04 Setembro 2017
Um sociólogo francês teve 12 encontros secretos com Francisco. Aqui ele conta os bastidores dessas conversas. “Este Papa só é feliz em contato com as pessoas. Ele se coloca ao pé dos Evangelhos; ele os encarna”, conta.
A reportagem é de Claudia Peiró, publicada por Infobae, 02-09-2017. A tradução é de André Langer.
Entrevistado pelo Le Figaro, às vésperas do lançamento do livro Política e sociedade, que reproduz em 12 capítulos as conversas que teve com o Papa Francisco entre fevereiro de 2016 e fevereiro de 2017, Dominique Wolton deu detalhes desses encontros.
Esta é a segunda vez que Jorge Bergoglio se submete a este tipo de entrevistas destinadas à formação de um livro.
O Jesuíta. Conversas com Jorge Bergoglio, dos jornalistas Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti foi o primeiro deles. Mas, naquela época, em 2010, Bergoglio ainda não era papa.
Desta vez, o autor é o sociólogo francês Dominique Wolton, de 70 anos, que revelou ao jornal Le Figaro detalhes das 12 sessões de trabalho que ele teve na maior discrição com o Santo Padre para escrever este livro.
Wolton é pesquisador, especialista em comunicação política e “não em religião”, como ele mesmo esclarece. No entanto, respaldando-se em uma experiência anterior – um livro-entrevista com o cardeal Jean-Marie Lustiger, que foi arcebispo de Paris entre 1981 e 2005 – enviou a Francisco uma proposta similar. Vale ressaltar que Lustiger, que faleceu em 2007, era filho de judeus poloneses. Seus pais morreram em Auschwitz, ele foi acolhido por uma família francesa e converteu-se ao catolicismo.
“Impressionado com o impacto da comunicação do Papa Francisco – contou Wolton –, enviei-lhe um projeto (de livro). Ele o aceitou. Eu não podia acreditar...”.
Na Introdução, o sociólogo escreve: “O ângulo escolhido para este livro emerge de uma das perguntas recorrentes da história da Igreja: qual é a natureza do seu compromisso social e político? Qual é a diferença com um ator político?”
“Eu fiquei impressionado com a sua fé, alegria, bondade, gentileza, lucidez – responde Wolton à pergunta sobre qual a impressão que o Papa Francisco deixou nele. Em relação à natureza humana, ele não é ingênuo e não se deixa enganar por nada. Menos ainda pelos mecanismos de poder e de dominação... Por outro lado, faz poucas referências a Deus. É muito econômico no vocabulário religioso (...) Existem muitos prelados que se entregam a uma confusão teológico-conceitual. (...) Além disso, não houve para ele nenhum tema tabu, nem censura de sua parte”.
À pergunta de se havia caído sob o feitiço de Francisco, Wolton respondeu: “Eu sou um leigo francês (...), de cultura cristã, católica, mas sou agnóstico. Francisco tem uma dimensão espiritual visível por sua alegria, por sua fé, mas também é completamente laico na sua forma de agir. Somos, portanto, diferentes e próximos. Ele pode discutir sem problema com qualquer um. Eu fiquei fascinado com esta constante mistura que há nele, de homem de fé e de leigo”.
Wolton destacou que o Papa “faz espontaneamente a separação entre a Igreja e o Estado”. Algo que, por sinal, parece se ter esquecido na Argentina na recente polêmica sobre o ensino religioso nas escolas de Salta, quando a maioria dos analistas fez gala de ignorância esquecendo que o laicismo é uma herança da religião cristã, proposto nos próprios Evangelhos. “Há influências recíprocas – disse Wolton –, mas para Francisco o poder político não deve apoiar-se no religioso”. Um tema que, acrescenta o sociólogo, será “a questão central do próximo século, especialmente com o Islã”.
No fundo, não é surpreendente que o Papa tenha optado por um francês. O violento secularismo desse país não deve fazer perder de vista que, na França, o pontificado de Francisco é acompanhado com muita atenção. Suas homilias e discursos são analisados em profundidade por especialistas, tanto crentes como agnósticos. Trata-se de um país que têm muitos vaticanistas de valor, mas também um grande acervo cultural católico. A França é muito secular, mas também muito cristã.
Jorge Bergoglio está bem familiarizado com essa riqueza intelectual católica francesa. De fato, muitos dos seus autores favoritos são dessa nacionalidade. De Léon Bloy – citado em sua primeira homilia como Papa – e Joseph Malègue – ambos católicos leigos – até os teólogos jesuítas Henri de Lubac e Michel de Certeau.
“Alguém pode ser ateu, mas teria que ser ingênuo para pensar que as questões de espiritualidade podem ser suprimidas – continua dizendo Wolton –, porque são questões em relação às quais nenhum ser humano pode se esquivar; ninguém pode dizer que não se interroga sobre quem é, para onde vai, a morte...”.
“Muitos dizem que este Papa é de esquerda”, diz-lhe o entrevistador. E Wolton responde: “O critério esquerda-direita não se aplica a questões religiosas. Ou, em todo caso, apenas de modo parcial e insuficiente. (...) A força da espiritualidade e da religião é mostrar que há outras dimensões. Reduzir as religiões a um enfoque esquerda-direita é um empobrecimento perigoso para todos. Eu diria que [o Papa Francisco] seria mais de direita em virtude de sua formação com os jesuítas argentinos. Mas, sendo muito próximo dos pobres, ele se esquerdizou. Ele está atormentado com as desigualdades Norte-Sul. Está indignado, mesmo quando se controla. Definitivamente, onde se situa? É indisciplinado! Não se pode classificá-lo. Este Papa só se sente bem com os pobres, os dominados e os excluídos. Ele ama o povo e só se sente bem com ele. Só é feliz em contato com as pessoas. Ele se coloca ao pé dos Evangelhos, os encarna. Isso é de uma força incomum”.
Quanto ao fato de que as últimas declarações do Papa incitando os europeus a se abrirem à migração terem caído muito mal em determinados setores, Wolton disse que “em20 anos, diremos que felizmente ele disse isso, se não sofremos a guerra, nós, as democracias”.
E acrescenta: “Vivemos em um mundo transparente. Os países pobres veem os mortos no Mediterrâneo e a indiferença dos países ricos. Se não dissermos nada, se não fizermos nada, a violência será terrível. Assim que (Francisco) tem mil vezes razão. Pensa que é um dos maiores escândalos da globalização. Os países ricos criaram esta situação pelas guerras. O capitalismo selvagem acelerou tudo isso nos últimos 30 anos. Hoje, as vítimas econômicas e políticas de tudo isso chegam aos países ricos democráticos que, por sua vez, lhes dizem: ‘saiam!’ A ira que o Papa Francisco suscita significa que acertou no alvo. (...) Mas não sairemos disso com a política do avestruz. De modo que (Francisco) presta um imenso serviço à humanidade dizendo o que ninguém quer ouvir”.
Francisco também discorreu sobre alguns aspectos pessoais, como o fato de que durante seis meses, em 1978, fez terapia com uma psicóloga e também lembrou como foi marcado pelas mulheres da sua família.
O Vatican Insider publicou alguns trechos do livro – que estará nas livrarias da França no próximo dia 06 de setembro, que reproduzimos na sequência.
“O problema começa nos países de origem dos migrantes. Por que eles deixam suas terras? Devido à falta de trabalho ou à guerra. (...) À falta de trabalho, porque foram explorados (penso nos africanos). A Europa explorou a África... não sei se podemos dizer isso! Mas algumas colonizações europeias... sim, exploraram. (...) A primeira coisa a se fazer, como eu disse nas Nações Unidas e no Conselho da Europa, em todo o mundo, é encontrar fontes para criar novos postos de trabalho, investir. É verdade que a Europa também precisa investir em sua casa. Também aqui existe um problema de desemprego. O outro motivo para a migração é a guerra. Podemos investir, as pessoas terão uma fonte de trabalho e já não precisarão partir, mas se houver guerra, terão que continuar a fugir. Quem faz a guerra agora? Quem fornece as armas? Nós.”
“O Estado laico é uma coisa saudável. Há uma laicidade saudável. Jesus disse: ‘Devemos dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’. (...) Mas penso que em alguns países, como na França, este secularismo tem uma herança muito forte do Iluminismo, que constrói um imaginário coletivo no qual as religiões são consideradas uma subcultura. Penso que a França (esta é a minha opinião pessoal, não o parecer oficial da Igreja) devemos ‘elevar’ um pouco o nível da laicidade, no sentido de que deve dizer que também as religiões fazem parte da cultura. Como expressar isso de uma maneira laica? Através da abertura à transcendência. Cada um pode encontrar sua forma de abertura.”
“Já não vejo (Robert) Schuman, já não vejo (Konrad) Adenauer [dois dos fundadores da União Europeia]... A Europa, neste momento, tem medo. Fecha, fecha, fecha... A Europa tem uma história de integração cultural, multicultural, como você disse, muito forte. Os lombardos, nossos lombardos, são bárbaros que chegaram há muito tempo... E depois tudo se mistura e temos a nossa cultura. Mas, qual é a cultura europeia? Como definiria hoje a cultura europeia? Sim, tem importantes raízes cristãs, é verdade. Mas não é suficiente para defini-la. Há todas as nossas capacidades. Estas capacidades para integrar-se, para receber os outros. Também há a língua na cultura. Na língua espanhola, 40% das palavras têm origem árabe. Por quê? Porque estiveram ali por séculos. E deixaram marcas... Creio que a Europa tem raízes cristãs, mas não são as únicas. Há outras que não podem ser negadas. No entanto, creio que foi um erro não citar as ‘raízes cristãs’ no documento da União Europeia sobre a primeira Constituição (...). Isso não significa que a Europa tenha que ser completamente cristã. Mas é um patrimônio, um patrimônio cultural, que recebemos.”
“Hoje, devemos repensar o conceito de ‘guerra justa’. Aprendemos na filosofia política que em caso de defesa a guerra é justificada e, nesse caso, é possível considerá-la justa. Mas, podemos definir uma guerra como ‘justa’? ou, antes, trata-se de uma ‘guerra de defesa’? A única coisa justa é a paz... Não gosto de usar o termo ‘guerra justa’. Ouvimos dizer: ‘Eu faço a guerra porque não tenho outros meios para me defender’. Mas nenhuma guerra é justa. A única coisa justa é a paz.”
“Mas, nós católicos, como ensinamos a moralidade? Você não pode ensiná-la com preceitos do tipo: ‘Você não pode fazer isso, deve fazer aquilo, não deve, não pode’. A moral é uma consequência do encontro com Jesus Cristo. É uma consequência da fé, para nós católicos. E para outros, a moralidade é o encontro com um ideal, ou com Deus, ou consigo mesmos, mas com a melhor parte de si mesmos. A moral sempre é uma consequência... Há um grande perigo para os pregadores: cair na mediocridade. Condenar apenas a moral (peço-lhe que me perdoe a expressão) ‘da cintura para baixo’. Mas dos outros pecados, como o ódio, a inveja, o orgulho, a vaidade, matar o outro, tirar a vida... não se fala. Entrar na máfia, fazer acordos clandestinos...”
A extensão do poder de absolver o pecado do aborto a todos os presbíteros, “cuidado, isto não significa banalizar o aborto. O aborto é um pecado grave. É o homicídio de um inocente. Mas, se é pecado, é necessário facilitar o perdão”.
“Quando falo (na Amoris Laetitia) de famílias em dificuldades, digo: ‘Devemos acolher, acompanhar, discernir, integrar...’, e então todos verão as portas abertas. O que realmente está acontecendo é que as pessoas ouvem que as pessoas dizem: ‘Não podem comungar’, ‘Não podem fazer isso’. (...) Este tipo de proibição é encontramos no drama de Jesus com os fariseus. O mesmo! Os grandes da Igreja são aqueles que têm uma visão que vai além, os que entendem: os missionários.”
“Matrimônio entre pessoas do mesmo sexo? ‘Matrimônio’ é uma palavra histórica. Sempre na humanidade, e não apenas na Igreja, é entre um homem e uma mulher... Não podemos mudar isso. Essa é a natureza das coisas. Elas são assim. Podemos chamá-las ‘uniões civis’. Não brinquemos com a verdade. É verdade que por trás está a ideologia de gênero. Também nos livros, as crianças aprendem que se pode escolher o próprio sexo. Por que o sexo, ser mulher ou homem, seria uma decisão e não um fato da natureza? (...) Digamos as coisas como são: o matrimônio é um homem com uma mulher. Este é o termo preciso. Chamemos a união do mesmo sexo de ‘união civil’.”
“Eles não aceitam o princípio da reciprocidade. Alguns países do Golfo são abertos e nos ajudam a construir igrejas. Por que são abertos? Porque têm trabalhadores filipinos, católicos, hindus... O problema na Arábia Saudita é que se trata realmente de uma questão de mentalidade. Com o islã, seja como for, o diálogo está indo bem, porque não sei se você sabe, mas o imã da Al-Azhar veio me ver. E haverá um encontro: hoje. Penso que seria bom fazer um estudo crítico sobre o Corão, como nós fizemos com as nossas Escrituras. O método histórico e crítico de interpretação fará você evoluir.”
Dominique Wolton é internacionalmente reconhecido como especialista nos estudos de comunicação social. No começo dos anos 1980, ele popularizou as ideias de Raymond Aron numa época dominada pelos grandes mestres de esquerda e introduziu a comunicação como objeto de pesquisa no CNRS. Sociólogo dos grandes movimentos de emancipação, ele não hesitou em se confrontar com o religioso nas entrevistas com Jean-Marie Lustiger, cardeal-arcebispo de Paris, e com a política entrevistando Jacques Delors. Ele é um dos primeiros cientistas que olhou criticamente as inovações que fascinam as mídias, intelectuais e profissionais das áreas de comunicação. Ele alargou sua problemática à comunicação política e à diversidade cultural. Ele integra o conceito da comunicação no seio das teorias do conhecimento, e explica porque a comunicação está no coração dos desafios da paz e da guerra do século 21.
No Brasil, alguns dos seus livros que foram traduzidos são:
Sua última publicação é Communiquer c’est vivre, Le Cherche Midi, 2016
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Como será o novo livro “autobiográfico” do Papa e quem é seu autor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU