10 Agosto 2017
“A graça de Deus não é abstrata, mas concreta e alcança homens e mulheres de carne e osso, com todos os seus condicionamentos históricos. A comunhão eclesial, portanto, é vitalmente encontro, correção recíproca, não apenas na relação entre os indivíduos, mas nas relações entre grupos, instituições, Igrejas.”
Giuseppe (Pino) Ruggieri é professor emérito de Teologia do Studio Teologico di Catania e ex-professor das universidades Gregoriana e Urbaniana, de Roma, e da Faculdade de Teologia da Universidade de Tübingen. É membro da Fundação para as Ciências Religiosas de Bolonha, da qual dirige a revista Cristianesimo nella Storia.
A reportagem é de Giampiero Forcesi, publicada por Viandanti, 02-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esta entrevista também foi publicada pelas revistas: Dialoghi (Lugano), Esodo (Mestre), Il Gallo (Gênova), Il Tetto (Nápoles), Koinonia (Pistoia), L’Altrapagina (Città di Castello), Matrimonio (Pádua), Nota-m (Milão), Oreundici (Roma) e Tempi di Fraternità (Turim).
As revistas, que aderem à Rete dei Viandanti, querem, com essa iniciativa, dar visibilidade a um projeto comunicativo unitário, que, dentre outras coisas, pretende promover uma reflexão sobre os temas que o Papa Francisco indica para a reforma da Igreja, começando justamente pela questão da sinodalidade.
Você intitulou o seu último livro – um livro desafiador, mas fascinante – de Chiesa sinodale (Ed. Laterza, 2017, 280 páginas). Na introdução, você diz que, se não fosse por pudor, poderia tê-lo intitulado de “Existência, Igreja e pensamento sinodal”, porque os capítulos que o compõem têm um forte nexo com o seu caminho pessoal, as experiências que fez, o pensamento que elaborou. Um caminho e um pensamento que, na dimensão da sinodalidade, isto é, do caminhar juntos, encontraram um ponto de fusão, embora nunca de modo definitivo. Pois bem, talvez possamos começar daqui. Das etapas da sua vida e do seu pensamento em que o adjetivo sinodal surgiu de modo mais significativo...
Foram decisivos no meu caminho, para a reflexão sobre a natureza sinodal da Igreja, principalmente dois momentos. Tive a sorte de participar como “estenógrafo” dos dois primeiros períodos do Concílio Vaticano II. E, depois, à distância de um quarto de século, o bispo da minha diocese, Noto, na Sicília, me pediu para ajudá-lo a administrar o sínodo diocesano.
Mas essas datas dizem pouco por si sós. Porque onde eu amadureci os critérios para compreender tudo foi a minha colocação pastoral. Durante 25 anos, de 1972 a 1997, junto com alguns amigos, padres e leigos, juntos, decidi viver perto daqueles que, naquele momento, nós considerávamos como últimos, assumindo a responsabilidade coletiva de uma paróquia chamada “em risco”. Lá, eu amadureci a primeira forma “sinodal” do meu pensamento e, não por acaso, escrevi um livro que não falava ainda de sínodos, mas trazia como título “A companhia da fé”.
A etapa atual da minha reflexão teológica, enfim, é aquela que eu tentei testemunhar no último capítulo do livro, que, aparentemente, não tem nada a ver com o tema da sinodalidade, já que o capítulo traz o título de “antropologia messiânica”. Nesse capítulo, tentei indicar aquele que deveria ser o critério último para toda práxis sinodal.
“Messiânico”, para aqueles que não se lembram, significa simplesmente “cristão”, isto é, seguidor de Cristo, o atributo grego que traduz o hebraico “ungido”, messias. E Jesus foi confessado como o Messias pela primeira geração cristã, porque realizou as promessas contidas no profeta Isaías, isto é, porque, carregando o pecado de todos (Is 53), trouxe o alegre anúncio aos pobres, libertou os oprimidos (Is 61) etc., etc.
E ele fez isso, dizem os Sinóticos, “movido desde as entranhas” pelo sofrimento deles (é iluminador, nos Sinóticos, o uso do verbo splanchnizomai com a sua conotação messiânica). Essa é a convicção resumida da minha experiência de padre. Na Igreja, não se deveria falar de outra coisa, senão das modalidades para tornar presente hoje o evangelho do Messias. Mas isso implica uma companhia efetiva com os últimos.
No seu livro, você explica que os sínodos, em todos os níveis, foram celebrados, em sua maioria, para elaborar um consenso na Igreja sobre as questões para as quais ainda não existia um consenso. E escreve que não pode haver vida da Igreja senão como evento sinodal, independentemente da forma que esse evento assuma, e que relegar a práxis sinodal apenas para circunstâncias contingentes significa “afirmar que o ser da Igreja é sem vida própria, que pertence ao reino dos minerais e não das realidades vivas e orgânicas”. Olhando para os nossos dias, você acrescenta que a sinodalidade, muitas vezes, vive escondida na Igreja sob a forma de “substitutos” e anota que “se poderia escrever a história da Igreja do século XX, principalmente a da promoção dos chamados ‘leigos’, como uma história da invenção de substitutos cada vez mais fracos a se oporem à plena redescoberta da comunhão eclesial”. Pode explicar o seu pensamento sobre a natureza desse “consenso”? Você realmente pensa em uma forma sinodal, que vai além dos substitutos, como práxis de vida cotidiana da Igreja, em todos os níveis, até as paróquias individuais?
A afirmação de que os sínodos pertencem à cotidianidade da Igreja não é minha, mas eu a retomei de um dos maiores historiadores da ideia sinodal, o jesuíta alemão Hermann Sieben.
Obviamente, nessa afirmação, “cotidiano” quer indicar simplesmente “habitual”, no sentido de que cada orientação na Igreja não pode ser expressão de apenas uma parte do povo de Deus, nem mesmo da hierarquia episcopal, mas deve ser de todo o povo cristão, respeitando a contribuição que os vários ministérios e carismas, com as suas próprias especificidades, possuem.
No livro, eu relato um pensamento de Cusa, que ele aplicava ao consenso entre os vários ministérios: “A verdadeira concórdia é tecida com fios diversos” (vera concordia ex diversitate contexeretur). Isso não ocorre sem conflitos, às vezes duros, como a convivência eclesial e a história dos concílios mostram suficientemente.
Essa convicção foi progressivamente esquecida depois do Concílio de Trento, até a absurda afirmação de Pio X segundo a qual, na Igreja, há as ovelhas, às quais cabe obedecer, e os pastores, aos quais cabe mandar.
O século XX experimentou, por sua vez, a progressiva retomada da convicção da comum dignidade dos cristãos, a partir da chamada “colaboração dos leigos com a hierarquia”, que, embora sendo um substituto, era, no entanto, a tímida retomada da responsabilidade original e própria dos cristãos, ou seja, de todos os messiânicos.
Mas essa conscientização já deveria se implementar na práxis das paróquias. Na minha opinião, pelo menos uma vez por ano, elas deveriam celebrar seus próprios sínodos, mesmo sem chamá-los assim. O importante é a sua preparação, com a escolha dos assuntos e a efetiva presença dos vários componentes da realidade paroquial, rompendo os vários “círculos mágicos”.
O “modelo” da sua celebração, com as óbvias adaptações, deveria ser, além disso, o mesmo de qualquer concílio, principalmente com as orações de início e de fim, a entronização do Evangelho, o direito de palavra a todos, sem falsas hierarquias.
Para entender o espírito dessas reuniões, bastaria meditar a tradicional oração de abertura dos sínodos, aquela que traz o nome do verbo com que ela inicia: Adsumus.
O capítulo central do livro tem por título “Repraesentatio”. Você defende que, no centro de um evento sinodal, há a presentificação de Cristo mediante o Seu Espírito, e que é essa presença operante que cria o consenso entre os participantes. Essa categoria (a repraesentatio Christi ou a repraesentatio ecclesiae) é a chave – você diz – para compreender a profundidade de cada evento sinodal na Igreja. O consenso, de fato, é possibilitado pelo influxo em curso da presença do Espírito; e, por outro lado, é precisamente o acordo, o consenso, que permite falar de uma presença do Espírito e, portanto, de uma permanência na verdade. Um evento sinodal é autêntico, portanto, se tem a capacidade de suscitar consenso. Depois de observar que, vice-versa, na teologia atual, a expressão repraesentatio Christi é utilizada somente no âmbito sacramental (a Eucaristia) e no ministerial, você conclui afirmando que a compreensão do sentido autêntico da repraesentatio “é útil para discernir aquilo que constitui a verdade da experiência eclesial na história, distinguindo-o daquilo que constitui uma forma de estéril autoritarismo ou um desvio corporativo e sindical dela”. Pode nos ajudar a entender melhor esse seu pensamento?
Nesse capítulo, eu foquei aquelas que eu considero como dois desvios opostos da verdadeira concepção da práxis sinodal. Por um lado, ainda atua em muitos uma concepção descendente da autoridade: do papa, aos bispos, aos padres e, por fim, aos leigos. Por outro lado, o crescimento da consciência da igual dignidade e responsabilidade de todos os crentes corre o risco de deslizar para a concepção “democrática”, muito válida no plano político-civil, da delegação a partir de baixo, para a qual o consenso obtido deve respeitar a vontade das pessoas representadas e delegadas.
A grande tradição conciliar, no entanto, expressada do modo mais maduro nos concílios do século XV, confiou a origem da autoridade dos sínodos ao “mistério” da “repraesentatio” da Igreja (expressão que deve ser traduzida não como “representação”, mas como o ato de “fazer-se presente”).
Cada concílio ou "sínodo “perfeito” (categoria antiga que não equivale a “infalível”), de fato, “torna presente” a Igreja na medida em que o próprio Cristo se torna presente mediante o seu Espírito quando dois ou três se reúnem no seu nome (cf. Mt 18, 20: texto de referência tradicional das várias teologias conciliares, para além do seu contexto original).
O consenso, portanto, é um evento que o próprio Espírito cria quando existem as condições, que não são, em primeiro lugar, as jurídicas, mas sim as da escuta comum, tanto dos presentes, quanto da tradição do Evangelho de Jesus (que o Sieben chama, respectivamente, de escuta horizontal e vertical).
Os mecanismos da “representação”, que também são necessários e variam de acordo com as contingências históricas, são apenas a condição material externa para que se verifique o evento do consenso ou da “sinfonia espiritual” (nome que, no Oriente, equivale ao de consenso sinodal).
E a “sinfonia espiritual”, isto é, suscitada pelo Espírito, além disso, encontra a sua “confirmação” e a sua “asseguração” (expressões do Papa Martinho I, na carta de 31 de outubro de 649, na conclusão do Sínodo de Latrão) na recepção comum do povo de Deus.
Um sínodo é “perfeito” quando dá origem a três “acordos”: aquele com a tradição viva do Evangelho de todos os tempos, aquele entre os presentes, aquele com a base eclesial que o recebe e o põe em prática. Essa concepção não é aquela que classifica a autoridade dos sínodos ou concílios individuais (os dois termos se equivalem) de acordo com o seu grau de “infalibilidade”.
A discussão sobre a “infalibilidade” distorceu terrivelmente, na minha humilde opinião, o significado das decisões na Igreja, a partir de um significado de “verdade” que não é o evangélico, mas o filosófico da verdade como correspondência entre a linguagem e a realidade que a linguagem gostaria de traduzir.
A verdade cristã, pelo menos de acordo com o Evangelho de João, ao contrário, é testemunho do mistério do Pai e se opõe à mentira, que é um falar a partir de si mesmo (cf. Jo 8, 43-47). Ou seja, a verdade de um sínodo está na capacidade de traduzir ou não o evangelho do amor do Pai do Messias Jesus nas condições atuais da história humana, portanto, de ser testemunha da verdade no sentido em que Jesus proclamou, diante de Pilatos, que veio para testemunhar a verdade.
No seu livro Chiesa sinodale, a questão das relações entre Igreja universal e Igrejas locais ocupa um lugar central. E você escreve que um dos limites do Vaticano II foi o de não ter explicitado a dinâmica da ordenação episcopal e, consequentemente, de não ter valorizado a Igreja local. Um exemplo das consequências negativas dessa carência, que algumas decisões romanas exacerbaram no pós-Concílio, foi o progressivo silenciamento da experiência eclesial da América Latina. Olhando para a tradição da Igreja antiga, você escreve que a localidade da Igreja não é um fato casual ou uma exigência administrativa, mas é um fato de graça. Pode explicitar essa sua reflexão e as suas implicações?
Esse pensamento, de que a localidade de cada Igreja é um fato de graça, não é originalmente meu, mas do falecido padre Jean-Marie Tillard e foi muito ressaltado por um aluno de Congar, o padre Hervé Legrand. No Vaticano II, com a preocupação de redescobrir a colegialidade e a autoridade dos bispos não decorrente do papa, mas do sacramento da consagração episcopal como tal, faltou o aprofundamento da relação “constitutiva” entre cada bispo e a sua Igreja.
Na Igreja antiga, ao contrário, a relação era fundamental: a própria mudança de sede episcopal era considerada um fato anômalo, e não podiam ser dadas ordenações chamadas “absolutae”, ou seja, desvinculadas do laço do ordenado com uma Igreja local (cânone 6 do Concílio de Calcedônia).
É por força desse vínculo que um bispo participa da “solicitude por todas as Igrejas”. E a consagração episcopal era um fato que envolvia principalmente o presbitério, depois o povo que devia confirmar a decisão e, em seguida, os bispos vizinhos que deviam consagrar o eleito, já que o bispo representava o anel de unidade com toda a Igreja. Cada Igreja local, por isso mesmo, trazia para dentro da Igreja toda a sua história, as suas escolhas, os seus dons, mas também as suas fraquezas.
Mas o aporte de graça de cada Igreja não pertence apenas ao passado. Penso, sobretudo, no maior fato de renovação da Igreja depois do Vaticano II, isto é, a maturação da atitude em relação aos pobres na América Latina, que deu origem às várias formas de teologia da libertação. Essa teologia, na sua inspiração fundamental, não era um conjunto de concepções nascidas da mente dos teólogos, mas sim expressão de uma renovada consciência evangélica por parte dessas Igrejas, em primeiro lugar dos seus bispos (como não pensar em Dom Helder Câmara, ou em Dom Pedro Casaldáliga, ou em Oscar Romero?).
Tudo isso é graça, isto é, existência humana concreta, vivificada pelo Espírito de Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado. Pois a graça de Deus não é abstrata, mas concreta e alcança homens e mulheres de carne e osso, com todos os seus condicionamentos históricos. A comunhão eclesial, portanto, é vitalmente encontro, correção recíproca, não apenas na relação entre os indivíduos, mas nas relações entre grupos, instituições, Igrejas.
O capítulo do livro intitulado “Por uma Igreja da fraternidade e da sororidade” retoma o texto que você apresentou em Florença na primeira etapa daquele caminho ao qual foi dado o nome de “O Evangelho que recebemos”. Ao explicar o sentido daquela proposta, você escreveu: “Não apelamos a uma Igreja alternativa, mas expressamos a vontade de que a liberdade de expressão, o debate sine ira, a comunhão e o intercâmbio não se apaguem”; e traçou o caminho para uma Igreja que, por um lado, “se opõe ao autoritarismo clerical” e, por outro, positivamente, “exige a responsabilidade de todos, na variedade de ministérios e carismas, através do critério principal do consenso dos fiéis”. O “motivo último” que os havia impulsionado a promover aquela iniciativa, você dizia, era “o sofrimento de não ver no centro da atenção da Igreja o Evangelho do Reino anunciado por Jesus aos pobres e aos pecadores, enquanto cresce desmedidamente a pregação da Lei”. O apelo de vocês era por uma Igreja não da condenação, mas da misericórdia. A iniciativa se interrompeu, você conta, porque, com a sua vinda em março de 2013, as reivindicações que vocês tinham levantado eram finalmente testemunhadas pelo Papa Francisco, e, principalmente, justamente pelo anúncio da misericórdia, nas pegadas do Papa Roncalli. No livro, você não fez, mas gostaria, aqui, de esboçar – justamente a partir da reivindicação de uma Igreja sinodal – uma primeira leitura do impacto de Francisco sobre a Igreja, particularmente a italiana?
A iniciativa a que você se refere nasceu, como você disse, de um sofrimento. Para aqueles que, como eu, tinham vivido a primavera do Concílio a partir de dentro, era muito forte a sensação do “inverno” (a expressão era do padre Karl Rahner) que progressivamente tinha se abatido sobre a Igreja. O clima de abertura dos anos conciliares, determinado pela afirmação do primado daquela que o Papa João XXIII chamava de “substância viva” do Evangelho, aquela que nutre o coração de cada homem e de cada mulher que creem, tinha sido substituído, por vários motivos, não por último os motivos culturais ligados à temporada pós-1968, o medo, a defesa da “doutrina”, a retomada das condenações, a deslegitimação das escolhas de conferências episcopais inteiras (especialmente as latino-americanas).
Eu não gostaria de parecer um pessimista: de fato, não faltavam sinais que mantinham a esperança, como o pedido de perdão de toda a Igreja por parte de João Paulo II, gestos proféticos como o encontro de Assis entre os representantes das Igrejas e religiões em 1986 etc. A iniciativa do “Evangelho que recebemos” queria, nesse clima, manter a esperança na força do Evangelho como tal.
A eleição de Bergoglio a bispo de Roma mudou a atmosfera. A sua exortação Evangelii gaudium, sem muitas citações da letra do Concílio Vaticano II, deu novamente espaço para muitas das correntes quentes do evento conciliar: a centralidade do Evangelho em relação às doutrinas, o primado da misericórdia, a atenção privilegiada aos pobres e assim por diante.
Não é de se admirar, portanto, que a mensagem do Papa Francisco também encontre fortes resistências. Eu acredito que o motivo principal dessas resistências está na não aceitação, por parte de alguns, da centralidade do Evangelho em relação à doutrina e à disciplina eclesiástica. Veja, nesse sentido, a tentativa dos cardeais Brandmüller, Burke, Caffarra e Meisner de suscitar um processo de impeachment do papa por ser não ortodoxo, depois da exortação pós-sinodal Amoris laetititia.
Para outros, ao contrário, até mesmo bispos, o motivo é a difícil assimilação de uma mentalidade à qual não estavam preparados. O diagnóstico da situação atual, no entanto, continua sendo muito complexo. O Papa Francisco, que expressou a sua convicção sobre a natureza sinodal da Igreja, por outro lado, tem uma concepção bastante “jesuítica” do seu ministério: ouvir a todos, mas, no fim, decidir sozinho.
E, em todo o caso, eu não acredito que seja possível a chamada reforma da Cúria. No século XX, as várias reformas da Cúria, incluindo a sua chamada internacionalização, não produziram uma reforma efetiva. Por último, de fato, a reforma da Cúria pressupõe a reforma do papado. Enquanto o papa não renunciar aos “privilégios” acumulados no segundo milênio na Igreja latina, a Cúria continuará tendo um papel exagerado na vida da Igreja, com graves prejuízos para as Igrejas locais.
A Cúria, não nos esqueçamos, é um órgão do papa para o exercício do seu governo. Francisco fez um gesto importante nessa direção: a devolução aos tribunais diocesanos das causas de nulidade matrimonial. Mas esse é apenas um pequeno passo, embora, até agora, na minha opinião, ao lado da decidida afirmação e testemunho pessoal da prioridade do Evangelho, ele seja o fato mais importante no caminho para a reforma institucional da Igreja latina.
A parte conclusiva do seu livro é dedicada a pensar a fé no tempo presente. Você fala de uma prática da teologia que também é sinodal, resultado da ação dos diversos sujeitos da comunidade eclesial. E retoma o convite, que foi de João XXIII e do Vaticano II, de ler os “sinais dos tempos”, observando, porém, que o Concílio não ofereceu uma explicação adequada do seu significado, porque faltava, e talvez ainda falte, uma hermenêutica teológica apropriada, isto é, aquela que você chama de uma “perspectiva messiânica”. Trata-se, você escreve, de pôr toda a história sob a luz messiânica. Esse me parece ser um ponto crucial: a Igreja sinodal que está no centro de todo o livro tem a responsabilidade de viver e de comunicar “o Evangelho que recebemos” e, portanto, precisa interpretar os sinais dos tempos. Mas, então, qual é a chave hermenêutica que você indica para ler os sinais de Deus na história em que vivemos?
A chave interpretativa dos sinais dos tempos está, na minha opinião, na compreensão das palavras do próprio Jesus, quando ele repreende os fariseus por saberem distinguir o aspecto do céu, mas por não conseguirem discernir os sinais dos tempos, com a conclusão de que “uma geração má e adúltera busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal de Jonas” (cf. Mt 16, 1-4).
O sinal que é Jesus com a sua morte, acolhida por Deus na ressurreição, é o sinal dos tempos por excelência, aquele em que irrompe o Reino de Deus. Na práxis de Jesus e na práxis daqueles que o seguem, emergem ou, melhor, se “constituem”, no sentido literal da palavra, os sinais dos tempos. De fato, esses sinais não devem ser identificados com um fenômeno humano qualquer, seja ele o mais alto e espiritual possível, mas “nascem” da participação no sofrimento da criação. A pergunta fundamental e decisiva, respondendo à qual é determinado em última instância o critério que ordena uma interpretação dos sinais dos tempos, deve ser, então, formulada assim: como podemos constituir, também nós, sinais dos tempos, aqueles nos quais se aproxima a nós o reino de Deus, a imitação daquele que foi e continua sendo o sinal dos tempos por excelência, Jesus Messias?
A resposta me parece, então, muito simples, embora, depois, seja extremamente difícil traduzi-la na prática: constitui-se uma práxis messiânica, põe-se um sinal dos tempos nos quais o Reino de Deus se aproxima do homem, quando, à imitação do Messias Jesus, encarregamo-nos do peso do outro que sofre (cf Gl 6, 2: cumprir em nós a lei do Messias, carregando os pesos uns dos outros). Carregar o peso do outro não depende das suas qualidades morais, mas do sofrimento como tal.
Há uma passagem do livro de Jó que lança um relâmpago extraordinário de luz, quase deslumbrante, a esse propósito: “A pessoa desesperada tem direito à piedade (hesed) dos amigos, mesmo que tivesse abandonado o temor de Deus” (6-14). A destruição humana – também a do pecado – exige a piedade/hesed, termo que, no Antigo Testamento, inclui o de misericórdia. O sofrimento, independentemente da atitude moral de quem o sofre, adquire, então, como tal, densidade “teológica”. E esta é a gramática das Bem-aventuranças.
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Por uma Igreja sinodal em perspectiva messiânica. Entrevista com Giuseppe Ruggieri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU