30 Outubro 2016
Durante um encontro dos diretores das revistas culturais europeias da Companhia de Jesus, em meados de junho, eu expressei ao Pe. Antonio Spadaro, diretor da La Civiltà Cattolica, um desejo que tinha no meu coração há muito tempo: entrevistar o Papa Francisco às vésperas da sua viagem apostólica à Suécia, no dia 31 de outubro de 2016, para participar da comemoração ecumênica dos 500 anos da Reforma Luterana.
O comentário é do jesuíta sueco Ulf Jonsson, no texto de introdução da entrevista publicada na revista La Civiltà Cattolica, 28-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu pensava que uma entrevista era a melhor forma de preparar o país para a mensagem que o pontífice dirigiria às pessoas durante a sua visita. Como diretor da revista cultural dos jesuítas suecos, Signum, pensei que esse objetivo entrava plenamente na nossa missão.
O ecumenismo – assim como o diálogo entre as religiões e também com os não crentes – é muito apreciado pelo papa. Ele fez com que se compreendesse isso de muitos modos. Mas, acima de tudo, ele mesmo é um homem de reconciliação. Francisco está profundamente convencido de que as pessoas devem superar barreiras e cercas, sejam elas de qualquer tipo. Ele acredita naquela que define como a "cultura do encontro". E isso porque todos podem cooperar para o bem comum da humanidade. Eu queria que essa visão de Francisco pudesse tocar a mente e o coração de muitos antes da chegada do papa na Suécia: a entrevista seria o melhor meio para alcançar tal objetivo. Eu disse isso ao Pe. Spadaro, com o qual eu continuei a reflexão até agosto, quando, juntos, chegamos à conclusão de que era realmente oportuno apresentar ao pontífice esse pedido, de modo que ele pudesse decidir se gostaria de realizá-la ou não. O papa tomou algum tempo para refletir sobre a sua oportunidade. No fim, a resposta foi positiva, e ele marcou um compromisso conosco em Santa Marta, no sábado, 24 de setembro, no fim da tarde.
Era um dia realmente agradável pela temperatura e pela luminosidade do céu. Atravessando o tráfego de Roma no carro com o Pe. Spadaro, eu me sentia ansioso, mas contente. Chegamos em Santa Marta 15 minutos antes do previsto. Pensávamos em esperar, mas, em vez disso, logo fomos convidados para subir até o andar onde o papa tem o seu quarto. Quando o elevador abriu, vi um guarda suíço que nos cumprimentou com cortesia. Eu ouvia a voz do papa falando cordialmente com outras pessoas em língua espanhola, mas não o via. Em certo ponto, ele apareceu com duas pessoas, dialogando amavelmente. Ele cumprimentou a mim e ao Pe. Spadaro com um sorriso, indicando-nos para entrar no seu quarto: ele chegaria em breve.
Fiquei impressionado com essa simples e calorosa familiaridade na acolhida. Foi-nos dito na portaria que o papa tinha tido um dia sem descanso, e, portanto, eu pensava que ele estava cansado no fim dia. Mas, em vez disso, fiquei muito impressionado ao vê-lo tão cheio de energia e relaxado.
O papa entrou no seu quarto e nos convidou para nos sentarmos onde preferíssemos. Eu me sentei em uma poltrona, e, assim, o Pe. Spadaro se sentou na minha frente. O papa se sentou no sofá no meio das duas poltronas. Eu quis me apresentar no meu italiano não rico, mas suficiente para entender e para dialogar com simplicidade. Depois de algumas piadas do papa, ligamos os gravadores e começamos a conversa. O Pe. Spadaro tinha traduzido do inglês algumas perguntas que eu queria fazer ao papa e que, portanto, eu tinha preparado, mas, depois, a conversa entre nós três fluiu naturalmente, em um clima amigável e sem distâncias artificiais.
Sobretudo, foi franca e direta, sem rodeios e sem aquela atmosfera típica dos encontros com grandes líderes ou pessoas de referência. Eu não tenho mais nenhuma dúvida de que o Papa Francisco ama a conversa, comunicar-se com os outros. Às vezes, ele toma tempo para refletir antes de responder, e as suas respostas sempre transmitem um senso de envolvimento sério, mas não pesado ou triste. Ou, melhor, durante a nossa visita, ele deu sinais do seu humor várias vezes.
Santo Padre, no dia 31 de outubro, o senhor vai visitar Lund e Malmö para participar da comemoração ecumênica dos 500 anos da Reforma, organizada pela Federação Luterana Mundial e pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Quais são as suas esperanças e as suas expectativas para esse histórico evento?
Gostaria de dizer apenas uma palavra: aproximar-me. A minha esperança e a minha expectativa são as de me aproximar mais aos meus irmãos e às minhas irmãs. A proximidade faz bem para todos. A distância, ao contrário, nos faz adoecer. Quando nos afastamos, fechamo-nos dentro dentro de nós mesmos e nos tornamos mônadas, incapazes de nos encontrar. Deixamo-nos tomar pelos medos. É preciso aprender a se transcender para encontrar os outros. Se não fizermos isso, também nós, cristãos, adoecemos de divisão. A minha expectativa é a de conseguir dar um passo de proximidade, a estar mais perto dos meus irmãos e das minhas irmãs que vivem na Suécia.
Na Argentina, os luteranos compõem uma comunidade bastante restrita. O senhor teve a oportunidade de ter contatos diretos com eles no passado?
Sim, bastante. Recordo a primeira vez que fui a uma igreja luterana: foi justamente na sua sede principal na Argentina, na calle Esmeralda, em Buenos Aires. Eu tinha 17 anos. Lembro-me bem daquele dia. Um companheiro meu de trabalho, Axel Bachmann, se casava. Ele era o tio da teóloga luterana Mercedes García Bachmann. E também a mãe de Mercedes, Ingrid, trabalhava no laboratório onde eu trabalhava. Essa era a primeira vez que eu assistia a uma celebração luterana. A segunda vez foi uma experiência mais forte. Nós, jesuítas, temos a Faculdade de Teologia em San Miguel, onde eu lecionava. Ali perto, a menos de 10 quilômetros de distância, havia a Faculdade de Teologia Luterana. O reitor era um húngaro, Leskó Béla, realmente um grande homem. Com ele, eu tinha relações muito cordiais. Eu era professor e tinha a cátedra de Teologia Espiritual. Eu convidei o professor de Teologia Espiritual daquela faculdade, um sueco, Anders Ruuth, para dar, junto comigo, aulas de espiritualidade. Eu me lembro que aquele era um momento realmente difícil para a minha alma. Eu tive muita confiança nele e lhe abri o meu coração. Ele me ajudou muito naquele momento.
Depois, ele foi enviado para o Brasil – ele conhecia bem o português também – e, depois, voltou para a Suécia. Lá, publicou a sua tese de habilitação sobre a "Igreja Universal do Reino de Deus", que tinha surgido no Brasil no fim dos anos 1970. Era uma tese crítica. Ele a havia escrito em sueco, mas tinha um capítulo em inglês. Ele me enviou-a, e eu li aquele capítulo em inglês: era uma joia. Depois, o tempo passou... Enquanto isso, eu me tornei bispo auxiliar de Buenos Aires. Um dia, veio me visitar no episcopado o então arcebispo primaz de Uppsala. O cardeal Quarracino não estava. Ele me convidou para o culto deles na calle Azopardo, na Iglesia Nórdica de Buenos Aires, que antes era chamada de "Igreja Sueca". Com ele, falei de Anders Ruuth, que, depois, voltou mais uma vez para a Argentina, para celebrar um casamento. Naquela ocasião, vimo-nos novamente, mas foi a última: um dos seus dois filhos, o musicista – o outro era médico –, um dia, me telefonou para me dizer que ele tinha morrido.
Outro capítulo das minhas relações com os luteranos diz respeito à Igreja da Dinamarca. Eu tinha uma bela relação com o pastor da época, Albert Andersen, que agora está nos Estados Unidos. Ele me convidou duas vezes para fazer uma pregação. A primeira era em um contexto litúrgico. Naquela ocasião, ele foi muito delicado: para evitar que se criassem constrangimentos acerca da participação na comunhão, naquele dia, ele não celebrou o culto, mas um batismo. Posteriormente, ele me convidou para proferir uma conferência aos seus jovens. Eu me lembro que, com ele, eu tive uma discussão muito forte à distância, quando ele já estava nos Estados Unidos. O pastor me repreendeu tanto por causa daquilo que eu tinha dito sobre uma lei que dizia respeito a problemas religiosos na Argentina. Mas eu devo dizer que ele me repreendeu com honestidade e sinceridade, como um verdadeiro amigo. Quando ele voltou para Buenos Aires, eu fui lhe pedir desculpas, porque, com efeito, o modo como eu tinha me expressado naquele caso tinha sido um pouco ofensivo.
Depois, eu também tive uma grande proximidade com o pastor David Calvo, argentino, da Iglesia Evangélica Luterana Unida. Ele também era uma boa pessoa. Lembro-me também que, para o "Dia da Bíblia", que se celebrava em Buenos Aires no fim de setembro, voltei à primeira igreja na qual eu tinha estado quando jovem, na calle Esmeralda. E lá eu me encontrei com Mercedes García Bachmann. Tivemos uma conversa. Esse foi o último encontro institucional que eu tive com os luteranos quando eu era arcebispo de Buenos Aires.
Depois, entretanto, eu continuei tendo relações com amigos luteranos individuais em nível pessoal. Mas o homem que fez muito bem para a minha vida foi Anders Ruuth: eu penso nele com muito afeto e reconhecimento. Quando a arcebispa primaz da Igreja da Suécia veio me encontrar aqui, fizemos uma referência àquela amizade entre nós dois. Lembro-me bem quando o arcebispa Antje Jackelén veio aqui no Vaticano, em maio de 2015, em visita oficial: ela fez um grande e belo discurso. Eu a encontrei posteriormente também por ocasião da canonização de Maria Elizabeth Hesselblad. Então, eu pude cumprimentar também o marido: são pessoas realmente amáveis. Depois, como papa, fui pregar na Igreja Luterana de Roma. Fiquei muito impressionado com as perguntas que me foram feitas então: a do menino e a de uma senhora sobre a intercomunhão. Perguntas belas e profundas. E o pastor daquela igreja é realmente bom!
Nos diálogos ecumênicos, as diferentes comunidades deveriam tentar se enriquecer reciprocamente com o melhor das suas tradições. O que a Igreja Católica poderia aprender com a tradição luterana?
Vêm à minha mente duas palavras: "reforma" e "Escritura". Tento me explicar. A primeira é a palavra "reforma". No início, o gesto de Lutero foi um gesto de reforma em um momento difícil para a Igreja. Lutero queria remediar uma situação complexa. Depois, esse gesto – também por causa de situações políticas, pensemos também no cuius regio eius religio – tornou-se um "estado" de separação, e não um "processo" de reforma de toda a Igreja, que, ao contrário, é fundamental, porque a Igreja é semper reformanda. A segunda palavra é "Escritura", a Palavra de Deus. Lutero deu um grande passo para colocar a Palavra de Deus nas mãos do povo. Reforma e Escritura são as duas coisas fundamentais que podemos aprofundar olhando para a tradição luterana. Agora, vêm à minha mente as Congregações Gerais antes do conclave e como o pedido de uma reforma foi vivo e esteve presente nas nossas discussões.
Apenas uma única vez antes do senhor um papa visitou a Suécia, João Paulo II, em 1989. Aquele era um tempo de entusiasmo ecumênico e de profundo desejo de unidade entre católicos e luteranos. Desde então, o movimento ecumênico parece ter perdido vigor, e novos obstáculos surgiram. Como deveriam ser geridos esses obstáculos? Quais são, na sua opinião, os melhores meios para promover a unidade dos cristãos?
Claramente, cabe aos teólogos continuar dialogando e estudando os problemas: sobre isso, não há dúvida alguma. O diálogo teológico deve continuar, porque é um caminho a se percorrer. Penso nos resultados que, sobre essa estrada, foram alcançados com o grande documento ecumênico sobre a justificação: foi um grande passo à frente. É claro, depois desse passo, imagino que não será fácil seguir em frente por causa das diversas capacidades de compreender algumas questões teológicas. Eu perguntei ao Patriarca Bartolomeu se era verdade o que se conta do Patriarca Atenágoras, isto é, que ele teria dito a Paulo VI: "Sigamos em frente nós e coloquemos os teólogos para discutir entre si em uma ilha". Ele me disse que é uma piada verdadeira. Mas, sim, deve-se continuar o diálogo teológico, embora não será fácil.
Pessoalmente, também acho que se deve deslocar o entusiasmo para a oração comum e para as obras de misericórdia, isto é, o trabalho feito juntos na ajuda dos doentes, dos pobres, dos encarcerados. Fazer algo juntos é uma forma alta e eficaz de diálogo. Eu também penso na educação. É importante trabalhar juntos e não sectariamente. Deveríamos ter um critério muito claro em todos os casos: fazer proselitismo no campo eclesial é pecado. Bento XVI nos disse que a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração. O proselitismo é uma atitude pecaminosa. Seria como transformar a Igreja em uma organização.
Falar, rezar, trabalhar juntos: esse é o caminho que devemos fazer. Veja, na unidade, aquele que nunca erra é o inimigo, o demônio. Quando os cristãos são perseguidos e mortos, é porque são cristãos e não porque são luteranos, calvinistas, anglicanos, católicos ou ortodoxos. Existe um ecumenismo do sangue.
Lembro-me de um episódio que eu vivi com o pároco da paróquia de Sankt Joseph, em Wandsbek, Hamburgo. Ele levava adiante a causa dos mártires guilhotinados por Hitler, porque ensinavam o catecismo. Foram guilhotinados um atrás do outro. Depois dos dois primeiros, que eram católicos, foi morto um pastor luterano condenado pelo mesmo motivo. O sangue dos três se misturou. O pároco me disse que, para ele, era impossível continuar a causa de beatificação dos dois católicos sem inserir o luterano; o seu sangue tinha se misturado! Mas me lembro também da homilia de Paulo VI em Uganda, em 1964, que mencionava juntos, unidos, os mártires católicos e anglicanos. Eu tive esse pensamento quando também visitei a terra de Uganda. Isso também acontece nos nossos dias: os ortodoxos, os mártires coptas mortos na Líbia... É o ecumenismo do sangue. Portanto: rezar juntos, trabalhar juntos e compreender o ecumenismo do sangue.
Uma das maiores causas de inquietação do nosso tempo é a difusão do terrorismo revestido de termos religiosos. O encontro de Assis enfatizou também a importância do diálogo inter-religioso. Como o senhor o viveu?
Havia todas as religiões que têm contato com [a Comunidade de] Santo Egídio. Eu me encontrei com aqueles que a Santo Egídio contatou: não fui eu que escolhi quem encontrar. Mas estavam em tantos, e o encontro foi muito respeitoso e sem sincretismo. Todos juntos falamos da paz e pedimos a paz. Dissemos juntos palavras fortes pela paz, que as religiões realmente querem. Não se pode fazer a guerra em nome da religião, de Deus: é uma blasfêmia, é satânico. Hoje eu recebi cerca de 400 pessoas que estavam em Nice e cumprimentei as vítimas, os feridos, pessoas que perderam esposas ou maridos ou filhos. Aquele louco que cometeu aquele massacre fez isso crendo que o fazia em nome de Deus. Pobre homem, era um desequilibrado! Com caridade, podemos dizer que era um desequilibrado que tentou usar uma justificativa no nome de Deus. Por isso, o encontro de Assis é muito importante.
Mas o senhor recentemente falou também de outra forma de terrorismo, o das fofocas. Em que sentido e como é possível vencê-lo?
Sim, existe um terrorismo interno e subterrâneo que é um vício difícil de extirpar. Eu descrevo o vício das murmurações e das fofocas como uma forma de terrorismo: é uma forma de violência profunda que todos temos à disposição na alma e que requer uma conversão profunda. O problema desse terrorismo é que todos podemos colocá-lo em ação. Toda pessoa é capaz de se tornar terrorista mesmo que simplesmente usando a língua. Eu não estou falando das disputas que se fazem abertamente, como as guerras. Estou falando de um terrorismo furtivo, escondido, que é feito jogando palavras como "bombas" e que faz muito mal. A raiz desse terrorismo está no pecado original, e é uma forma de criminalidade. É um modo de ganhar espaço para si, destruindo o outro. É necessária, portanto, uma profunda conversão do coração para vencer essa tentação, e é preciso se examinar muito sobre esse ponto. A espada mata muitas pessoas, mas a língua mata mais, diz o apóstolo Tiago no terceiro capítulo da sua carta. A língua é um membro pequeno, mas pode desenvolver um fogo de maldade e incendiar toda a nossa vida. A língua pode se encher de veneno mortal. Esse terrorismo é difícil de domar.
A religião pode ser uma bênção, mas também uma maldição. Os meios de comunicação muitas vezes reportam notícias de conflitos entre grupos religiosos no mundo. Alguns afirmam que o mundo seria mais pacífico se a religião não existisse. O que o senhor responde a essa crítica?
As idolatrias é que estão na base de uma religião, não a religião! Há idolatrias ligadas à religião: a idolatria do dinheiro, das inimizades, do espaço superior ao tempo, da cobiça da territorialidade do espaço. Há uma idolatria da conquista do espaço, do domínio, que ataca as religiões como um vírus maligno. E a idolatria é um fingimento de religião, é uma religiosidade equivocada. Eu a chamo de "uma transcendência imanente" isto é, uma contradição. Ao contrário, as religiões verdadeiras são o desenvolvimento da capacidade que o ser humano tem de transcender ao absoluto. O fenômeno religioso é transcendente e tem a ver com a verdade, a beleza, a bondade e a unidade. Se não há essa abertura, não há transcendência, não há verdadeira religião, há idolatria. A abertura à transcendência, portanto, não pode, absolutamente, ser causa de terrorismo, porque essa abertura está sempre unida à busca da verdade, da beleza, da bondade e da unidade.
O senhor falou muitas vezes em termos muito claros sobre a terrível situação dos cristãos em algumas áreas do Oriente Médio. Ainda há esperança para um desenvolvimento mais pacífico e humano para os cristãos naquela área?
Eu acredito que o Senhor não deixará o Seu povo entregue a si mesmo, não o abandonará. Quando lemos as duras provações do povo de Israel na Bíblia, ou fazemos memória das provações dos mártires, constatamos como o Senhor sempre veio em auxílio do Seu povo. Recordemos no Antigo Testamento a morte dos sete filhos com a sua mãe no livro dos Macabeus. Ou o martírio de Eleazar. Certamente, o martírio é uma das formas da vida cristã. Recordemos São Policarpo e a carta à Igreja de Esmirna, que nos dá o relato das circunstâncias da sua prisão e da sua morte. Sim, neste momento, o Oriente Médio é uma terra de mártires. Podemos, sem dúvida, falar de uma Síria mártir e martirizada. Quero citar uma recordação pessoal que ficou gravada no meu coração: em Lesbos, eu me encontrei com um pai com dois filhos. Ele me disse que era muito apaixonado pela sua esposa. Ele é muçulmano, e ela era cristã. Quando os terroristas vieram, quiseram que ela tirasse a cruz, mas ela não quis, e eles a degolaram na frente do seu marido e dos seus filhos. E ele continuava me dizendo: "Eu a amo tanto, eu a amo tanto". Sim, ela é uma mártir. Mas o cristão sabe que há esperança. O sangue dos mártires é semente de cristãos: sabemos isso desde sempre.
O senhor é o primeiro papa não europeu há mais de 1.200 anos, e muitas vezes ressaltou a vida da Igreja em regiões consideradas "periféricas" do mundo. Onde, na sua opinião, a Igreja Católica terá as suas comunidades mais vidas nos próximos 20 anos? E de que modo as Igrejas da Europa poderão contribuir com o catolicismo do futuro?
Essa é uma pergunta ligada ao espaço, à geografia. Eu tenho alergia de falar de espaços, mas sempre digo que, a partir das periferias, veem-se as coisas melhor do que a partir do centro. A vivacidade das comunidades eclesiais não depende do espaço, da geografia, mas do espírito. É verdade que as Igrejas jovens têm um espírito com mais frescor e, por outro lado, existem Igrejas envelhecidas, Igrejas um pouco adormecidas, que parecem estar interessadas apenas em conservar o seu espaço. Nesses casos, eu não digo que falta o espírito: ele existe, sim, mas está fechado em uma estrutura, de um modo rígido, temeroso de perder espaço. Nas Igrejas de alguns países, vê-se justamente que falta frescor. Nesse sentido, o frescor das periferias dá mais espaço ao espírito. É preciso evitar os efeitos de um mau envelhecimento das Igrejas.
É bom reler o capítulo terceiro do profeta Joel, onde ele diz que os anciãos terão sonhos e que os jovens terão visões. Nos sonhos dos idosos, há a possibilidade de que os nossos jovens tenham novas visões, tenham novamente um futuro. Em vez disso, as Igrejas, às vezes, estão fechadas nos programas, nas programações. Eu admito: eu sei que eles são necessários, mas eu custo muito para colocar muita esperança nos organogramas. O espírito está pronto para nos empurrar, para ir em frente. E o espírito se encontra na capacidade de sonhar e na capacidade de profetizar. Esse, para mim, é um desafio para toda a Igreja. E a união entre idosos e jovens é, para mim, o desafio do momento para a Igreja, o desafio para a sua capacidade de frescor. Por isso, em Cracóvia, durante a Jornada Mundial da Juventude, eu recomendei que os jovens falassem com os avós. A Igreja jovem rejuvenesce mais quando os jovens falam com os idosos e quando os idosos sabem sonhar coisas grandes, porque isso faz com que os jovens profetizem. Se os jovens não profetizam, falta o ar da Igreja.
A sua visita à Suécia vai tocar um dos países mais secularizados do mundo. Uma boa parte da sua população não acredita em Deus, e a religião desempenha um papel bastante modesto na vida pública e na sociedade. Na sua opinião, o que perde uma pessoa que não acredita em Deus?
Não se trata de perder alguma coisa. Trata-se de não desenvolver adequadamente uma capacidade de transcendência. O caminho da transcendência dá lugar a Deus, e nisso são importantes também os pequenos passos, até mesmo o de ser ateu para ser agnóstico. O problema para mim é quando estamos fechados e consideramos a própria vida perfeita em si mesma e, portanto, fechada em si mesma, sem necessidade de uma radical transcendência. Mas, para abrir os outros à transcendência, não há necessidade de dizer muitas palavras e discursos. Quem vive a transcendência é visível: é uma testemunha viva. No almoço que eu tive em Cracóvia com alguns jovens, um deles me perguntou: "O que devo dizer a um amigo meu que não acredita em Deus? Como faço para convertê-lo?". Eu lhe respondi: "A última coisa que você deve fazer é dizer alguma coisa. Aja! Viva! Depois, diante da sua vida, do seu testemunho, o outro, talvez, vai lhe perguntar por que você vive assim". Estou convencido de que quem não crê ou não busca a Deus talvez não sentiu a inquietação de um testemunho. E isso está muito ligado ao bem-estar. A inquietação dificilmente é encontrada no bem-estar. Por isso, eu acho que, contra o ateísmo, isto é, contra o fechamento à transcendência, valem realmente apenas a oração e o testemunho.
Os católicos na Suécia são uma pequena minoria e, na sua maior parte, composta por imigrantes de várias nações do mundo. O senhor vai se encontrar com alguns deles, ao celebrar a missa em Malmö, no dia 1º de novembro. Como vê o papel dos católicos em uma cultura como a sueca?
Vejo uma convivência saudável, em que cada um pode viver a própria fé e expressar o próprio testemunho vivendo um espírito aberto e ecumênico. Não se pode ser católico e sectário. É preciso tender para estar junto com os outros. "Católico" e "sectário" são duas palavras em contradição. Por isso, no início, eu não previa celebrar uma missa para os católicos nesta viagem: eu queria insistir em um testemunho ecumênico. Depois, refleti bem sobre o meu papel de pastor de um rebanho católico que chegará também de outros países vizinhos, como a Noruega e a Dinamarca. Então, respondendo ao fervoroso pedido da comunidade católica, decidi celebrar uma missa, esticando a viagem em um dia. De fato, eu queria que a missa não fosse celebrada no mesmo dia nem no mesmo lugar do encontro ecumênico, para evitar que se confundissem os planos. O encontro ecumênico deve ser preservado no seu significado profundo, segundo um espírito de unidade, que é o meu. Isso criou problemas organizativos, eu sei, porque vou estar na Suécia também no Dia de Todos os Santos, que, aqui em Roma, é importante. Mas, a fim de evitar maus entendidos, eu quis que fosse assim.
O senhor é um jesuíta. Desde 1879, os jesuítas desempenharam as suas atividades na Suécia com paróquias, exercícios espirituais, a revista Signum e, nos últimos 15 anos, graças ao Instituto Universitário Newman. Que compromissos e que valores deveriam caracterizar o apostolado dos jesuítas hoje neste país?
Eu acredito que a primeira tarefa dos jesuítas na Suécia é favorecer de todos os modos o diálogo com aqueles que vivem na sociedade secularizada e com os não crentes: falar, compartilhar, compreender, estar ao lado. Depois, claramente, é preciso favorecer o diálogo ecumênico. O modelo para os jesuítas suecos deve ser São Pedro Fabro, que sempre estava a caminho e que era guiado por um espírito bom, aberto. Os jesuítas não têm uma estrutura quieta. É preciso ter o coração inquieto e ter estruturas, sim, mas inquietas.
Quem é Jesus para Jorge Mario Bergoglio?
Jesus para mim é aquele que me olhou com misericórdia e me salvou. A minha relação com Ele sempre tem esse princípio e fundamento. Jesus deu sentido à minha vida aqui na terra e esperança para a vida futura. Com a misericórdia, Ele me olhou, me pegou, me colocou na estrada... E me deu uma graça importante: a graça da vergonha. A minha vida espiritual está toda escrita no capítulo 16 de Ezequiel. Especialmente nos versículos finais, quando o Senhor revela que estabeleceria a sua aliança com Israel dizendo-lhe: "Tu saberás que eu sou o Senhor, para que te recordes e te envergonhes e, na tua confusão, tu não abras mais a boca, quando eu tiver te perdoado por aquilo que fizeste". A vergonha é positiva: faz você agir, mas faz você entender qual é o seu lugar, quem você é, impedindo toda soberba e vaidade.
Uma palavra final, Santo Padre, sobre essa viagem à Suécia...
Aquilo que vem espontaneamente à minha mente para acrescentar agora é simples: ir, caminhar juntos! Não ficar fechados em perspectivas rígidas, porque, nessas, não há possibilidade de reforma.
* * *
O papa, o Pe. Spadaro e eu passamos juntos em conversa por cerca de uma hora e meia. No fim, Francisco nos acompanhou ao elevador. Ele nos recomendou para rezar por ele. As portas se fecharam enquanto ele nos saudava com a mão e com um sorriso radiante que nunca vou esquecer.
Lá fora, já estava escuro. A cúpula de São Pedro, iluminada, revelava o seu esplendor enquanto entrávamos no carro para voltar a tempo para a janta na comunidade da Civiltà Cattolica.
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"Não é possível ser católico e sectário." Entrevista com o Papa Francisco por ocasião da viagem apostólica à Suécia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU