08 Março 2018
Após dois anos de revolta e angústia em relação ao documento do Papa Francisco sobre a família, Amoris Laetitia, e sua cautelosa abertura à comunhão para fiéis que se divorciaram e casaram novamente no civil, alguns defensores da encíclica têm tentado uma estratégia diferente. Em vez de pressionar o debate, eles estão sugerindo que sua importância foi superestimada desde o início.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 07-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
É a chamada, por falta de expressão melhor, estratégia do “nada de mais” - embora, para ser honesto, não se saiba aonde vai chegar, porque às vezes até mesmo alguns dos seus principais expoentes não parecem acreditar totalmente nessa tática.
Foram nessa linha as observações do cardeal Walter Kasper, na terça à noite, durante a apresentação de seu novo livro, The Message of Amoris Laetitia: A Fraternal Discussion (A mensagem de Amoris Laetitia: uma discussão fraterna, tradução livre), originalmente publicado em alemão, cuja tradução para o italiano foi lançada recentemente. A apresentação foi realizada na sede da Rádio Vaticano, em Roma.
(Pelos padrões da prodigiosa escrita teológica de Kasper ao longo dos anos, o novo volume é extremamente curto, com apenas 80 páginas na versão italiana.)
Em muitos aspectos, Kasper tem sido umas das pessoas que mais movimenta a reabertura do longo debate do catolicismo sobre a questão da comunhão para divorciados e recasados, que já foi considerada resolvida com um documento de 1994 da Congregação para a Doutrina da Fé para Kasper e dois outros prelados alemães, basicamente respondendo com um contundente "não".
No entanto, o Papa Francisco dava indícios de que iria no sentido oposto desde o início, ao escolher Kasper para falar numa reunião de cardeais sobre o assunto antes dos dois sínodos dos bispos sobre a família promovidos pelo pontífice, e a ideia chegou a ficar conhecida como o "plano de Kasper" nos debates do Sínodo.
Porém, na noite de terça-feira, Kasper, que fez 85 anos na segunda, parecia estar surpreso com o progresso dessa questão em pelo menos três frentes.
Primeiro, como ele sugeriu, a discussão sobre Amoris Laetitia concentrou-se demais no capítulo 8, em que Francisco lida com a questão da comunhão em uma nota de rodapé, chamando a atenção sobre o âmbito "reducionista".
A situação dos divorciados e recasados, segundo ele, é certamente "um" problema, mas não "o" problema, quando se trata dos problemas enfrentados pelas famílias hoje.
Em relação a isso, Kasper atraiu o apoio do arcebispo italiano Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, que estava disponível para a apresentação e disse sentir a mesma frustração.
"Às vezes sinto que as nossas discussões em Roma não vão além desse ponto, e enquanto isso as famílias no mundo atual levam rasteiras todos os dias", disse.
(Paglia também deu um presente de aniversário a Kasper diante do público: uma grande imagem da Virgem Maria.)
Em segundo lugar, como insistiu Kasper, o que quer que o debate sobre Amoris discuta para além disso definitivamente não é uma questão de hereges ou heresia.
"Heresia significa oposição, opor-se tenazmente, um dogma definido", afirmou. "Eu não acredito que o Papa Francis tinha qualquer intenção de apresentar um novo dogma". Em vez de heresias rivais, insistiu Kasper, o que a Igreja tem visto é uma questão de "expressão de várias opiniões".
No entanto, ele admite que por vezes tem sido uma troca de opiniões bastante acalorada, dizendo que tentou escrever o novo livro de forma "não polêmica" porque "como bispo e cardeal, sinto uma responsabilidade com a paz da Igreja".
Em terceiro lugar, Kasper sugeriu que a abertura à comunhão criada por Amoris não é a reviravolta doutrinária ou sacramental como muitos a estão encarando.
"Está em total concordância com a tradição", disse ele, na terça-feira, "sobretudo com as de Tomás de Aquino e do Concílio de Trento". Entre outras coisas, Kasper observou que o concílio do século XVI ensinou que o ato de receber a Eucaristia tem o poder de perdoar os pecados e também que São Tomás de Aquino reconhecia uma distinção clara entre uma norma geral e sua aplicação concreta.
Kasper também disse que já falou com os dominicanos, ou seja, membros da ordem religiosa de São Tomás de Aquino, como o cardeal de Viena, Christoph Schönborn, e o falecido cardeal George Cottier, que foi teólogo da Casa Pontifícia durante três papados, que, segundo ele, concordou com sua leitura de Aquino.
"Não é algo novo, é um retorno à tradição real de Tomás de Aquino", afirmou. "Não se pode absolutizar este neo-Tomismo que deriva da escolástica."
("Escolástica” refere-se à escola filosófica e teológica baseada em Tomás de Aquino, e "neo-Tomismo" ao que os críticos consideram uma versão excessivamente rígida e simplificada da tradição nos séculos XIX e XX).
Também nessa frente, o argumento de Paglia é semelhante, dizendo que, se houve alterações no tratamento da Igreja aos divorciados e recasados, não surgiu com Amoris Laetitia, mas com o documento de 1981 do Papa João Paulo II, Familiaris Consortio, que insiste que os fiéis em situações com essas não devem ser "excomungados", mas plenamente integrados à vida eclesiástica.
Paglia lembrou que apenas 25 anos antes de Familiaris, num conhecido caso italiano, um bispo foi condenado por difamação em um tribunal italiano por chamar um casal que havia se casado em um rito civil de "pecadores públicos e concubinas". Ele foi condenado a pagar uma multa, mas a condenação foi anulada em recurso. Paglia citou o episódio como um exemplo das atitudes que a determinação de João Paulo extinguiu.
"Se as pessoas realmente entendessem o que foi escrito [em Familiaris Consortio]", disse Paglia, "teria havido uma revolução na Igreja Católica."
Ainda não se sabe se a tática do “nada de mais” vai ter sucesso, em partes porque não ficou totalmente claro na terça-feira se Kasper acreditava nela. Em um ponto, ele citou uma frase recente do cardeal italiano Pietro Parolin, Secretário de Estado do Papa, de que a Amoris representa uma "mudança de paradigma".
Observando que a "mudança de paradigma" vem do escritor Thomas Kuhn e originalmente se referia a avanços científicos significativos, disse que é como o que aconteceu quando a visão essencialmente mecanicista da física proposta por Newton foi substituída pela teoria da relatividade de Einstein.
"A mudança não rejeitou as teorias de Newton", disse Kasper, "mas as incluiu numa compreensão maior e mais ampla das coisas".
Kasper também se mostrou um tanto apaixonado ao discutir o contexto pessoal que ele traz para a questão da comunhão, contando que às vezes tem a impressão de que algumas pessoas que participam do debate "nunca devem ter sentado num confessionário".
"Fui ordenado em 1957, bem antes do Concílio Vaticano II", disse. "Passei horas e horas no confessionário ouvindo essas pessoas, e muitas choravam. É preciso ouvir as pessoas."
O que quer que se depreenda do argumento de Kasper, foi difícil ficar com a impressão de que alguém que fala por uma profunda convicção pessoal tão óbvia - sem falar, é claro, da comparação de Amoris a uma das maiores rupturas científicas de todos os tempos - realmente considere este momento como apenas mais um como os outros.
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Os defensores do “nada de mais” de 'Amoris' podem não acreditar realmente nisso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU