19 Dezembro 2017
'As vítimas foram abusadas por aqueles que cresceram considerando representantes de Deus na Terra'.
Há algo inerente na própria "natureza" das escolas e mosteiros da Congregação Beneditina Inglesa que contribuiu e "até permitiu” a escala e a extensão dos casos de abuso infantil, segundo audiência da investigação britânica sobre abuso sexual infantil.
No último dia de uma audiência de três semanas na congregação, parte da Investigação Independente Britânica sobre Abuso Sexual Infantil (IICSA, na sigla em inglês), que ocorre em Londres, o inquérito ouviu as declarações finais, como recomendações, de quatro advogados representando vítimas de abuso.
A reportagem é de Rose Gamble e Alex Daniel, publicada por The Tablet, 16-12-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Dominic Ruck-Keene, que representa um grupo de vítimas de abuso sexual, disse que acreditava que o papel do abade na Comunidade Beneditina Inglesa era especialmente preocupante.
Os abades, disse ele na investigação, concentram “demais o poder” e estão sujeitos a conflitos de interesses. O desejo de um abade de manter a comunhão de uma comunidade tem "um efeito real em decisões e ações de proteção", afirmou.
Da mesma forma, segundo ele, monges e padres podem, às vezes, ser vistos como figuras irrepreensíveis.
Dominic Ruck-Keene disse que ele observou fraquezas antigas e continuadas da Congregação Beneditina Inglesa, como a falta de gestão centralizada; falta de registros centralizados; e investigação e manejo dos monges que cometeram abusos, mesmo quando o abade tinha sido informado sobre determinadas preocupações com indivíduos.
Todos esses fatores, segundo ele, "parecem ter contribuído para a irregularidade e inconsistência do entendimento das abadias individuais e da implementação do que deveriam ser políticas de proteção nacionais”.
Ele fez recomendações como pedir uma organização católica de proteção "com recursos e pessoal adequados", com uma missão investigativa nova e estendida; fazer o registro centralizado de todos os monges beneditinos ingleses, incluindo registros de todas as tentativas de proteção, limpar a legislação da Igreja para que os abades não possam escolher sobre sua adesão e de "políticas e procedimentos supostamente em nível nacional que dependam de sua vontade particular ou preferência sem prestação de contas externa".
Concluiu com um apelo para que a investigação aja acerca destas recomendações:
"Os monges que abusaram dessas crianças eram in loco parentis. As vítimas eram como vocês e eram sexualmente inocentes, mas talvez o pior de tudo seja que os monges traíram sua posição e autoridade espiritual. As vítimas foram abusadas por aqueles que cresceram considerando representantes de Deus na Terra. A profundidade e o significado dessa traição é a razão pela qual se deve agir", declarou, durante a audiência.
Sam Stein, QC, representando mais de 12 ex-alunos de uma escola missionária comboniana católica, que faz com que os principais participantes se envolvam no inquérito, disse que durante as três semanas a investigação ouviu evidências sobre se a Igreja Católica conseguiu impor uma boa administração e normas de proteção à criança elevadas e padronizadas.
Em uma forte crítica, concluiu: "A resposta parece ser não."
"A Igreja Católica é e permanece tão fraca, tão díspar e com tantos órgãos separados que não respondem a qualquer autoridade central que é difícil enxergar como pode, sem uma grande reforma, demonstrar que consegue oferecer uma boa administração e elevados padrões de proteção à criança", afirmou.
Stein pediu que as leis garantam que os sacerdotes denunciem casos de abuso sexual, bem como os relatados em confissão.
Ele disse que se recusar a agir de acordo com relatos de abuso infantil recebidos em confissão é um dos exemplos mais evidentes de um "grave inibidor estrutural à proteção à criança".
"Uma cultura em que a confissão é parte do regime de sigilo permite que os abusos continuem", disse.
"A regra confessional representa até onde vai a confiança entre padres e monges. Manter este sigilo até a morte nos torna parte, faz parte do próprio tecido das suas vidas", explicou.
E acrescentou: "A menos que Deus chame a polícia, temos um problema."
Iain O'Donnell, do escritório de advocacia Slater & Gordon, que representa 27 dos principais participantes, disse na investigação que sem a obrigatoriedade de denúncia a Igreja Católica continuaria representando uma "aparência externa formal da suprema importância da proteção”, mas na prática não faria nada para deter os abusos.
"É hora de estas instituições entrarem na era moderna por bem ou por mal, lembrando-os que eles são objeto de denúncias claras e obrigatórias", declarou.
"A obrigatoriedade das denúncias vai mudar a cultura dentro destas instituições, gostando a Igreja Católica Romana ou não", acrescentou.
Matthias Kelly QC, do Ampleforth, disse que a escola reconhecia que as coisas tinham corrido mal no passado e “lamentava profundamente por essas falhas".
E acrescentou: "A Ampleforth apoia a ideia da denúncia obrigatória das acusações de abuso infantil às autoridades legais, sendo, claro, prática nos moldes do que o Ampleforth já adota."
Acrescentou ainda que era certo desenvolver políticas e procedimentos que enraizassem uma cultura de proteção em todas as escolas, considerando isso "um primeiro passo muito necessário".
Kate Gallafent QC, da Congregação Beneditina Inglesa, disse que as estatísticas de acusações de abuso sexual contra 12 monges de Downside eram "vergonhosas" e que os representantes da escola tinham "pedido desculpas a todas as vítimas e sobreviventes de casos de abuso sexual infantil cometidos por pessoas ligadas a Downside de forma categórica".
Ela sugeriu que as estatísticas desmentiram a "melhoria significativa na proteção que ocorreu em Downside nos últimos anos", apontando para as observações de Liam Ring no início da investigação, coordenador de proteção da diocese de Clifton, que também tem experiência na área de proteção infantil como policial.
Ela disse: "Da forma como ele [Liam Ring] disse, a escola Downside está na frente em alguns aspectos de sua proteção e do quadro de avaliação de riscos."
A respeito das recomendações de denúncia obrigatória, advertiu: "Não seria apropriado chegar a qualquer conclusão sobre isso sem ter ouvido de outros membros veteranos da Igreja Católica e outras partes interessadas".
A Investigação Independente Britânica sobre Abuso Sexual Infantil (IICSA, na sigla em inglês) foi criada em 2015 para investigar se uma série de órgãos públicos e outras instituições não estatais na Inglaterra e no País de Gales "têm levado a sério sua responsabilidade de proteger as crianças contra o abuso sexual".
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Inglaterra. A própria 'natureza' das escolas das Congregações Beneditinas permitiram as ocorrências de abuso infantil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU