preciso que o Executivo aplique a lei e haja uma rede de proteção às crianças para evitar que os crimes aconteçam."
O fato da maior parte dos abusos - físicos e sexuais - virem das próprias famílias torna o problema mais complexo e difícil de ser resolvido, já que a criança fica completamente desamparada e sem o apoio justamente de quem deveria protegê-la.
"E é um tabu, ninguém quer falar sobre isso ou lidar com o problema real", diz Rodrigues.
Camilla, a atendente do Disque-Denúncia, diz que evita pensar no que aconteceu com as vítimas.
"Tento pensar que o importante é que a denúncia tenha sido feita. Já é o primeiro passo para resolver (o caso)."
*O nome foi trocado para proteger a identidade da entrevistada.
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Levantamento revela caos no controle de denúncias de violência sexual contra crianças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU