23 Janeiro 2018
A primeira coisa que Lia Levi me mostra é uma imagem curiosa e antiga. Uma foto da turma de formandos em Direito de 1928. São vinte e oito pequenos retratos que trazem um nome debaixo de cada um. A única mulher presente se chama Leontina Segre. É a mãe de Lia que está ali naquela memória fotográfica, em suaves tons de sépia, para mostrar a sua singularidade: "Ela se formou noventa anos atrás e depois se casou com meu pai. Ela poderia ter tido uma carreira jurídica, mas as condições de então não o permitiram. Uma mulher era principalmente uma reprodutora, depois, uma dona-de-casa e, finalmente, uma cuidadora de corpos familiares, até que a morte não a separava de tudo isso. A intenção de obter um diploma, ousar o impensável, foi vivida na família como uma pequena extravagância intelectual".
A entrevista é de Antonio Gnoli, publicada por La Repubblica, 21-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao falar, e falando voltam as lembranças, Lia Levi, de pequena estatura, com o rosto salpicado de manchinhas, está um pouco reclinada no sofá. Senta-se com o olhar virado para o grande retrato de seu avô, que morreu de gripe espanhola durante a derrota do Caporetto. Tenho a impressão de que muitas coisas que decoram a casa desta senhora de oitenta e seis anos pertencem à memória. Uma memória pessoal, mas que de alguma forma entrelaça-se, por razões históricas, no tecido coletivo: "Para um judeu a memória é uma ferramenta mais forte e dolorosa do que para qualquer outra pessoa. Mas não houve apenas "mortos e feridos", apenas aqueles que viveram diretamente a grande tragédia do Holocausto, mas também aqueles que foram tocados de leve pela tragédia, e que por tanto tempo permaneceram em silêncio ou sem saber".
Em quem pensa exatamente?
Penso em mim, que quando criança só podia adivinhar pelos olhares e suspiros a ansiedade que devorava os meus pais. Naquele período de dois anos, 1938-1939, eles fizeram de tudo para me esconder o que estava acontecendo na Itália.
As famigeradas leis raciais.
Eu não sabia de nada. Eu vi meu pai angustiado que rondava pela casa; minha mãe cada vez mais silenciosa; quanto a mim, eu frequentava o primeiro ano primário, e fui transferida de uma escola pública para uma escola judaica.
E não suspeitava que o país estava mudando radicalmente?
Não. No entanto, os elementos estavam todos lá. Meu pai que trabalhava com seguros foi despedido de uma hora outra. Ninguém na família me disse nada. Eu o via pintar.
Não fazia nada além de jogar tinta nas telas e um dia perguntei-lhe: papai, por que não está indo trabalhar? Ele ficou me olhando, enquanto secava o pincel e ficou calado. Só entendi mais tarde que era apenas a vergonha que o silenciava.
Onde vocês moravam?
De Pisa, onde nasci, nos mudamos para Turim. As nossas origens são do Piemonte.
Nós éramos descendentes de uma família abastada. O avô de minha mãe era um dos homens mais ricos de Saluzzo. Era dono de um banco privado, terras e até um castelo. Tive uma infância confortável.
Mesmo depois a promulgação das leis raciais?
Eu era uma criança protegida. Lembro-me que meus pais estavam fazendo muitas compras: tinham comprado objetos e móveis, muito lindos, talvez até na convicção que mobiliar a casa serviria para combater esses tempos escuros. Na verdade, estavam simplesmente dilapidando a rescisão que meu pai recebera após a demissão.
Não estava procurando um novo emprego?
Sim, mas que quem assumiria o risco de contratar um judeu? Ele procurou trabalho, mesmo informal em Turim e Milão. Finalmente encontrou um emprego em Roma, para onde nos mudamos em 1942. De maneira totalmente anônima tratou dos aspectos legais de uma pequena empresa.
Como você lembra-se da cidade?
Daquele ano tenho vaga lembranças. Lembro-me de Villa Sciarra não muito longe de onde morávamos, na área de Monteverde, na época ainda uma área de campanha. Eu estava matriculada, como eu disse, na escola judaica, que era localizada em Sanzio. Chegar até lá era uma viagem. Levantava-me bem cedo e junto com minha irmã pegávamos um ônibus para ir à escola. Por causa do meu sotaque piemontês, era alvo de piadas. Muitos dos meus colegas eram filhos dos artesãos e trabalhadores: falavam em dialeto romanesco e aos seus olhos eu parecia apenas uma criança mimada. Na verdade, eu começava a entender a vida.
Entender em que sentido?
Eu estava definitivamente saindo daquela sensação de despreocupação que marcou grande parte da minha infância. Esses mundos que eu não conhecia, novos rostos, às vezes zombando, outras provocando, me perturbavam. Era como se tivesse sido criado um tempo paralelo que corria às margens de um rio escuro e ameaçador. Comecei a intuir que algo terrível poderia me acontecer.
Quando teve plena consciência?
No ano seguinte, quando houve a ocupação alemã e foi pedido ouro como tributo para a guerra. Metade dos judeus romanos interpretou a ordem como um convite reconfortante; ou seja, a prova de um acordo entre o comando geral alemão e o Vaticano: eles nos teriam deixado em paz em troca das nossas riquezas. Meus pais estavam entre aqueles que não confiaram na oferta.
Por quê?
Porque do outro lado estavam os lobos. O único que não percebia era meu pai. Um homem gentil, mas que vivia em um mundo à parte e sem qualquer sentido prático da vida. Uma noite sentado à mesa, no meio do jantar, chegou a dizer: talvez a melhor coisa seja nos entregarmos aos alemães, não fizemos nada de errado. Eles vão entender que somos boas pessoas. Eu vi minha mãe torcer o guardanapo, já que não podia torcer o pescoço dele. Mas ele era assim. Poucos dias depois, minha mãe anunciou que havia encontrado uma solução. Talvez.
Qual?
Ela fez um acordo para nos deixar em um convento de freiras. Era o final de setembro de 1943. Em outubro, teria começado o grande ataque ao gueto. O convento era um colégio ainda vazio. Minha mãe nos levou para lá. Conversou com uma freira idosa. E então se despediu. Eu perguntei: onde você está indo, vai nos deixar aqui? Ela prometeu que voltaria. A freira nos deu um nome falso e nos explicou que devíamos responder que éramos católicas para quem quer que perguntasse. Eu falei que não sabia as orações e a liturgia da igreja. Você logo vai aprender, respondeu de forma brusca. Aprendi o credo em latim.
Que tipo de vida vocês levavam no convento?
No começo, éramos bem poucas, depois de 16 de outubro, o convento encheu-se de refugiadas. Chegavam aos cântaros, tantas meninas judias. O ataque alemão e fascista havia começado no gueto e se espalhara por toda a cidade. Eu podia ler nos olhos das pessoas que chegavam o terror pelo que estava acontecendo. Meus pais perguntaram à superiora se eles também poderiam buscar refúgio no convento. É só para mulheres, respondeu a velha freira. A senhora sim, pode se juntar às meninas, o seu marido não.
Seu pai, o que ele fez?
Resignou-se, depois o aconselharam a mudar seguido de residência. E ele então começou a fazer um tour pelas pousadas romanas. Ficava uma ou duas semanas e depois se transferia para a próxima. Certa vez ele terminou em um pequeno hotel que na verdade era um local de jogo ilegal. A fim de poder ficar - uma vez que não havia nenhum outro lugar - ele teve que fingir ser um jogador. Acabou entrando tão bem no personagem, que começou mesmo a jogar. Não tendo nenhum conhecimento sobre as cartas, perdeu a maior parte do dinheiro que deveria servir para a nossa sobrevivência.
Você amou seu pai?
Sim, embora o entusiasmo pueril por coisas inconsistentes, a inclinação para certa abstração faziam dele um homem de pontos de vista não exatamente irrealistas - porque isso ele não era - mas inadequados para a luta. E era preciso lutar. Mas ele, com dificuldade para entender a vida, já não tinha mais capacidade para vivê-la plenamente. Estava desorientado. Diferente de minha mãe e de tantas mães judias que foram tigresas e leoas e lutaram disputando com a vida cada migalha para defender e alimentar seus filhos. É estranho.
O que é estranho?
Meu pai tinha entendido muito antes de todo mundo o lado demoníaco de Hitler e o lado igualmente insidioso de Mussolini, e em sua mente labiríntica havia se formado uma imagem de perigo absoluto para o nosso povo quanto a estas bestas vorazes. Mas tudo isso lhe tirou a força em vez de ajudá-lo.
Além de pai e mãe você teve um marido judeu de quem contou a história em seu novo romance - "Questa sera è già domani" (edições e/o) - e fez isso retratando a história de uma família de fugitivos que busca proteção na Suíça e que corre o risco de ser recusada.
Fiquei impressionada com a forte analogia entre a história dos judeus no buscaram no exílio um abrigo e o que está acontecendo hoje. Naquela época, depois de 1938, o acolhimento dos judeus em fuga da Alemanha, da Áustria, mas também da Itália era em teoria não só viável, mas acompanhada por belíssimas palavras. Pena que, na prática, poucos assumiram a responsabilidade. Parece que a história, apesar da diversidade de contextos, esteja se repetindo.
O que fazia seu marido?
Sua história, que é afinal a que eu contei mudando apenas os nomes, foi muito mais dramática do que a minha. Era de origem inglesa, seu pai lapidava diamantes e, aparentemente, era bastante respeitado. A mãe tinha posto no filho muitas esperanças. Estava convencida de que ele era um gênio, porque estava adiantado um ano na escola. Mas quando percebeu que aquela inteligência, certamente vibrante, foi se redimensionando, ficou profundamente decepcionada até desenvolver dentro dela um verdadeiro rancor.
Contra quem?
Em relação ao filho, mas especialmente do sogro. Quando chegou de Londres a oportunidade de voltar para a Inglaterra, ela se opôs com toda sua força. Foi uma recusa incompreensível, motivada apenas por seu mau gênio. A história com o meu marido floresceu mais tarde. Nós conhecemos quando eu ainda era adolescente e ele seis anos mais velho, em um acampamento de verão nas Dolomitas que as escolas judaicas organizavam. E então nos encontramos novamente muitos anos depois. Ambos estávamos saindo de um primeiro casamento. Eu estava dirigindo a revista Shalom e ele pediu para colaborar. Eu indaguei sobre o que tinha feito todos esses anos. Ele respondeu que tinha ajudado seu pai no corte de diamantes. Pareceu-me bastante estranho, pois nunca tinha conhecido um homem mais desajeitado do que ele. Nós nos apaixonamos e casamos. Ele morreu alguns anos atrás e só então senti o desejo de escrever sobre ele e sua família.
Quando pensou que era hora de escrever?
A primeira vez aconteceu na década de 1960. Enviei o meu conto para a redação do Mondo. Foi lido e decidiram publicá-lo. Saiu e fiquei muito satisfeita. Pena que depois de algumas edições o semanal fechou. Parei naquele momento. Houve uma longa incubação. Somente na década de 1990 voltei a escrever sobre mim e as histórias que tinham acontecido com a minha família e mais genericamente com os judeus. Eu não trazia em mim nem remorso nem sentimento de culpa. Eu não era uma sobrevivente, e, como já mencionei, eu entendi mais tarde que tinha acontecido.
Deu uma explicação para si mesma?
Não há só uma. A história é um conjunto de camadas de fatos e emoções que quando questionadas nos fornecem respostas diferentes e às vezes até contraditórias. Uma das explicações foi a necessidade de remover. Durante anos, depois da guerra, as pessoas não queriam saber. Fecharam os olhos. Inclusive muitos judeus continuaram durante anos sem saber das atrocidades do extermínio. Lembro-me que alguns judeus romanos que tiveram parentes deportados, continuaram por um longo tempo indo para a estação na esperança de vê-los retornar.
Como você tomou consciência?
Mesmo antes dos testemunhos diretos, aos quais não se prestava atenção, pois não se queria acreditar em tudo que tinha acontecido; para mim foi importante a literatura do extermínio. Dois livros abriram os meus olhos: O Diário de Anne Frank e Se questo é um uomo de Primo Levi. Eu não podia acreditar: de repente se abriu sob os meus pés um abismo. De vergonha e de desespero. Tudo isso deu sentido à minha escrita que não quer ser dramática. No máximo, pretende contar como, pelo lado da normalidade de um povo, aquelas vidas, as nossas vidas, correram o risco de ser falsas. A noite do esquecimento foi a continuação de um silêncio, que não sei dizer se culpado ou inocente. Mas um silêncio que, no momento em que foi quebrado, me deu a oportunidade de renascer.
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Memória do Holocausto – Dia internacional. Lia Levi. Entrevista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU