Por: Jonas | 24 Janeiro 2014
Volta a esquentar a polêmica sobre os “silêncios” de Pio XII. Porém, os fatos dizem: a Igreja católica ofereceu refúgio para um grande número de judeus. Um comentário da historiadora hebreia Anna Foa.
A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Chiesa, 23-01-2013. A tradução é do Cepat.
No retorno da visita ao seu amigo de toda a vida, Jorge Mario Bergoglio, que também será seu companheiro de viagem para Israel, o rabino argentino Abraham Skorka falou ao Sunday Times sobre o pontificado de Pio XII: “Acredito que o Papa abrirá os arquivos”.
Fonte: http://goo.gl/gZOLJ6 |
Com isso, Skorka não revelou nada de novo, mas bastaram essas poucas palavras para avivar as expectativas de uma abertura iminente dos arquivos referentes ao papa Eugenio Pacelli, inclusive antes da viagem de Francisco à Terra Santa, programada entre os dias 24 e 26 de maio.
Ainda nos anos 1960, Paulo VI fez publicar, com uma excepcional antecipação, os doze grandes volumes de documentos vaticanos do período da Segunda Guerra Mundial.
Nesse momento, espera-se que o papa Francisco coloque à disposição a documentação completa do pontificado de Pio XII, de 1939 a 1958. Trata-se de uma documentação que inclui dezesseis milhões de páginas, mais de 15.000 envelopes, 2.500 fascículos.
No Vaticano, há seis anos, está se trabalhando para organizar essa imponente massa de documentos, com a finalidade de facilitar aos estudiosos a sua consulta. E o prefeito do arquivo secreto vaticano, o bispo Sergio Pagano, disse ao Corriere della Sera que será necessário “ainda um ano, um ano e meio a mais”.
Foi Bento XVI quem incentivou a abertura dos arquivos de Pio XII. Contudo, quando em fins de 2009 proclamou as virtudes heroicas desse Papa, primeiro passo a caminho da canonização, as polêmicas sobre seus pressupostos silêncios durante a Shoah retornaram fortemente. O Yad Vashem de Jerusalém, o museu da memória, julgou “deplorável” que fossem reconhecidas as virtudes antes da publicação de todos os documentos.
São desse período as “impaciências” do então arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio - em colóquios com o rabino Skorka, reunidos depois em um livro -, sobre a abertura dos arquivos referentes a Pio XII, com a finalidade de “compreender se foi um erro de visão ou o que foi que aconteceu realmente”, porque “se erramos em algo, precisaremos dizer: ‘Erramos nisso’. Não devemos ter medo de agir assim”.
Enquanto isso, os estudos sobre o pontificado de Pio XII e os hebreus avançaram notavelmente em outra direção, menos ideológica e mais concreta: reconstruindo o que aconteceu aos milhares de judeus que salvaram suas vidas ao encontrar refúgio em igrejas e conventos de Roma e Itália.
Nesse âmbito, a investigação avançou muito e o resultado, claramente, foi que muitos hebreus se salvaram porque a cúpula mais alta da Igreja não apenas permitiu a sua salvação, mas a coordenou.
“Apaga-se, assim, a imagem proposta nos anos 1960 de um papa Pio XII indiferente à sorte dos hebreus ou, inclusive, cúmplice dos nazistas”, sustentou, há alguns dias, uma importante historiadora hebreia, Anna Foa.
Não apenas isso. Essa pesquisadora trouxe à luz uma solidariedade de vida que se instaurou nesse período entre os sacerdotes e as religiosas, por um lado, e os hebreus escondidos em seus edifícios, por outro, que foi precursora do diálogo entre Igreja e hebraísmo, iniciado decênios depois.
Anna Foa descreveu esta realidade em um congresso que ocorreu em Florença, nos dias 19 e 20 de janeiro. Abaixo, segue o texto de sua intervenção, quase na íntegra, publicado em “L’Osservatore Romano”, de 20-21 de janeiro. Anna Foa é uma presença recorrente no jornal da Santa Sé. Ensina história moderna na Universidade de Roma La Sapienza.
Quando sacerdotes e hebreus compartilham o mesmo alimento (Anna Foa)
Os estudos dos últimos anos colocam cada vez mais em destaque o papel geral da proteção que a Igreja ofereceu aos judeus, durante a ocupação nazista da Itália. De Florença, com o cardeal Dalla Costa proclamado “Justo”, em 2012, a Gênova, com o padre Francesco Repetto, também o “Justo”, passando por Milão com o cardeal Schuster até chegar, naturalmente, a Roma, onde a presença do Vaticano, além da existência de áreas extraterritoriais, permitiu salvar a milhares de judeus.
Precisamente, a propósito de Roma, as modalidades com as quais se realizou o trabalho de abrigo e socorro aos perseguidos eram tais que não poderia ser fruto somente de iniciativas que provinham da base, mas, claramente, eram coordenadas, além de permitidas, pela cúpula da Igreja.
Apaga-se, assim, a imagem proposta nos anos 1960 de um papa Pio XII indiferente à sorte dos hebreus ou, inclusive, cúmplice dos nazistas.
Aqui, eu gostaria de ressaltar que esta imagem mais recente da ajuda prestada aos judeus pela Igreja não surge de posições ideológicas ligadas ao catolicismo, mas, sobretudo, de investigações concretas sobre a vida dos judeus durante a ocupação, com a reconstrução de histórias de famílias ou de indivíduos. Em resumo, do trabalho de campo.
O refúgio nas igrejas e nos conventos surge continuamente nas narrações dos sobreviventes, aparece como um fio vermelho os testemunhos orais recolhidos durante anos na Itália – como a amplíssima documentação dos testemunhos de judeus italianos na Shoah Foundation – e está presente na maior parte das memórias dos contemporâneos. É contado como um fato garantido, que pertence ao âmbito das evidências, com toda a diversidade de situações: desde os conventos, que solicitavam uma hospedagem, até os que acolhiam gratuitamente os hebreus, que, por sua vez, davam uma mão no trabalho cotidiano, como é o caso das meninas hebreias que ajudavam como mães dos meninos da escola das Mestras Pias Filipinas, em Roma Ostiense, caso contado por Rosa Di Veroli.
É, em resumo, uma imagem fruto não do debate sobre o tema Igreja e Shoah, mas também, e sobretudo, da pesquisa dirigida para ilustrar a vida e ocorrido com os hebreus sob a ocupação nazista.
A debatida “quaestio” historiográfica sobre Pio XII e os hebreus freou a investigação durante muitos decênios, levando para o terreno ideológico cada tentativa de esclarecer os fatos históricos. Penso, ao contrário, que para escrever a história da relação da Igreja com os hebreus na Itália ocupada é necessário, antes de tudo, abrir o campo desta questão.
A pergunta principal, portanto, não pode ser a da relação entre o espírito profético de um Papa e os compromissos diplomáticos de outro Papa, mas sobre o quanto e até que ponto e, também, com quantas oposições internas a Igreja e o Papa estiveram dirigindo o trabalho de ajuda aos hebreus italianos. As duas questões são diferentes, em minha opinião, devem seguir sendo diferentes.
A investigação sobre as modalidades concretas de ajuda aos hebreus, sobre a presença dos hebreus em conventos e em igrejas, sobre a vida dos hebreus dentro dos refúgios eclesiásticos, começa a trazer à luz um aspecto sobre o qual me parece que se refletiu pouco até agora: a mudança de mentalidade que disso se pode derivar.
É verdade que hebreus e cristãos haviam convivido, durante séculos, entre os muros dos guetos e nas antigas judiarias, na Itália, e de maneira especial em Roma, mas esta convivência muito raramente havia envolvido os eclesiásticos. Agora, necessário pela urgência da perseguição, sacerdotes e hebreus compartilhavam o mesmo alimento. As mulheres hebreias passeavam pelos corredores dos conventos de clausura e os hebreus aprendiam o Pai Nosso e se vestiam com o hábito como precaução no caso de invasões alemãs e fascistas. Rosa Di Veroli, a quem se pediu que rezasse com os outros na igreja, fazia isso, mas, recitando em voz baixa o Shemà Israel.
Havia uma efetiva esperança por parte dos cristãos em tocar o coração endurecido dos hebreus e empurrá-los para o batismo? E os hebreus que se batizaram, fizeram-no após um pedido verdadeiro ou pela fascinação de um mundo que não conheciam e que lhes oferecia proteção? Surge em nossa mente Lia Levi, de “Uma bambina e basta” (“Uma menina e nada mais”), atraída durante um breve instante pelo batismo.
Falamos obviamente dos casos de conversão nos conventos, não dessas conversões, verdadeiras ou simuladas, realizadas em 1938 com a esperança de evitar a dureza das leis racistas, quando em Milão o cardeal Schuster batizava, ao alvorecer, os hebreus no Duomo e os jornais antissemitas mais radicais viam nesses batismos “o cavalo de Troia dos hebreus na sociedade ariana e cristã”.
Certamente, tudo isso coloca em marcha, em ambas as partes, dúvidas e temores ante uma relação estreita e cotidiana.
Nos sacerdotes, e especialmente nas religiosas, estes temores podem tomar o caminho do incentivo à conversão, segundo uma linha mais consolidada e tradicional de relação. Deste modo, a cotidianidade e a atenção encontram justificação e consolo na esperança de levar um hebreu ao batismo.
Por outro lado, nos hebreus o temor atávico de ser empurrados à conversão leva-lhes (surgem casos deste tipo na documentação oral), às vezes, a não levar nem sequer em consideração a ideia de se refugiar em uma instituição eclesiástica.
Porém, pode acontecer que nada de tudo isto aconteça. O que dizer, em Roma, da Igreja de São Benedito, no Gasômetro, onde se refugiaram muitos hebreus e de seu pároco, o senhor Giovanni Gregorini, então jovenzinho, que encontrava tempo para conversar todos os dias com um dos refugiados hebreus, um homem de certa idade e muito religioso, das respectivas religiões e de suas relações? Aqui, dos dois lados, havia um respeito recíproco e curiosidade mútua.
Em resumo, acredito que esta familiaridade nova e repentina, iniciada sem preparação pelas circunstâncias, em condições em que uma das duas partes era perseguida e corria o risco de morte e que necessitava, portanto, de maior “caridade cristã”, não se deu sem consequências para o início e a acolhida do diálogo. Um diálogo que ocorreu muito mais tarde, certamente, e que se iniciou, sobretudo, em nível teórico. Trata-se de um diálogo na base, feito de compartilhar os alimentos juntos e de conversações sem pretensões, também para superar a ansiedade de uma relação desconhecida até esse momento.
As religiosas de outro convento romano acrescentariam o bacon à sopa comum somente após havê-la distribuído às hebreias, para quem haviam dado refúgio. Também esta é, em minha opinião, uma forma de diálogo na base.
Imediatamente após a guerra, em um momento que prevalecia a necessidade de esquecer a Shoah, este processo de diálogo foi bloqueado, em parte, porque por um lado os hebreus estavam tentando reconstruir seu próprio mundo e a própria identidade após a catástrofe e, por outro, os católicos pareciam ter retornado às posições tradicionais em que a esperança da conversão era mais forte que o respeito. Talvez tenha sido esse desfecho dos primeiros anos, após a Shoah, o que impediu o desenvolvimento desse diálogo na base, da mesma forma nos níveis mais altos, como demonstra o fracasso do encontro de Jules Isaac com Pio XII.
De qualquer forma, independente de como foi, em inícios dos anos 1960, com “O vigário” de Hochhuth, sobre esse processo se projetaria a sombra da lenda negra de Pio XII, com o resultado de obstruir e obscurecer a memória e o peso desse primeiro percurso comum.
Hoje é o momento certo para voltar a investigar sobre ele.
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Os milhares de hebreus salvos em igrejas e conventos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU