Por: Jonas | 14 Mai 2013
Pedro Miguel Lamet (foto) é um velho amigo, jesuíta e jornalista. Além disso, é um grande escritor, um grande biógrafo (por exemplo, de Díez-Alegría ou de Arrupe), e suas biografias fazem história. É uma referência dentro da Companhia de Jesus e da Igreja espanhola, e hoje vem nos apresentar “Azul y rojo, José María de Llanos”. A “biografia do jesuíta que militou nas duas Espanhas e escolheu a periferia”, como se lê na capa da obra publicada por “Esfera de los Libros”.
Fonte: http://goo.gl/wVsQn |
“Os partidos de direita podem estar mais próximos da Igreja do ponto de vista da moral familiar e sexual, mas no plano social não estão”, afirma Lamet, e lembra que “entre os vermelhos havia muitas pessoas que morriam por ideais no fundo cristãos, como a solidariedade e a justiça social”.
Sobre o papa Francisco, opina que “não é um ator, a impressão que produz é que é interiormente livre e que seus gestos são autênticos”, e destaca a importância de sua decisão viver em Santa Marta: “Antes o Papa se debruçava na janelinha de seu terceiro piso como se fosse o cuco, agora saiu do palácio e tem a intuição da vida cotidiana”. Contudo, pondera que os ventos da mudança tardarão chegar à Espanha, “porque temos um lastro de nomeações que seguem uma mesma linha”.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 10-05-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Atualmente, você já não se dedica ao jornalismo?
Não. Contudo, eu acredito que isso do jornalismo, você nunca tira de si. Em definitivo, meu último livro é muito jornalístico; além disso, eu continuo escrevendo em jornais. O que ocorre é que não estou no ambiente do jornalismo cotidiano.
Quanto tempo gastou na biografia de José María de Llanos?
Dois anos de trabalho. Possui 730 páginas e mil notas.
É um personagem que marcou a história da Espanha. Foi apaixonante para você?
Sim. Principalmente, a pesquisa nova nos arquivos pessoais. A Companhia de Jesus possui os arquivos da província de Castilla, em Alcalá de Henares, para onde vão todos os nossos documentos. Llanos tinha o costume de guardar tudo, desde o distintivo da Falange até as cartas de La Pasionaria. Então, foi realmente apaixonante ver suas anotações espirituais, seus cadernos de quando estava fora da Espanha...
Ou seja, você contou com fontes de primeira mão e teve acesso a documentos que não tinham sido publicados?
Sim, de primeiríssima mão. Coisas que nunca tinham sido publicadas, como, por exemplo, a carta em que pede ao Provincial para ir ao Pozo del Tío Raimundo, que é uma carta preciosa, em que diz que quer “plantar um Nazaré” no meio do Pozo del Tío Raimundo. Entretanto, depois não acaba sendo um Nazaré de mera presença, mas se converte em ponte entre a Madri opulenta e a tremenda pobreza do bairro.
Foi muito azul, quando foi azul?
Totalmente azul. É preciso levar em conta que ele foi expulso pelos jesuítas quando houve a queima de conventos, nos anos de 1932. Foi à Bélgica e ali criou um grupo de estudantes. Foi para estudar filosofia, e o grupo que cria é composto por uma série de magníficos jesuítas que depois serão grandes figuras. Em seguida, foi destinado para estudar teologia em Portugal, e é em Portugal que vive a tremenda experiência da guerra e o martírio de seus dois irmãos. Em seu irmão Manolo, meteram um crucifixo na boca, com pancadas, através de uma arma. Tudo isso, vai chegando-lhe por carta, e eu publiquei as cartas que se escreve com seu pai quando a notícia chega. E tudo isto com uma dor de estômago duradoura, que terá por toda sua vida, provocada por uma úlcera que nunca ficará curada.
Naquela época, escreveu um artigo em “Razão e Fé”, muito da linha “joseantoniana” e demais. Ele sempre será mais de José Antonio (e do José Antonio mais puro) do que de Franco.
Qual é o fator que o leva a uma mudança ideológica?
Ele se tornou padre da moda durante o franquismo. Durante a primeira época do franquismo, é capelão da Falange e, inclusive, dá os exercícios [espirituais] a Franco. Ele dizia que Franco era muito milagreiro, e que estava convencido de que a Virgem da África o havia salvado, permitindo-lhe cruzar sem que a esquadra vermelha lhe impedisse a passagem pelo Estrecho. Há uma anedota muito divertida, a de que Franco confidenciou ao padre Llanos que Santa Teresa de Jesus tinha lhe aparecido. Outra coisa curiosa é quando lhe deu uma série de nomes de maçons, como Dámaso Alonso, que em absoluto não era maçom.
Contudo, o padre Llanos sempre respeitava Franco, pois acreditava que estava errado, mas que não fazia isso por má vontade. Há outro dado muito curioso, o de que o padre Llanos estava numa lista de intocáveis, de maneira tal que quando havia uma revolta e a polícia aparecia, não tocavam num fio de cabelo do padre Llanos. Um dia, até foi à Direção Geral de Segurança, para que lhe detivessem, porque não o prendiam nem de brincadeira.
E permaneceu nessa lista de intocáveis, inclusive, quando já estava em o Pozo?
Sim, o tempo todo. Franco chegou a ir inaugurar o Pozo reconstruído, já sem barracos, e para não receber Franco, nesse dia, Llanos foi de excursão com os jovens para a serra. Embora, depois, tenha se arrependido um pouco.
Estava nessa lista por serviços prestados, como reconhecimento ao que tinha sido?
Não se sabe o motivo, possivelmente, apenas por ser amigo de Franco e porque tinha sido o padre da Falange. Tinha sido um homem muito, muito azul.
O que o fez mudar?
Um dia estava num destes castelos históricos de Cuenca, vendo o povo de cima. Caminhava com os jovens, de um lado para outro, e chegou um momento em que sentiu que estava de costas para o povo que sofria a pós-guerra e a pobreza. Então, criou o movimento juvenil do SUT (Serviço Universitário para Trabalhadores) e criou campos de trabalho, em toda Espanha, para conscientizar os jovens universitários, que apreciaram o trabalho. Também se ocupou um pouco da marginalidade, em Madri, até que chegou um dia em que decidiu partir.
Ou seja, a miséria e a pobreza o converteram?
Sim, de alguma maneira. Ele se deu conta de que estava de costas para o outro.
Também ideologicamente?
É que ele separava muito a fé, seu amor a Jesus Cristo (ele era enormemente piedoso, rezava os 15 mistérios do rosário todos os dias, a eucaristia era o centro de sua vida, era um homem muito devoto...), de suas posturas políticas. Porém, ao mesmo tempo, ia se introduzindo em outra realidade de denúncia, através dos livros, de suas traduções e de seus artigos. Ao centro de Madri, falava muito claramente sobre a miséria que existia ao redor. Assim, chegou um momento em que decidiu ir com os pobres. Quando se foi com eles, decidiu que estaria com eles até a morte. Então, foi quando as Comissões Operárias (clandestinas) entraram no Pozo. Ele foi um dos fundadores das Comissões Operárias, junto com Marcelino Camacho.
Como dizia o Concílio, ele se encarnou com todas as consequências?
Sim. Entretanto, ele não foi comunista como uma consequência da fé, como poderia ser o marxismo de alguma Teologia da Libertação. Para ele, simplesmente, era uma opção política independente de sua fé. Ele disse: “não vem da fé que eu tenha que ser comunista”. No entanto, ele acreditava que para estar com os pobres e apostar neles, era preciso lutar por sua causa.
Possuía carteirinha do partido?
Primeiro, teve carteirinha das Comissões e pediu publicamente que em sua sepultura pusessem CCOO. Era um pouco contraditório e fazia muitas coisas para que outros vissem. Então, quando o irmão jesuíta encarregado dos mortos perguntou-lhe o que queria que pusessem em sua sepultura, disse que pusessem o “SJ” e “ao encontro de Cristo”. E assim se colocou, finalmente, no momento de sua morte. Porém, ao mesmo tempo, é como se tivesse uma grande necessidade de romper com as misérias que eram vividas na época de Franco, e também a necessidade de se comprometer até o máximo. Sim, teve a carteirinha do Partido Comunista.
Na época do pós-concílio, mais do que uma paróquia, o Pozo foi uma referência para muitas pessoas?
Sim, criou uma mística. Quando ele deixou o barraco e se meteu onde os jovens trabalhadores iam viver, cheirando suas meias, em comum, escrevendo enrolado em sua manta... realmente, foi chamativo. Ali, existiam pessoas do GRAPO que matavam. Um ex-dominicano, que entrou no GRAPO e matou um policial, estava ali com ele. Conseguia viver ali, nessa tremenda época. Contudo, o padre Llanos continuava sendo fiel a tudo de si (vida espiritual e entrega a Deus). Depois, apareceu Carrillo, que voluntariamente foi lhe ver com uma peruca.
Quando Carrillo ainda estava na clandestinidade?
Sim. Eu estive falando com Carrillo, antes dele morrer, e disse-me que tinha conhecido muitos padres, na França, da linha pós-conciliar. Em Roma, também tinha conversado com o padre Díez-Alegría e, então, estava convencido de que era possível colaborar com certa Igreja. Por isso, chamou Llanos. E, por isso, Llanos apareceu na primeira assembleia do PCE (Partido Comunista da Espanha), em Vallecas, onde aparece na famosa foto, com o punho para cima. Ali também estava Díez-Alegría, que não levantou o punho.
Como os dois se relacionavam?
Llanos era muito afetuoso e um grande amigo, mas de uma personalidade muito difícil. Carrancudo. Díez-Alegría dizia que no corpo místico tinha haver de tudo, e que Llanos era a vesícula biliar do corpo místico. Díez-Alegría tinha muito mais senso de humor do que ele, e também dizia que ele lembrava um autorretrato de Rembrandt, quando já era um homem mais velho. Era um homem difícil, mas ambos se queriam muito.
E com Tarancón e com Iniesta, que era o bispo auxiliar de Vallecas, como era a relação?
Com Iniesta muito boa. Inicialmente, não lhe recebia, mas depois se tornaram grandes amigos. Iniesta viria na apresentação do livro, mas não pôde porque já está muito velho. Disse-me que o padre Llanos era uma grande pessoa, e que, por isso, o livro poderia fazer muito bem. Ele gostava muito dele. Há uma carta em que dizia “somos duas debilidades que se encontram”. Porque Iniesta, realmente, esteve muito próximo dele. Tarancón era mais político, mais distante. Dizia a Llanos: “eu o admiro, mas não o compreendo”. Porém, respeitava-lhe. Todos os superiores e gerais, os grandes bispos do país, sempre o respeitaram, pois amassou barro até o final. Não tinha férias, vivia muito pobremente. No fim, quase não tinha dinheiro e os amigos lhe emprestavam para sobreviver.
Realmente, foi um homem admirável em sua radicalidade. Na pesquisa descobri que quando era jovem fez um voto de perfeição, renunciando seus direitos humanos e se comprometendo a escolher sempre a mais difícil perante duas possibilidades. Todavia, tudo isso se mistura com o pedido para ser capelão da Divisão Azul. O azul e o vermelho estão continuamente presentes na vida de um homem que se foi com os mais pobres, e que dizia, ao final, que a única coisa que importava era Jesus Cristo.
Sempre carregava um crucifixo e um boneco de pano, que chamava de Charlie e que identificava como uma espécie de palhaço continuamente fracassado. Ele era muito depressivo, e apenas a alegria dessa fé tão profunda em Cristo é que o alimentava.
Com Arrupe, como era a relação?
Relacionou-se muito bem com ele, pois foram companheiros na universidade (como também foi de José Antonio Primo de Rivera, com quem teve uma disputa na universidade). Na primeira visita que Arrupe fez à Espanha, como sempre visitava todos os chefes de Estado, foi visitar Franco. Então, o grupo jovem de jesuítas operários, que naquele tempo estava com Llanos, em princípio, negou-se a receber Arrupe no Pozo. Houve um conflito em que Arrupe chegou a dizer para Llanos que, caso não estivesse presente, teria expulsado um dos jovens da Companhia. Depois, muitos deles se arrependeram da forma como agiram com Arrupe, quando perceberam seu maravilhoso compromisso com a fé e a justiça, que puderam comprovar depois.
Um de seus livros se chama “El credo que da sentido a mi vida”. Qual você acredita que era o seu credo genuíno, sua fé mais profunda?
Acredito que um amor a Jesus Cristo identificado com todas as pessoas. Ele acredita muito em Jesus e acreditava na ação. Não era um homem passivo. Acreditava que tinha que se mexer e atuar, e também tinha esperança, para além de toda a dureza e a tristeza. Ele era enormemente sensível, de tal maneira que se considerava a si mesmo muito apaixonado, apesar de dizer que nunca tinha beijado de verdade uma mulher. Entretanto, contou com uma história de amor platônico preciosa com Carmen Díez de Rivera, a famosa “musa da Transição”. Continuamente, ele escrevia versos, e pesquisando entre os poemas de toda a sua vida, descobri alguns para ela, muito bonitos. É curioso que, junto com Umbral (apesar de ser um personagem muito anticlerical), os três eram como crianças indefesas e se queriam. Por isso, criaram essa espécie de Triângulo. Llanos era um homem fora do normal. Lorenzo Gomis, que foi criador e diretor da revista “El Ciervo”, dizia que a única definição possível era dizer “Llanos é Llanos”.
Como viveu a época da involução de João Paulo II, quando a Igreja pós-conciliar começou a mudar e a retroceder?
No princípio, quando foi eleito João Paulo II, alegrou-se porque tinha sido eleito um operário. Gostou muito disso. Em seguida, foi se dando conta, pouco a pouco, de que a situação era muito grave. Contudo, ele era muito prudente em seu tratamento com a hierarquia, e ia mais para o positivo, ao invés de fazer crítica. Isso sim. Ao mesmo tempo, dizia coisas sobre o celibato dos padres e sobre o tema da mulher, sobre o qual escreveu um artigo inédito que publiquei no apêndice do livro. É um artigo maravilhoso, uma visão muito bela da mulher da parte de um padre. Ele era um homem crítico, mas muito respeitoso. E diante do que, sim, foi sensível e demonstrou, foi a respeito do tratamento que João Paulo II deu a Arrupe. Isso lhe doeu, e parece que não o perdoou.
Ele era um jesuíta muito especial e queria muitíssimo a Companhia, mas, ao mesmo tempo, vivia muito fora dela. Há um livro que se chama “Jesuíta sim, jesuíta não”, no qual, enquanto Díez-Alegría explica a razão de ter saído, Llanos explica a razão de ter sido fiel a tudo. Ele era um homem de grandes fidelidades. Tinha cem amigos para os quais enviava cartas, e continuou procedendo assim, inclusive, quando já não escrevia artigos. Nesse aspecto, era uma pessoa muito querida e muito cordial.
Para você, o que significa que os jesuítas tenham deixado o Pozo exatamente há alguns dias?
Eu me opus a isto, porque acredito que é um símbolo. Agora, há suas razões. A razão fundamental é que Llanos, do ponto de vista religioso, fracassou um pouco no Pozo. O Pozo é muito difícil, e embora tenha se reconstruído e agora seja um bairro a mais de Madri, é um bairro de droga. Há muitíssimo problema de desemprego e é um bairro marginalizado. A Igreja sempre esteve meio vazia. E, então, acredito que o Provincial dos jesuítas, num momento de reconstrução da Companhia, de unificação de províncias, etc., quis fechar algumas casas. Eu havia lhe pedido, e continuo pedindo, que, ali, pelos menos mantenha os jesuítas conduzindo essa paróquia. Mesmo que seja como símbolo de uma trajetória maravilhosa. Porque isso não se costuma dizer, mas, ali, Llanos sempre esteve ao lado de companheiros jesuítas que trabalharam e continuaram trabalhando após sua morte. Gente magnífica que passou por ali e que trabalhou com os pobres no anonimato, pois é preciso reconhecer que Llanos, como era conhecido, era um pouco estrela.
Agora, o papa Francisco fala de sair e ir às fronteiras, mas vocês já estavam nas fronteiras.
Sim. A Companhia não deixou a fronteira dos pobres, mas, além disso, acredito que as fronteiras são mais amplas. Em Ventilla, os jesuítas estão com a imigração, com o setor mais esquecido. “Pueblos Unidos”, por exemplo, é uma obra da Companhia que está com os imigrantes que estão pseudo-encarcelados.
Enrique de Castro continua sendo da Companhia ou nunca foi?
Nunca foi. Ele é sacerdote secular, mas, sim, esteve muito ligado a Llanos. No fim de seus dias, Llanos se dedicava muito aos drogados, e seus companheiros jesuítas, às vezes, ficavam um pouco indignados porque eles entravam na casa e levavam coisas da geladeira, ou a televisão, etc. Nessa época, tiveram muita relação.
De alguma maneira, a Paróquia São Carlos Borromeu retomou o espírito do padre Llanos?
Exato. Acredito que essa linha se mantém mais do ponto de vista ideológico. Eu participei de um ato em memória de Díez-Alegría, de Llanos e de Julio Lois, que foi celebrado nesta paróquia, e no qual esteve Carrillo (foi sua última intervenção a respeito do padre Llanos).
Em seu livro, você sugere que o padre Llanos converteu a La Pasionaria.
Llanos tinha contato com os comunistas que vinham de fora, e se relacionou com o grande símbolo que era La Pasionaria. Tornaram-se amigos e, a cada quinze dias, viam-se. Num desses encontros que mantinham, La Pasionaria começou a relembrar seu passado, a recuperar lembranças com Llanos. Ela era católica de sempre, de toda a vida, mas casou-se com um ateu. Disse que um padre a tinha feito perder a fé, e se introduziu no comunismo ateu soviético. Llanos chegou a confessá-la e a lhe dar a comunhão, cantavam juntos, rezavam o rosário, o pater noster em latim... Disto tenho dados e testemunhos. Quando perguntavam a Llanos se La Pasionaria tinha se convertido, dizia que não, pois não queria revelar o segredo de confissão e entendia isto como algo de cunho pessoal. Dizia “o que externamente se pode dizer”, como declarou uma vez para a “Televisión Española”. Entretanto, há uma carta escrita por La Pasionaria, no dia de Reis do ano em que morreu, na qual dizia para Llanos que o agradecia muitíssimo por rezar por ela, e por lembrar-se dela ao partir do pão. “Você e eu seguiremos juntos, como dois velhinhos, de mãos para o Deus amor”, escrevia-lhe também. “Esta será nossa perene tarefa na outra vida”. E termina, inclusive, desejando-lhe que tenha um “santo ano”. Ou seja, tinha se convertido. Isto indica que tinha retomado a fé que possuía quando era menina. Ela sempre conservou um quadro de uma Virgem e um crucifixo que algumas freiras reparadoras deram-lhe para que os protegessem (para que os milicianos não os profanassem), e que La Pasionaria os devolveram num ato muito bonito, no qual jornalistas e demais participaram.
Em nível social e eclesial, o trabalho do padre Llanos está suficientemente reconhecido?
Eu acredito que sim. Também existe muito mito, no sentido dos tópicos como “o padre vermelho” e demais. O que não é suficientemente conhecido é sua vida espiritual (profundíssima), e seu encontro com Jesus Cristo, todos os diais, que era mais especial nas missas em que mistura versos de Alberti e de Neruda com os textos sagrados. Passava quase o dia todo celebrando a missa. Ele adorava a eucaristia. Dava tanta importância e tanto valor, que indo para Atienza com seus companheiros jesuítas, num dia de excursão, acabou consagrando alguns pedaços de pão da refeição e celebrando a missa, porque não podia prescindir dela. No entanto, chegou o camareiro e começou a levar o pão, e tiveram que dizê-lo não, por favor, que estava consagrado.
O que ficará de Llanos para as pessoas jovens?
Eu escrevi esse livro, principalmente, para que lembrem que durante esse período do pós-concílio e da Transição Espanhola houve uma série de sacerdotes, de teólogos e de cristãos que conseguiram desvincular a Igreja de um partido político concreto. Porque, aqui, não se podia ser cristão, caso não fosse de direita (primeiro de Franco, e depois da Aliança Popular ou do PP). E isto não é certo. É verdade que os partidos de direitas, do ponto de vista moral, familiar e sexual, podem estar mais próximos da Igreja, mas não estão no plano social. Portanto, as pessoas são livres para escolherem o partido que quiserem, considerando isso. Isto dividiu a Espanha de tal maneira que os vermelhos estavam contra Deus, e “os azuis” estavam a favor de Deus. Sendo que entre os vermelhos existiam muitas pessoas que morriam por ideais no fundo cristãos, como a solidariedade e a justiça social.
Nesse contexto, Tarancón conseguiu fazer com que a Igreja fosse, naquela época, uma das instituições mais prestigiadas?
Sim. Sempre houve existiram duas facetas dentro da Igreja: bispos que possuem posturas diferentes em relação à Conferência Episcopal, etc. O que acontece é que uma predominou.
Naquela época, a autoridade vinha à Igreja porque Tarancón tinha decidido sair da luta partidarista?
Sim, exato. Esta desvinculação do taranconismo foi muito importante para a Igreja espanhola e para a sociedade. O que ocorre é que depois voltamos um pouco para isso (desde a época de João Paulo II, que em definitiva era muito antimarxista), com bispos numa linha de identificação com um partido.
De alguma forma, o papa Francisco faz você se retrair à época pós-conciliar?
Acredito que há uma esperança e uma ilusão muito grandes. Neste momento, o que mudou, sobretudo, é a disposição. A mistura do que saiu no Vaticano, naquele dia (jesuíta, e Francisco), é explosiva. Não há coisa mais diferente de um jesuíta do que um Franciscano (e caso se toma em suas origens, um Inácio de um Francisco de Assis), embora os dois se entreguem a Deus. E isso é um golpe de inteligência jesuíta, porque ele se deu conta de que tinha que suavizar o jesuíta, assumindo o nome do santo de Assis. E o mesmo fez agora com o tema das canonizações. Precisa terminar a canonização de João Paulo II (porque uma grande massa de povo deseja), que já está em marcha, mas isso não o impede, ao mesmo tempo, de destravar a causa de Oscar Romero. Esse modo de agir que está tendo é muito inteligente, porque vivemos 30 anos com uma Igreja um pouco bloqueada em relação ao Concílio Vaticano II. Para além dos gestos (sapatos, carícias, etc.), ele está dando passos reais. Um exemplo é o conselho de cardeais, que supõe um passo democrático, não apenas para reformar a Cúria, mas que atue como uma espécie de conselho de governo.
Colegialidade, corresponsabilidade... em definitivo, está reativando o Concílio?
Sim. Falta ver o que acontece com o papel da mulher. Não nos adiantemos. Oxalá seja um “novo João XXIII”, como você titulou em seu livro, mas isso está para ser visto. Bergoglio tem um passado muito marcado por uma linha espiritualista, mais de pobres do que de justiça social. Embora, eu também acredito que é um homem que amadureceu muito e que está acima de tudo. Deve possuir uma faceta mística importante. A impressão que produz é que é interiormente livre, e que seus gestos são autênticos. Que não é um ator. Atua com naturalidade, mas, ao mesmo tempo, tem tudo medido. É uma mistura curiosa.
Dizem que despista com os curiais
Uma dos fatos que acredito que mais precisou incomodar na Cúria é o de Santa Marta. Porque antes o Papa saia de seu terceiro piso com se fosse o cuco, era uma referência que estava na janelinha. Todos esses elementos produziam certas rupturas e contradições externas. E sua decisão teve que incomodar.
Também tem conseguido incomodar em outros lugares? Uma vez que o Papa deixou o palácio, não fica a brecha para que os bispos o siga?
Alguns bispos espanhóis já deixaram o palácio e vivem numa situação mais simples. É claro que se você sai de seu palácio, se pega o metrô ao invés de se reservar, você possui a intuição da vida cotidiana. Aí está a chave. Em Santa Marta, ele está falando com padres e freiras que se aproximam, pode conhecer mais a realidade. Quando se atende diretamente o telefone, sem passar pelo secretário, podem dizer qualquer coisa para você.
Francisco representa a volta ao Papa pároco, ao Papa pastor?
Sim. Eu acredito que é preciso haver tudo na Igreja. De Ratzinger louvo muito seu final, o gesto de discrição com o qual se foi, que vale por todo o seu pontificado. Porém, Ratzinger era um homem de estudo, um intelectual. Francisco, ao contrário, durante anos, palpou a vida pastoral na Argentina, num povo latino que é um povo muito afetivo. Ainda assim, eu diria que não é o típico “sul-americano meloso”, que é muito sóbrio.
Cheira a mudança de ciclo na Igreja?
Acredito que o pêndulo na história da Igreja também funciona como na história universal. Demorou muito para se mover, mas acredito que está se movendo. A pergunta é até onde. Precisamos levar em conta que viemos de uma época na qual os que tiveram força foram os novos movimentos. Nós, os religiosos, estávamos marginalizados, inclusive, em alguns casos, maltratados. A Igreja mais profética esteve no ocultamento. Contudo, acredito que chegou o momento, e que a situação irá mudar. A última coisa dita por Boff é que ele acredita que o Papa irá, inclusive, mudar o celibato, deixando opcional. Eu não vejo isso tão claro assim, pelo que conheço de Bergoglio, mas o Espírito sopra onde quer.
Não acredito que apareça o tema da ordenação de mulher, porque isso foi proibido diretamente por João Paulo II. Mas, sim, uma maior presença da Igreja no mundo da cultura, o tema dos divorciados...
A moral sexual poderia se diversificar?
Poderíamos nos aproximar de uma moral mais de atitudes. O problema está na condenação. O importante da sexualidade é a personificação, ou seja, saber que se está tratando com uma pessoa e não com um objeto. Isso é o verdadeiramente importante: que a sexualidade não é um bem-estar puramente físico, como são a maioria dos “amores de weekend”, que funcionam na sociedade de hoje. Que é algo muito mais profundo. Teria que aprofundar na sensualidade e em seu aspecto positivo.
Os novos movimentos, que até agora mandaram na Igreja, estarão dispostos a deixar espaço e a compartilhar o protagonismo?
Para eles, não resta outro remédio. Queiramos ou não, a Igreja é uma monarquia absoluta, e quando muda o rei, os cortesãos mudam de cor. Então, acredito que, possivelmente, irá ter uma pequena resistência interna de cada um dos movimentos diante desta evolução, mas, ao mesmo tempo, acredito que o carisma de Francisco será o carisma da união e da comunhão. É curioso que muitas das coisas que eu pedia, numa carta que escrevi a Deus na Internet (uma Papa dos pobres, que deixasse os castelos de inverno para ir à praça com o povo...), estão se cumprindo. Acredito que era uma necessidade da Igreja, e parece que está surgindo de forma espontânea.
Além de responder a essas necessidades do Povo de Deus, dizem que recebeu 90 votos no conclave. Isto significa que tem tanto o apoio do povo, como o dos cardeais?
Sim. Acredito que se produziu uma saturação da Igreja, depois do tema da pedofilia e do Vatileaks. Não podíamos continuar assim. Era preciso buscar uma pessoa livre de todo compromisso político e de todo grupismo (apesar de ser jesuíta). Acredito que o escolheram, apesar de ser jesuíta, porque ele sai de cena. Como também não é o jesuíta tópico e típico, está mais além. E eu acredito que este homem, que quando chegava a Roma se sentava entre os últimos cardeais, que pedia perdão por tudo e era carinhoso... pareceu-lhes um homem de Deus. Como Francisco de Assis.
Possui dotes de governo?
Bergoglio é muito seu. Na Argentina, tinha uma linha muito marcada, muito direta, e a seguia de verdade. Possui uma curiosa mistura de coisas.
Há muitas pessoas da Igreja que se questionam se vão lhe deixar empreender as reformas que o Povo de Deus espera ou se o vão tirar no meio. Apenas esta pergunta não produz inquietação?
Sim, há pessoas que temem. Minha irmã, que é religiosa, tem um pressentimento de que lhe irá acontecer algo. E é claro que quando alguém se expõe dessa maneira, pode lhe acontecer alguma coisa. Eu espero que tenha as duas coisas: a simplicidade da pomba e a astúcia da serpente, para saber se defender. Acredito que seguirá fazendo muito, pouco a pouco, e as coisas irão ingressando. Assim como também não é tão difícil mudar coisas que todo mundo deseja que mudem. Embora nomear, por exemplo, o secretário de Estado, deva ser uma decisão difícil, porque ele está demorando.
Acredita que irá ser produzida uma mudança de imagem, por exemplo, na Igreja da Espanha, pelas mudanças que estão ocorrendo em Roma?
Ainda será preciso esperar um pouco, porque temos um lastro de nomeações que continuam numa mesma linha. É necessário esperar que haja mudança na presidência da Conferência Episcopal. A nomeação de Oviedo, por exemplo, é muito significativa. Porém, ainda é cedo para falar disto.
Que semelhanças você vê entre Francisco e o padre Llanos?
Os dois são jesuítas, e isso supõe que são inteligentes, astutos e bem formados. Porém, principalmente (o que acredito que é a chave da Companhia de Jesus), os dois passaram por exercícios espirituais de um mês, ao menos duas vezes na vida, que se trata de um enfrentamento consigo mesmo, tão profundo e tão real, que quando bem feitos produzem um despertar interior. E esse despertar interior torna a pessoa livre. Da sua maneira, Llanos era e acredito que ser livre na sociedade de hoje é maravilhoso.
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“O carisma de Francisco será o carisma da união e da comunhão”, afirma o jesuíta Pedro Miguel Lamet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU