15 Agosto 2017
Doze caixas de papelão estão rodando o mundo: foram postadas em Viena, em 23 de julho, muitas delas já chegaram ao seu destino, duas voltaram.
(Foto: Jakob Haueisen)
Dentro delas, doze pares de sapatos usados, de mulher, de homem, de criança. Sapatos que percorreram longas distâncias, enfrentaram o mar, o cimento, a areia, o arame farpado e as investidas dos policiais europeus.
São os sapatos de doze refugiados sírios, coletados pelo artista sírio Thaer Maarouf e enviados para nove líderes mundiais e três endereços aleatórios da Europa e do Oriente Médio.
A reportagem é de Chiara Cruciati, publicada por Il Manifesto, 13-08-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
O pacote, além dos sapatos, traz uma carta de Maarouf e um link para um vídeo [assista ao final da matéria] explicando o seu mais recente projeto, "Dirty Messages". Os destinatários foram, ou serão, o presidente dos Estados Unidos Trump, o primeiro-ministro britânico May, o presidente polonês Duda, o francês Macron, o italiano Mattarella, o primeiro-ministro australiano Turnbull, o presidente espanhol Rajoy, o russo Putin e o egípcio al-Sisi.
Os restantes três pares foram enviados para destinatários aleatórios na Hungria, Grécia e Líbano com um pedido específico: reenviar o pacote para outra pessoa qualquer, fazer com que esses sapatos girem o mundo, símbolo simples, mas poderoso da viagem, mas também da fuga, da distância e do desconhecido.
"Eu não estava esperando qualquer reação por parte dos governos – explica Thaer ao il Manifesto –, mas a resposta do governo espanhol foi encorajadora: eles me enviaram uma carta dando detalhes de seu projeto de assistência aos refugiados e dos planos para o futuro. O governo britânico, ao contrário, devolveu o pacote, sem dar qualquer explicação. Os custos a cargo do remetente: eu paguei por sua recusa".
Não foi só Londres, poucos dias depois o governo egípcio fez o mesmo: o presidente al-Sisi (conhecido por explorar a questão da migração para garantir a impunidade interna) não quer os sapatos dos refugiados sírios entre seus pés.
Foto: Jakob Haueisen
"Os sapatos têm uma relação plástica com o ser humano. É o contrário da ideia de estabilidade: você tira os sapatos quando chega em casa e os veste quando vai sair. É símbolo de movimento, caminho, viagem. Para os muçulmanos, além disso, têm um significado especial: são tirados na entrada das mesquitas porque não são limpos, pois trazem consigo a sujeira das ruas. Eu escolhi um símbolo concreto do sofrimento que experimentam os refugiados, que chegam sabe-se lá de onde a pé, um símbolo real da violação das leis e da indiferença com a geografia. Os sapatos carregam em suas solas o impacto de tudo o que pisaram".
Foram os refugiados que doaram os sapatos usados para a viagem, que começou na Síria, passou pela Turquia para, em seguida, levar alguns deles ao longo da rota dos Bálcãs, blindada. Eles permanecem encerrados, em espera, como em espera, também estão aqueles nos campos de refugiados no Líbano, Turquia e Jordânia.
A Síria nunca foi um país de origem de emigração, se não econômica e em pequena escala: dada a elevada educação e excelência da formação de muitos sírios, quem foi trabalhar no exterior o fez como profissional: engenheiros, médicos, arquitetos procurados por todo o mundo árabe.
(Foto: Jakob Haueisen)
Hoje, os cinco milhões de refugiados sírios (e os sete milhões de pessoas deslocadas internamente) são oriundos das classes média e alta, bem como da classe trabalhadora, origens que descrevem – através das vidas dos próprios prófugos – a devastação do tecido social e econômico de um país por seis anos de guerra.
São médicos, engenheiros, proprietários de hotéis e restaurantes, profissionais, operários, agricultores, professores: a ruptura de uma nação entre as mais estáveis no Oriente Médio, hoje mergulhada no período mais negro da sua história contemporânea.
Maarouf fotografou seus sapatos formando uma pilha, um sobre o outro, imagem dolorosa que lembra outras tragédias que atravessam a Europa.
Todos aqueles sapatos percorreram um longo e poeirento caminho, cruzaram as fronteiras nacionais, deixando para trás a guerra para se deparar com outros conflitos.
"Eu conheci muitas pessoas que me contaram em detalhes sua jornada: falaram das pessoas que perderam suas vidas, das que foram presas pela polícia. Contaram a ganância dos traficantes e da sensação de abandono. Porque se sentem abandonadas pelo mundo inteiro. A todos eles eu prometi a mesma coisa: enviar seus sapatos nos lugares onde eles sonhavam chegar, como se fossem seus embaixadores. No final, é só isso: no século XXI para um ser humano obter um visto é quase impossível, para um par de sapatos encontrar um líder mundial é muito mais fácil".
Maarouf, que como ofício é artista plástico, faz isso com arte: as fotos de calçados e as histórias dos proprietários serão exibidas, juntamente com as respostas dos governos ("Agradeço ao britânico, o pacote com o carimbo de sua recusa será uma peça de destaque da mostra"), em Viena, em setembro, antes de se serem levadas, em 2018, para Dubai.
O objetivo do Dirty Messages é utilizar a arte não mais como "mera ferramenta de entretenimento ou como uma representação da beleza: a arte está intimamente ligada às vivências dos povos, é o megafone para a verdade e a justiça. O artista luta com as ferramentas que tem a disposição".
Também luta contra as recusas em receber a mensagem que a arte incorpora, símbolo amargo da negação em acolher o ser humano. Luta contra as autoridades constituídas, para se infiltrar entre as dobras da opinião pública e da sociedade civil.
Por isso três pacotes foram enviados para endereços causais, ou como tais na aparência: um par de sapatos foi enviado para uma galeria de arte em Atenas, um para uma universidade polonesa e um para um teatro em Beirute, com o pedido específico de intermediar uma nova jornada para eles.
Porque "os sapatos deveriam estar constantemente em movimento, nunca imóveis, nunca em descanso: são a representação simbólica dos destinos".
Assista ao vídeo sobre o projeto, com legendas em inglês:
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Doze sapatos em busca de asilo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU