02 Junho 2017
Resistência popular finalmente bloqueou contrarreformas. Paralisia do governo — e não a delação da Friboi — desencadeou a nova crise política. Abre-se espaço para o imponderável.
O artigo é de Pedro Otoni, cientista político e educador popular, publicado por Outras Palavras, 01-06-2017.
A crise do governo Temer ocasionada pela delação dos proprietários da JBS promoveu uma atualização da tática golpista. O ponto final para Temer é uma tentativa de continuidade para o golpe.
Os interesses de uma classe não correspondem a um programa acordado a priori entre todos os indivíduos que a compõem. No mundo real, os indivíduos agem a partir de seus interesses, das avaliações que fazem sobre as situações que lhes são impostas, e cada uma destas ações é limitada pelo universo cognitivo do mesmo, além, é claro, da força que dispõe para atuar e viabilizar seus objetivos.
Mesmo sendo ambas verdadeiras, é pela mediação analítica dos objetivos de setores, grupos e indivíduos (concreto – particular) e dos interesses de classe (abstrato – genérico) que se podem procurar explicar os acontecimentos de uma conjuntura específica. Assim, a ação de um sujeito pode comprometer o interesse da classe à qual pertence, ou, ao contrário, salvá-la da própria miopia em relação aos fatos que ameaçam sua própria reprodução.
Se for verdade que os sujeitos (atores) de um determinado jogo social procuram agir de maneira consciente no sentido de alcançar seus objetivos, é também verdadeiro que outros atores (aliados e adversários) tentam fazer o mesmo.
A ação de um ator pode constranger os planos de outros, criando uma situação diferente daquela desejada por amplos. Quanto maior o número de atores envolvidos em um jogo, maior probabilidade do imponderável, isso porque as variáveis em operação na situação escapam ao controle dos sujeitos envolvidos, muitas vezes não são previsíveis, ou quando previsíveis não são domesticáveis.
Não é possível conhecer todas as consequências de uma ação, a porção conhecida é proporcional (ou quase) ao conjunto de informações de que dispõe o ator, bem como sua capacidade cognitiva (proveniente da experiência, da pesquisa, etc.) em transformar informações em conhecimentos, e conhecimentos em atos.
Entre a vontade dos atores de atingir seus objetivos e o volume de variáveis por eles desconhecidas surge o espaço para o imponderável.
Por que deram o golpe mesmo?
Para conhecer o que está em jogo hoje é preciso retomar as análises do desencadeamento do golpe e assim identificar o que há de novo na situação presente, ou seja, qual é a novidade conjuntural.
É necessário resgatar que o golpe é, antes de tudo, uma confluência de interesses. No nível de mando mais alto encontram-se os interesses das grandes petroleiras e conglomerados financeiros internacionais, que usaram o seu principal mecanismo de operação, o Departamento de Estado dos EUA, que também possui interesses próprios com a desestabilização do Brasil, para desencadearem a trama do golpista. Em resumo, neste momento havia dois objetivos fundamentais.
Objetivo do cartel das grandes petroleiras internacionais – Controlar o principal recurso estratégico brasileiro, o petróleo do Pré-Sal, mas também a tecnologia desenvolvida pela Petrobras. (Objetivo 1)
Objetivo do Departamento de Estado dos EUA – Inviabilizar a reivindicação de um lugar menos submisso do país nas relações internacionais (derrotar o Brics), por meio da implosão dos seus patrocinadores no Brasil. (Objetivo 2)
A partir de 2014, com a reeleição de Dilma, colocou-se, aos atores externos, a necessidade de uma abordagem mais truculenta.
Daí iniciou-se o processo de desestabilização e impeachment. Para viabilizá-lo foi necessário decompor não apenas a base parlamentar da presidente, mas ainda retirar o apoio (em alguns casos, a tolerância) que a mesma tinha nas próprias elites (bancos, empreiteiras, agronegócio, etc.).
Para garantir a aliança entre a Casa Branca e a Casa Grande foi necessário ainda agregar, aos dois primeiros objetivos, aqueles que correspondem aos interesses imediatos dos capitalistas brasileiros, que já estavam explícitos na agenda parlamentar das grandes confederações patronais (CNI, Febraban, Fiesp, CNA, etc.) e que ganharam sistematização no documento do PMDB, denominado “Ponte para o Futuro”.
Objetivo dos bancos – Garantir o aumento da renda da especulação financeira via dívida pública e financeirização de serviços públicos (ex.: congelamento dos gastos públicos por 20 anos, proposta de destruição da previdência pública, etc.). (Objetivo 3)
Objetivo do empresariado – eliminar os direitos trabalhistas e ampliar a subordinação do trabalhador perante o empregador (ex.: Proposta de reforma trabalhista, terceirização irrestrita, alteração das normas de demarcação de terras indígenas, etc.) (Objetivo 4)
Objetivo dos partidos políticos conservadores – Ampliar privilégios, desequilibrar as condições de disputa eleitoral ao seu favor, proteger-se contra ações criminais (Ex.: Escola Sem Partido, alteração do sistema eleitoral, etc.). (Objetivo 5)
O golpe é, portanto, a convergência destes interesses, que para materializar-se necessitariam eliminar um centro político-econômico condicionador formado pelo PT e a fração do empresariado beneficiária das medidas anticíclicas e das políticas de formação de players mundiais sustentada pelo financiamento do Bndes. Neste rol encontram-se as grandes construtoras, com a Odebrecht, que se capitalizaram com o Plano de Aceleração do Crescimento /PAC.
Para executar o golpe, foi necessário:
1) Decompor a viabilidade política do PT e de Lula.
2) Enfraquecer as chamadas empresas (“players”) mundiais explorando o sistema de corrupção intrínseco às atividades capitalistas, que não é uma exclusividade brasileira.
3) Realizar ataques coordenados, maciços e rápidos aos direitos do povo na perspectiva de dificultar a capacidade de reação e unidade das organizações populares.
Em síntese, a tática empreendida foi romper a relação de colaboração entre o PT e as grandes empreiteiras. Os instrumentos utilizados foram delações e acordos de leniência; e explorar as divergências de posição das organizações populares e sindicais em relação ao PT, isolando-o ainda mais dos setores populares. Como instrumento, foi montado o espetáculo do combate à corrupção (sem necessariamente combatê-la de maneira objetiva, uma vez que as investigações foram seletivas).
O Juiz Sérgio Moro e setores MPF (como aquele procurador do PowerPoint) são agentes (operadores) desta tática e são orientados no exterior (vide as intensas viagens do Juiz e dos membros do MP aos EUA).
A tática deu certo até certo ponto.
Algumas novidades da conjuntura mudaram substancialmente o curso dos acontecimentos em relação à Lava-Jato e à condição de Temer. Para perceber isso é necessário passar em revista os objetivos iniciais da trama do golpe.
Crise de orientação externa da Lava-Jato
Os atores externos (Petroleiras e Departamento de Estado do EUA) atingiram parcialmente seus objetivos.
Foi aprovado o projeto de autoria do Senador José Serra, hoje Lei 13365/2016, que retirou a garantia legal da Petrobras em participar em pelo menos 30% de cada jazida do pré-sal, além da operação exclusiva dos recursos provenientes destas reservas. A Petrobras, sob a direção do golpista Pedro Parente, segue vendendo jazidas de petróleo e gás por todo o país, garantido os interesses internacionais sobre estes recursos. A privatização da empresa está sendo feita por meio da desconstrução de sua viabilidade a logo prazo, assim o cartel das petroleiras internacionais garante boa parte do seu objetivo inicial.
Com o governo Temer, e sob a condução também de José Serra nas Relações Exteriores, o Brasil afastou-se do Brics e está isolado nas relações internacionais (exceto em relação a Washington). Enquanto ministro, José Serra sinalizou o interesse em ingressar nas negociações do TISA (Trade in Services Agreement — Acordo sobre Comércio de Serviços). Nada mais é do que um acordo de “livre” comércio muito mais danoso do que a proposta da ALCA e o Nafta, que visa a “mexicanização” das nações dependentes sob o domínio dos EUA e União Europeia. Os membros dos Brics não estavam dentro destas negociações, pela razão óbvia: o TISA é uma estratégia contra os “emergentes”.
Assim, é possível afirmar que o objetivo da Casa Branca foi parcialmente atingido. Porém, outra novidade neste tema é a entrada de Donald Trump no Salão Oval. Mesmo não rompendo com a política externa norte-americana, ele até o momento concentra-se em outra agenda, a da sua própria viabilidade política. O que deixa, em alguma medida, acéfala a orientação externa da Lava-Jato, largando Sérgio Moro sem direção, agindo por conta própria, ou quase.
Restam ainda os objetivos da Casa Grande brasileira (renda, privilégios econômicos e políticos, redução de direitos), que não foram contemplados conforme o prometido pelo governo de Temer.
Os bancos conquistaram uma grande vitória na PEC de Congelamento de Gastos (PEC do Fim do Mundo), mas a proposta de “Reforma” da Previdência está sob sério risco. O empresariado exige a “Reforma” Trabalhista, que também recebeu forte resistência da maioria da população brasileira. Os partidos conservadores, envolvidos nos escândalos de corrupção e desgastando-se a cada dia para viabilizar a agenda golpista fortemente antipopular, não conseguiram garantir as condições para uma contrarreforma política conservadora.
Enquanto isso, as organizações populares e sindicais acertavam uma linha mínima de resistência e uma forma básica de trabalho, que lhes garantiu ampliar significativamente o custo da aprovação das reformas. A Greve Geral do dia 28 de abril foi a expressão desse processo de unidade na ação.
Diante do bloqueio da agenda legislativa do golpe, o único fator que mantinha a sustentação de Temer em seu posto foi corrompido. O presidente do golpe encontra-se sem valor de uso e sem valor de troca, ou seja, é uma “coisa” a ser descartada caso não disponha de nenhum recurso de chantagem, como aqueles utilizados por Eduardo Cunha.
A Operação Lava-Jato de Moro (1ª instância) — seletiva em suas investigações — não tem controle sobre todos os campos de disputa que inaugurou. A delação dos donos da JBS foi produto da ação de outro centro de atores, o da Lava-Jato DF, operada por Rodrigo Janot (PGR) e pelo Ministro Edson Fachin (Relator da Lava-Jato no STF), que procuram reestabelecer uma “hierarquia” no Judiciário, e assumir o protagonismo na condução da operação, na tentativa de alcançar os objetivos constrangidos pela condução em primeira instância.
A lógica de Moro, ao eleger Lula como seu antagonista ao preço de colocar em questão a própria operação Lava-Jato, desagradou parcelas do consórcio golpista, mais fundamentadas pelos resultados de suas ações do que pelas preferências políticas e rancores. Moro não é mais útil, ou não na mesma proporção que antes, porque já está passando a arrombar portas abertas, e suas ações não correspondem mais aos objetivos já indicados. A condução de Curitiba protegia Temer e o PSDB, mas o que vale isso se os interesses materiais que estes agentes deveriam viabilizar não estão sendo encaminhados?
O elemento chave da atual crise do governo Temer não é a delação dos donos da J&B, mas a incapacidade da presidência e seus aliados tucanos em dirigir a aprovação das reformas. Isso se deve especialmente à resistência do povo nas ruas, que tem tido impacto no cenário parlamentar. Como não consegue aprovar as reformas, a Casa Grande deseja descartar o presidente e conduzir ao Palácio do Planalto alguém que tenha condições de continuar o trabalho.
Janot e Fachin assumem a condução da Lava-Jato neste momento, no sentido de fazer aquilo que Moro não quer e o que Temer não pode: dar continuidade à agenda das reformas. As delações dos “Irmãos Friboi” (Joesley e Wesley Batista) foram uma oportunidade para superar a tática já desgastada de Curitiba, e recompor o mínimo de legitimidade para que o espetáculo da Lava-Jato continue. Por isso a Globo cria as condições para a queda de Temer, Aécio e companhia, justamente para limpar o campo obstruído de interesses menores e viabilizar uma sucessão útil às metas do setor bancário e empresarial, mesmo que para isso tenha de destruir políticos conservadores (o elo mais fraco da trama do golpe), ou seja, não viabilizar “Objetivo 5” de nossa lista acima.
A confusão sobre qual caminho tomar na sucessão é justificável. O consórcio golpista não tem um estado-maior, mas uma correlação de força entre diferentes centros de decisão que perseguem metas próprias e agem frente às oportunidades e ameaças com as quais se deparam.
Voltando aos postulados iniciais, é na contradição entre os interesses particulares e o geral que a política real se processa. As elites se reproduzem principalmente pela competição, e a cooperação surge sempre no marco de um interesse competitivo. As delações e acordos de leniência deram segurança jurídica para a traição, já impressa nos costumes do andar de cima. A rasteira ganhou acabamento legal. Os açougueiros, que se tornaram banqueiros, não deixarão ninguém de pé, desde que seus vistos estejam garantidos para um destino acima da Linha do Equador. O capitalista particular pode provocar o apocalipse de sua classe em troca da salvação privada de seus bens, os donos da JBS não são exceção.
Se a traição é um modus operandi dos capitalistas, que se intensifica em períodos de crise, o espaço para o imponderável se amplia, as consequências de cada ação não são conhecidas completamente por quem a executa. Este é um retrato do Brasil atual, no qual ninguém do espectro político tradicional, com algum nível de bom-senso, pode afirmar com certeza que estará livre nas próximas 24 horas.
Por mais imprevisível que seja a situação, não se trata do caos, mas, antes de tudo, da convulsão do mundo real, sempre indiferente aos nossos esforços de compreendê-lo.
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O golpe em seu impasse - Instituto Humanitas Unisinos - IHU