29 Novembro 2017
O destacado teólogo jesuíta Pe. Gerald O’Collins pediu que cada uma das Conferências Episcopais dos países de língua inglesa aproveitem o momento, tirem o pó da tradução inglesa de 1998 do Missal Romano e substituam a versão contenciosa e fraca de 2010. Em seu mais recente livro, intitulado “Lost in Translation: the English Language and the Catholic Mass” (Perdidos na tradução: a língua inglesa e a missa católica, sem tradução brasileira), O’Collins, atualmente professor pesquisador da Jesuit Theological College, na Austrália, analisa as “guerras litúrgicas” da Igreja e a “usurpação” vaticana da autoridade dos bispos locais.
A reportagem é de Sarah Mac Donald, publicada por National Catholic Reporter, 27-11-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Escrito em conjunto com John Wilkins, ex-editor da publicação londrina The Tablet, O’Collins escreve que o Concílio Vaticano II deu às conferências dos bispos a responsabilidade de traduzir os textos litúrgicos, mas que a instrução vaticana de 2001 Liturgiam Authenticam tirou este dever dos bispos e o deu à Congregação para o Culto Divino.
A tradução de 1998 das orações que os católicos usam na liturgia, chamada por O’Collins como “o missal que não era”, não conseguiu obter aprovação da Congregação para o Culto Divino e foi, por fim, substituída por uma tradução revisada em 2010, introduzido nas paróquias em novembro de 2011.
A Congregação vaticana também substituiu a Comissão Internacional para Língua Inglesa na Liturgia, que havia traduzido as orações dos originais em latim, com a comissão Vox Clara (“voz clara”), controlada pelo Vaticano, sob a presidência do cardeal australiano George Pell.
Isto viu a ênfase na tradução mudar de uma “equivalência dinâmica” para uma tradução mais literal do latim, ou aquilo que Maxwell E. Johnson, da Universidade de Notre Dame, chamou de a “sintaxe impossível e ‘linguagem sacra’ forçada”.
“Lost in Translation” foi publicado assim que o Papa Francisco emitiu as novas instruções sobre a sua iniciativa em setembro, o documento Magnum Principium, que reavalia Liturgiam Authenticam e retorna a responsabilidade pelas traduções às Conferências Episcopais.
No livro, os autores sustentam que a imposição da tradução de 2010 era o resultado de uma “tomada de controle escandalosa” por elementos conservadores no Vaticano, e O’Collins pede que as conferências dos bispos aproveitem o momento para reverter estes eventos.
Wilkins delineia as manobras que levaram ao desmantelamento da Comissão Internacional para a Língua Inglesa na Liturgia e a forma como o Cardeal Medina Estévez, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, ignorou os 16 anos de trabalho da comissão internacional, muito embora a tradução do missal feita havia sido aprovada por todas as 11 Conferências Episcopais de língua inglesa participantes.
Em entrevista ao National Catholic Reporter, John Wilkins explicou que a pesquisa que fez para o seu capítulo no livro baseia-se no “acesso a todas as fontes essenciais – não somente pessoas, mas também documentos”.
Prestando tributo à “pesquisa extremamente impressionante” e à “comparação rigorosa” que O’Collins faz das duas traduções, Wilkins disse que fica claro que a tradução do missal de 2010 não consegue avançar no sentido dado pelo Vaticano II, a saber: a plena participação do sacerdote e do povo. O’Collins também critica os princípios não satisfatórios prescritos por Liturgiam Authenticam.
O propósito do livro, escreve O’Collins, é mostrar a superioridade da tradução de 1998 em relação ao missal de 2010.
“Escrevi a partir do desejo de que as conferências dos bispos de língua inglesa ajam com rapidez e, introduzindo o missal de 1998, permitam que os presidentes e as congregações celebrem a liturgia naquela que é verdadeiramente o idioma deles”, afirma O’Collins.
O autor é altamente crítico da “solicitação [do missal de 2010] por um ‘vernáculo sacro’ mítico que favoreça ‘palavras estranhas, majestosas, modos obsequiosos de se dirigir a Deus’, e uma linguagem não inclusiva que deixa de lado metade da raça humana”.
Wilkins concorda. Ao National Catholic Reporter, contou: “‘Para nós homens e para a nossa salvação’ no Credo – propter nos homines – sequer é uma tradução correta, pois o ‘homo’ latino não significa ‘homem’ em oposição a ‘mulher’ – que é ‘vir’. Acho difícil dizer aquelas palavras.
Não se pode simplesmente fazer o que se fez – mas eles fizeram!”
O’Collins igualmente concorda que a tradução literalista, palavra por palavra, de 2010 é difícil de proclamar, principalmente por suas frases latinas longas que não se encaixam no idioma inglês.
“Este vernáculo sagrado com o qual as igrejas de língua inglesas trabalham desde o Advento de 2011 me pede para preferir ‘caridade’ a ‘amor’, ‘compunção’ a ‘arrependimento’, ‘laudar’ a ‘louvar’, ‘suplicação’ a ‘oração’”, queixa-se ele.
Também acrescenta que o missal “me convida, com persistência, a usar uma linguagem de mérito’, linguagem que se aproxima da antiga heresia derivada de Pelágio. Pelágio sustentava que por meio dos nossos próprios esforços podemos alcançar a salvação. Acho equivocado ler textos que incentivam uma redenção promovida pelo próprio indivíduo”.
Uma outra preocupação que o livro destaca é a falta, no missal de 2010, de uma sensibilidade ecumênica. De acordo com Wilkins, “houve uma tristeza enorme expressa nos círculos ecumênicos” a respeito dessa situação, pois o diálogo ecumênico havia produzido textos comuns para o Sanctus, o Credo e o Glória. Agora, estes foram abandonados. Quando Horace Allen, liturgista presbiteriano e professor emérito de culto na Boston College, leu Liturgiam Authenticam, declarou: “Algo terrível aconteceu e que eu nunca havia imaginado – um parceiro ecumênico de confiança e querido acabou de se retirar”.
Em sua análise, O’Collins examina as razões possíveis para a retirada do missal de 1998, perguntando-se se isto ocorreu devido a um erro em curso em honrar a colegialidade ensinada pelo Concílio Vaticano II: Será que foi um “erro o que permitiu prevalecer autoridades centralizadas, em grande parte sem responsabilização e com opiniões idiossincráticas de uns poucos poderosos?”
Na década de 1990, a verdadeira colegialidade, especialmente no funcionamento das Conferências Episcopais, passou por uma temporada invernal, observa O’Collins:
“O ‘não’ a um missal aprovado pelas conferências dos bispos de língua inglesa dito pelo Cardinal Medina contrário à colegialidade coincidiu com o motu propio de 1998 de João Paulo II, Ad Apostolos Suos, o qual exigia decisões unânimes nas votações das conferências em temas doutrinais. Onde uma tal unanimidade não era alcançada, o ensino deveria ser remetido à Santa Sé para a sua aprovação ou desaprovação. Isto efetivamente emasculou o ensino doutrinal destas tais conferências ao se exigir delas um padrão mais alto do que aquele que prevalecia no Vaticano II”.
Embora acredite que a pressão dos leigos seja fundamental para que haver alguma mudança, Wilkins acha também que uma mudança nas lideranças deve, em última análise, ocorrer nas conferências dos bispos. Em vista da franqueza e abertura de certos bispos para esta mudança de rumos, o autor mostra-se esperançoso. Em nota emitida em 26 de outubro, os bispos da Nova Zelândia expressaram apoio e agradeceram o Magnum Principium, do Papa Francisco, documento descrito por eles como uma “diretiva ousada”.
Admitindo frustração com certos aspectos da atual tradução do Missal Romano, disseram que iriam “procurar explorar, com prudência e paciência, a possibilidade de uma tradução alternativa do Missal Romano e de uma revisão dos textos litúrgicos”.
Na mesma linha, os bispos alemães pareceram sinalizar o abandono da nova tradução do missal com base no documento Liturgiam Authenticam, o qual o Cardeal Reinhard Marx descreveu como “um beco sem saída”.
Mais próximo de casa, Wilkins acredita que os bispos de língua inglesa na Inglaterra e no País de Gales sentem-se sobrecarregados pela hierarquia americana, com o seu número superior de prelados. “A questão é: Como fazer com que eles [os bispos ingleses e galês] ajam?”, pergunta-se Wilkins. “A meu ver, o importante é que os leigos escrevam cartas aos bispos e se manifestem. Tudo está pronto, e precisamos nos mover”.
Wilkins é realista quanto aos desafios presentes neste seu convite e de O’Collins pelo missal de 1998, já que a cultura clerical na Igreja faz com que os bispos encontrem dificuldades para admitir que estiveram errados. Eis por que os leigos são fundamentais para uma mudança.
O sinal mais esperançoso, porém, é o próprio Papa Francisco.
“Quando começamos a trabalhar no livro, não poderíamos imaginar que, no final de 2017, o cenário seria complemente alterado pelo motu proprio do Papa Francisco Magnum Principium, em que ele deixa claro que uma revisão de Liturgiam Authenticam era necessária”, disse Wilkins. “E não apenas isso, mas também ele deixou claro que são os bispos, conforme a instrução do Vaticano II, e como suposto em Liturgiam Authenticam, que irão supervisionar as traduções e aprová-las. Isto é, ele põe de volta aos bispos a responsabilidade nas traduções”.
Francisco, salienta Wilkins, é um “indivíduo do Vaticano II: ele crê na colegialidade e no comando da Igreja pelo papa e os bispos, não pelo papa e a Cúria Romana. O modo como o Vaticano tirou a prerrogativa dos bispos lhes dada pelo Vaticano II é algo está entalado em sua garganta”.
O triste conto do “missal que não era”, de 1998, acredita o autor, foi um “ataque arrogante” associado à mudança de clima em Roma que o pontificado de João Paulo II anunciava, promovendo a centralização da autoridade em detrimento da colegialidade. “Foi um ataque por controle. Diferentemente, o Papa Francisco pensa a Igreja como unidade na diversidade e diversidade na unidade; ele enxerga o valor de todas as igrejas locais”.
Segundo Wilkins, os bispos reconhecem, em particular, que a tradução não é boa. “Se estamos dando graça a Deus, precisamos dar o que temos de melhor – a tradução de 2010 não é a melhor. Existe um sentimento reprimido entre muitos bispos e cardeais que se puseram a defender esta tradução”. Mas adverte que tal inércia pode ser um obstáculo bem como as considerações de logística como custo de produção, impressão e distribuição de um novo missal.
Wilkins crê que as traduções deveriam estar na pauta de todas as Conferências Episcopais e que estas precisam entender as implicações das iniciativas recentes de Francisco. Os bispos neozelandeses parecem já ter feito isso com o comunicado de outubro, onde observam que o papa “reafirmou o ensino do Concílio Vaticano II que declara que cabe aos grupamentos locais de bispos a tarefa de supervisionar e, então, aprovar as traduções para o idioma vernáculo, antes de buscar a aceitação final do trabalho à Santa Sé”.
Wilkins disse ao National Catholic Reporter: “A estrada está aberta agora, portanto temos de nos mover, porque pessoas já desistiram. Mas depois do que aconteceu este ano com o Papa Francisco, o impossível se tornou possível”.
No livro, O’Collins defende que não há a necessidade de uma nova comissão a ser criada por Francisco para revisar o Liturgiam Authenticam e se ocupar a respeito de ser ou não necessária uma outra tradução do Missal Romano.
“Não é necessário. A aguardar existe uma tradução, preparada pela [Comissão Internacional para o Idioma Inglês na Liturgia] e aprovada por todas as conferências dos bispos [desse idioma]. Tirem-na das prateleiras vaticanas, batam o pó e façam-se uns poucos acréscimos. Então, a missa no vernáculo pode se tornar, como deve ser, uma ferramenta poderosa de evangelização quando as pessoas a vivenciam”.
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Aproveitar o momento: autores dizem que chegou a hora de reverter o missal, em inglês, de 2010 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU