02 Agosto 2017
O sociólogo Edgardo Lander aponta que a situação na Venezuela pode entrar “num ponto de não retorno” em poucas semanas, “com uma ordem constitucional manipulada e autoritária” e alerta que “há setores que procuram a violência como objetivo”. A entrevista foi realizada no final de maio de 2017.
A entrevista é de Carlos Carcione, publicada por Aporrea.org e reproduzida por Esquerda.net, 14-07-2017. A tradução é de Carlos Santos.
Edgardo Lander integra a Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição, é sociólogo e professor jubilado da Universidade Central da Venezuela. Faz parte do grupo de trabalho permanente da fundação Rosa Luxemburgo oficina de Quito, veio trabalhando alternativas para o desenvolvimento e é associado do Instituto Transnacional (TNI), que tem a sua sede em Amesterdão.
Neste artigo, integrado no dossier “Venezuela, um país esfacelado” do esquerda.net, publicamos apenas a primeira parte da entrevista dada por Edgardo Lander a Carlos Carcione, publicada em 28 de maio de 2017, com o título: “Há setores que procuram a violência como objetivo”.
A segunda parte, com o título “Se não evitarmos uma Constituinte ilegítima cairemos numa ordem completamente autoritária” está disponível aqui.
Que pensas dos últimos relatórios da Procuradora-Geral e do apelo do Governo à convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte?
Penso que depois das eleições parlamentares de 2015 o governo parece assumir que a sua continuidade no exercício do poder não é possível apelando à votação popular ou respeitando a Constituição. Então vemos um processo de progressivo desmantelamento da Constituição por muitas vias e, evidentemente, isso vai conduzindo ao colapso da própria estrutura do Estado, porque todos vão vendo quais são os seus limites.
Penso que os limites do aceitável do ponto de vista da Procuradora foram as sentenças 155 e 156 do Supremo Tribunal de Justiça e o atual aumento da repressão violenta. Ao denunciar a rotura da ordem constitucional e o que significa a criação de um modelo de Estado diferente do contemplado na Constituição de 99, estabelece-se um falha muito clara, porque aí estão colocadas não só as questões do desconhecimento da Assembleia Nacional, mas também um assunto que para aqueles que temos estado a trabalhar na Plataforma contra o decreto do Arco Mineiro é uma questão essencial: os contratos com as transnacionais e a autorização ou não ao atual presidente para que à margem da Constituição, à margem das leis vigentes, à margem dos direitos dos povos indígenas e à margem de toda a estrutura político territorial do Estado, tome decisões que comprometem o futuro do país. Ao dar ao Presidente o direito de tomar decisões desta magnitude está-se obviamente a quebrar um pilar fundamental da soberania.
Nos últimos dois meses, como muito bem disse a Procuradora Geral da República [Luisa Ortega Díaz][1], se há uma situação de violência e manifestações de descontentamento, o governo deveria, em primeiro lugar, procurar entender o que está a acontecer e porquê. E reconhecer o enorme e crescente descontentamento provocado pela situação econômica, pela escassez, pelas questões da insegurança...
Simultaneamente vemos que o governo tem vindo, passo a passo, a fechar qualquer possibilidade de expressão da vontade popular pela via constitucional. Desconhece-se a Assembleia, adia-se as eleições para governadores que estão marcadas para uma data fixa, que era em dezembro do ano passado, nega-se a possibilidade de um referendo revogatório que está previsto na Constituição e que é considerado como um dos direitos mais importantes da democracia participativa do país... Se não se marca um calendário para as eleições, se temos um presidente que governa em estado de emergência com atribuições para decidir sobre tudo, mesmo sobre a suspensão de direitos constitucionais, obviamente que se está a fechar o direito a que a população venezuelana, e não me estou a referir à MUD, mas sim ao conjunto da população, tenha o direito a dizer qual é a sua vontade em relação à situação do país.
Há para mim dois aspetos importantes em relação às declarações da Procuradora, um é responder a este mal-estar e assinalar que a mobilização de rua não se resolve apenas pela via da repressão. E, em segundo lugar, o facto de as formas de repressão estarem a violar, claramente, preceitos constitucionais. Se se está a utilizar Tribunais Militares para julgar manifestantes civis por via rápida, obviamente está-se a ultrapassar as atribuições dos tribunais militares, muito para além dos limites estabelecidos pela Constituição.
Como vês a violência política atual?
Estamos numa situação em que as manifestações pacíficas estão a ser reprimidas por um governo crescentemente autoritário, isto é verdade. Mas também sabemos que aqui estão em jogo interesses e a geopolítica em que se insere o governo venezuelano, sem isso é impossível entender o que acontece no país. Desde o início do governo de Chávez, há ação a favor de um golpe de Estado, com apoio político e financiamento dos setores mais radicais da oposição. Durante todos estes anos, houve apoio financeiro, político, treino, etc. Sabemos que há ingerência direta: por um lado, do Departamento de Estado e do Governo dos Estados Unidos e por outro lado do Uribismo colombiano. Se a isto juntarmos a ação dos média internacionais, dos quais nos últimos dias se destacaram o Miami Herald e o ABC de Espanha, como principais porta-vozes que salientam os “horrores do madurismo”, verificamos que existe uma ação bem orquestrada nessa direção.
Qual é a tua perspetiva sobre a Constituinte?
O governo reconheceu que não pode manter-se no poder, nem com a Constituição de 99, nem com uma eleição em que participem todas as venezuelanas e venezuelanos em condições de igualdade. E perante a pressão da convocação de eleições, tirou do bolso esta medida. E novamente em nome do diálogo, em nome de evitar a violência, em nome de criar um espaço no qual seja possível resolver as diferenças, cria-se um mecanismo absolutamente trapaceiro.
Por que se desenha uma engenharia eleitoral para converter a minoria que o governo e o PSUV representam atualmente numa maioria na Assembleia Constituinte. Isto é feito por duas vias fundamentais: Por um lado, na representação de natureza territorial, dá-se uma sobrerrepresentação às zonas rurais. Obviamente, é nas grandes cidades que a oposição tem mais força e o governo é mais débil, então desenha-se um mecanismo de sobrerrepresentação dos municípios mais rurais, com menor número de habitantes, para tentar equilibrar as desigualdades, mas sabem que isso não basta. Então juntam uma representação de caráter corporativo, onde haverá, claramente, mecanismos de manipulação e controle, porque com a longa história dos Conselhos Comunais e das Comunas, serão os conselhos “rojos rojitos” (“vermelhos”) que vão poder incorporar-se. São regras de jogo absolutamente enganosas e, por isso, já está pré-determinada a composição da Assembleia.
E também, passo a passo de forma mais ou menos explícita, anunciaram-nos qual vai ser o conteúdo dessa Constituinte, podemos ver as declarações que fizeram: Maduro disse que não põe em causa os poderes que tem, apesar de estar a governar há ano e meio em Estado de Exceção, isso não chega para poder implementar o tipo de lógica com que quer solucionar os problemas do país e necessita ainda de mais poderes.
Elias Jaua disse que este é um Estado indefeso face à ofensiva da oposição e que requer instrumentos constitucionais para se defender, isto é obviamente um estado ainda mais autoritário do que o que está a exercer. São sinais que temos de ter em conta.
Então vejo duas dimensões: a dimensão da sua inconstitucionalidade do ponto de vista do procedimento: quem convoca, como convoca. Sem deixar de lado a questão do conteúdo, porque se pressupõe que é uma Constituinte plenipotenciária, mas já se está a fixar quais vão ser as questões que deve aprovar.
Achas possível parar a violência? Com que iniciativas?
Primeiro, há que fazer um diagnóstico de que violência se trata. Se estivermos a ver simples excessos, episódios que fogem ao controle do governo e da oposição, interpretaremos essa violência de uma forma. Mas se, pelo contrário, vemos nesta violência interesses claros de caráter quase estratégico, de um lado e do outro requer-se violência para sair da situação, então a interpretação é outra.
Hoje sabemos que a cúpula corrupta e autoritária PSUV – Governo não está disposta a ceder e, para isso, não lhe importa quantos mortos são necessários para se manter no poder. A reunião de generais, que conhecemos por via dos documentos que chegaram ao Major General Cliver Alcalá, em que se discutiu abertamente a necessidade de utilizar fraco-atiradores contra as manifestações da oposição, são uma expressão disto: não importam os mortos, o que interessa é manter o poder.
Sabe-se que já se ultrapassou uma espécie de linha vermelha e há coisas que o governo está a fazer que são abertamente criminosas. Não só o grande golpe que a Plataforma pela Auditoria Pública e Cidadã denunciou[2], mas também o fato de que existem crimes contra a humanidade e os responsáveis por isso, aos quais não restam muitos caminhos, não têm muitos lugares no mundo onde ir desfrutar a sua fortuna ilícita. Isso coloca-os numa situação em que se vão defender intensamente, sem se importarem com o número de mortos.
Por outro lado, há setores radicais de direita que na realidade não querem que esta experiência do chavismo simplesmente termine com uma derrota eleitoral do chavismo, que deixe de alguma maneira viva esta experiência, embora muito golpeada. Ficaria como uma experiência de organização, de expectativas, etc., o que, para este setor não pode acontecer, e, por isso quer esmagamento, extermínio. Uma lição tal que este imaginário de mudança seja negado. E se, além disso, sabemos que neste setor extremista está a incidência internacional e está como se localiza a Venezuela na geopolítica global, fica claro que esta violência tem caraterísticas estruturais. Está claro que esta violência é extraordinariamente difícil de desmontar, porque esta situação encerra enormemente as condições para o diálogo. Não são apenas excessos, há setores que procuram esta violência como objetivo.
Porém, tanto a oposição hoje representada na MUD como o Governo PSUV enfrentam, em relação a isto, divisões internas. Isto não é unânime, nem é necessariamente maioritário. Há gente da MUD que afirma que estão a ser empurrados e chantageados pelos setores financiados e impulsionados pela política dos Estados Unidos e que não sabem como libertar-se dessa chantagem, mas também do lado do governo começa a haver quebra e vemos claramente pessoas que não querem tornar-se coparticipantes, cúmplices, desta situação. Vemos o comportamento da Procuradora Geral e de alguns magistrados do Supremo Tribunal de Justiça que se manifestam em relação à convocação e à forma de convocação da Constituinte, são sinais dessa quebra.
Então a possibilidade de entendimento, de diálogo, de saídas não violentas, passa necessariamente pelo reconhecimento de que não são dois blocos homogêneos, apesar de os extremistas de ambos os lados quererem uma bipolarização entre blocos homogêneos, entre amigo e inimigo na sua totalidade. Mas há muita gente no país, creio que a maioria claramente, que quer evitar uma guerra civil, quer evitar que a escalada de violência continue a aprofundar-se, essa gente tem que encontrar também mecanismos de relação, de contacto, de diálogo, de reconhecimento, de amplos setores tanto da oposição como do chavismo, já há expressões do chavismo crítico, mas há muita gente no governo, mesmo nas Forças Armadas que está crescentemente em conflito pelo papel que lhe estão a obrigar a desempenhar, nesta situação. E essas posições estão a tornar-se visíveis. É nestas posições que há que abrir espaços para o reconhecimento, não numa conversa entre Diosdado Cabello e Maria Corina Machado.
Primeiro, que há muita gente de ambos os lados que se sente arrastada para situações em que não quer estar e sobre as quais não quer ser corresponsável. Mesmo nas Forças Armadas, há setores que não querem ser corresponsáveis de uma matança. Inclusive há que recordar que Chávez mais de uma vez insistiu em que na sua geração, com o Caracazo e o papel que os obrigaram a cumprir, constituiu uma espécie de rotura. Um momento de consciência, de reconhecimento de que estavam a ser utilizados para pisar as pessoas. Então essa sensibilidade existe certamente, pelas informações com que contamos, que aferem que isso não é tolerado e não pode aguentar muito tempo.
Mas igualmente há setores da oposição que não querem ser instrumentos desta política, em que não se sabe hoje onde está o fascismo na Venezuela. Porque o fascismo existe quando “coletivos” de motocicleta atropelam estudantes do secundário de uma forma que faz lembrar os grupos da Alemanha Nazi e que têm as mesmas caraterísticas dos grupos paramilitares. E, igualmente a violência que se encontra em muitas manifestações da oposição aponta também nesta direção.
Hoje eu creio que inclusive as manifestações muito massivas que a oposição está a fazer não são necessariamente manifestações de toda a gente que está de acordo com a MUD nem com o seu projeto de sociedade. Mas, acham que é o único lugar onde têm possibilidade de expressar o seu descontentamento. É útil saber isto para não se sobreestimar a MUD como uma grande organização que tem a hegemonia total do país, porque eu creio que nem isso é certo…
Notas:
[1] Ver Venezuela: dissolução do parlamento é "rutura da ordem constitucional"
[2] Ver A implosão da Venezuela rentista (III)
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“A Constituinte leva-nos a um ponto sem retorno” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU