19 Abril 2013
O tema da teologia da libertação foi bastante levantado na mídia desde a eleição do Papa Francisco, principalmente em resposta à acusação de que Francisco, assim como seus dois antecessores mais recentes, tinham uma visão negativa do movimento.
A reportagem é de Jamie L. Manson, mestre em teologia pela Yale Divinity School, onde estudou teologia católica e ética sexual.
Em muitos dos artigos e blogs que eu li sobre o assunto, chamaram-me a atenção as caracterizações simplistas da teologia da libertação. Muitos escritores reduziam-na a um movimento político, ou a identificavam estreitamente com o marxismo. Percebi que poucos desses comentaristas eram especialistas em teologia da libertação, e menos ainda passaram algum tempo no campo onde essa escola de pensamento se desenvolveu. Eu quis falar com uma autoridade no assunto, e na minha busca eu encontrei James B. Nickoloff. Eu achei a nossa conversa tão útil que decidi publicá-la como minha coluna desta semana.
Nickoloff é professor emérito de estudos religiosos do College of the Holy Cross, em Worcester, Massachusetts, onde ensinou teologia sistemática por 20 anos. Ele também viveu e trabalhou por longos períodos em Andong, na Coreia; em Kingston, na Jamaica; e em Lima, no Peru. Enquanto estava em Lima, ele viveu e trabalhou com o padre Gustavo Gutiérrez, um dos fundadores do movimento da teologia da libertação, na paróquia onde Gutiérrez atuava como pároco. Ele também estudou no Instituto Bartolomé de las Casas, que Gutiérrez fundou e dirigiu.
Nickoloff é editor do livro Gustavo Gutiérrez: Essential Writings e coeditor (com Orlando Espín) de An Introductory Dictionary of Religious Studies and Theology. Ele atualmente leciona na Barry University, na Universidade de Miami e na Catholic Theological Union (Chicago).
A entrevista foi publicada no sítio National Catholic Reporter, 17-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Desde os anos 1980, temos ouvido sobre as reservas da Igreja institucional com relação à teologia da libertação e, em alguns casos, sobre bispos que reprimem os teólogos da libertação. Como aluno de Gustavo Gutiérrez, um dos fundadores da teologia da libertação, o senhor poderia nos ajudar a entender mais profundamente as preocupações do magistério sobre esse movimento?
Eu acho que é importante começar dizendo que eu estou falando a partir da minha própria perspectiva limitada. Eu tenho mais conhecimento e experiência no campo do que outros, mas eu absolutamente não detenho todo o quadro. O que eu apontaria como a preocupação em alguns setores da Igreja institucional (que inclui bispos, sacerdotes e leigos) é uma sensação de que o que a teologia da libertação realmente estava defendendo estava elevando a consciência das pessoas na base da sociedade. Gutiérrez fala sobre três níveis ou dimensões do processo de libertação.
O primeiro é a transformação social, política, econômica, estrutural. Os projetos políticos e teológicos se unem no segundo nível, que é a transformação psicológica. O terceiro nível é a transformação em Cristo, que é a mudança do egocentrismo e do pecado para Deus. A conexão entre a libertação social, política, econômica e estrutural e a libertação espiritual ocorre, na sua opinião, na transformação da consciência humana. Essa é a ligação entre os dois.
Gutiérrez e muitos outros teólogos da libertação estão convencidos de que pregar o Evangelho com integridade pode realmente encorajar a parcela cristã da população a passar por essa transformação psicológica. Foi isso que ele viu acontecer nos anos 1960 e 1970 em vários tipos de movimentos dos pobres e marginalizados, incluindo grupos de mulheres, agricultores e trabalhadores.
Por que isso seria percebido como uma ameaça?
Eu acho que qualquer pessoa que esteja desfrutando do privilégio de poder no status quo será ao menos cauteloso, senão oposto, a essa consciência elevada entre os pobres e marginalizados. Se olharmos para a última eleição nos Estados Unidos, podemos argumentar que o que aconteceu foi que muitas pessoas marginalizadas – muitas das quais podem nem saber a história do movimento dos direitos civis ou do movimento das mulheres – tinham a sua própria consciência afetada pelo que aconteceu 30 ou 40 anos atrás. O trabalho de décadas de ativismo deu frutos. E muitas pessoas com dinheiro e privilégio provaram ser impotentes contra essa mudança na consciência. Eu acho que isso é análogo ao que aconteceu na Igreja.
É claro que nem todos os bispos tinham medo do fato de as massas começarem a ver o que realmente estava acontecendo. Temos o exemplo do arcebispo Oscar Romero e de outros bispos que foram presos e até mesmo pagaram com as suas vidas. Mas houve esforços por parte de alguns para cooptar a solidariedade da Igreja com os pobres e desviá-la para longe do que poderíamos chamar de libertação e justiça e para concentrá-la, ao invés, na caridade. Assim, eles favorecem uma maior caridade, cuidado e ajuda, mas eles não estão tão interessados em mudar a consciência.
Quais são os sinais de comprometimento de um bispo com as ideias da libertação e não apenas com a caridade?
Quando as autoridades da Igreja defendem os pobres, é importante olhar para o conteúdo, não apenas para os títulos, dos programas que eles promovem. Ser crítico do capitalismo desenfreado é um bom sinal. Mas também é importante analisar se as suas atividades eclesiais têm o objetivo de elevar a consciência, elevar a conscientização das pessoas diante das estruturas de poder injustas. Vimos um grande exemplo disso em Lima, no Peru, nos últimos 50 anos, onde os programas educacionais, seminários e o trabalho da Igreja com as comunidades pobres ao redor da cidade e do país tinham os propósitos de ensinar a Bíblia e de olhar para as questões estruturais. Mas o principal objetivo desses programas era levar as pessoas a crescer e a ter uma compreensão mais sofisticada de si mesmas, da sua dignidade e da sua situação.
Alguns argumentam que o problema com a teologia da libertação é que ela contém elementos marxistas e se baseia na análise marxista.
As mesmas acusações foram feitas contra Martin Luther King, de que ele era marxista. Naquela época, estávamos na era da Guerra Fria e do macartismo. Se você olhar para a história de qualquer revolta por parte dos impotentes ou marginalizados na história, muito antes mesmo de Marx surgir, sempre houve resistência a isso por parte dos privilegiados do status quo. Se os teólogos da libertação usaram as categorias da análise marxista nos anos 1960 foi para analisar estruturas de poder na sociedade. Mas eu não acho que essa foi realmente a razão pela qual houve oposição. Na minha opinião, isso tinha a ver com a transformação da consciência humana; isto é, ajudar as pessoas da base a começar a se verem como iguais a qualquer outra pessoa.
Sabemos que o Papa Francisco e seus dois antecessores, João Paulo II e Bento XVI, eram críticos da teologia da libertação. No entanto, eles também criticaram o capitalismo bruto e aderiram ao serviço aos pobres, o que soa muito como a teologia da libertação.
O principal trabalho dos teólogos da libertação ainda é elevar a consciência dos fiéis cristãos. Isso pode ocorrer na forma da educação ou da ação política, mas, no fim, eles estão preocupados com a transformação da consciência humana e, dessa forma, chamar as pessoas para mais perto de Deus. Foi a isso que Gutiérrez dedicou a sua vida. Houve algumas defesas em termos da aceitação da sua teologia pelo magistério. Mas eu acho que ele é como Moisés, levou para o rio e olhou para a Terra Prometida, mas ele nunca chegará lá. Mesmo com relação à questão da pobreza, a situação é pior do que há 40 anos. A brecha está aumentando por causa da contínua aquisição de interesse corporativo. O trabalho de elevar a consciência e trabalhar nas bases é crucial.
Algumas pessoas na Igreja tornaram-se adeptos em cooptar a palavra "libertação" e a linguagem da opção preferencial pelos pobres. Muitas lideranças da Igreja ainda estão mergulhados na mentalidade do corporativismo católico. A Igreja institucional é estritamente ordenada, e muitos na hierarquia se sentem desconfortáveis com a desordem e o caos. Mas sabemos da psicologia e da pedagogia que qualquer processo de aprendizado humano é confuso. Eu acho que algumas lideranças da Igreja foram e estão tentando manter a ordem e tornar a vida mais confortável para as massas, mas eles não estão realmente comprometidos em ajudar todos a serem adultos, sentarem-se à mesa e terem uma voz, seja na Igreja ou na sociedade.
A democracia real é confusa, e crescer é confuso e cheio de conflito, e eu acho que é com isso que muitos na Igreja institucional se sentem desconfortáveis. Eles querem que os pobres estejam em uma melhor posição, mas sempre, ao mesmo tempo, mantendo a ordem, e, no fim, isso significa não permitir que ninguém fora da estrutura de poder lhes diga o que fazer.
Dado que, em nível global, as mulheres sofrem desproporcionalmente com os efeitos da pobreza, e muitos gays, lésbicas e transgêneros vivem sob a constante ameaça de ataque, prisão e até mesmo de morte, é justo incluí-los na compreensão dos "pobres" por parte da teologia da libertação ?
Se olharmos isso de um ponto de vista bíblico, eu seguiria a análise de Jon Sobrino. Quando Sobrino olha para o Novo Testamento, ele vê dois grupos aos quais Jesus sempre tem um cuidado particular e junto aos quais se posiciona: os economicamente pobres e os socialmente marginalizados – aqueles que são rejeitados por várias razões.
A noção da opção preferencial pelos pobres remonta à Bíblia judaica, mas a sua formulação contemporânea tem menos de 40 anos. Nós ainda estamos redescobrindo o que existe na tradição e despertando para o que isso realmente diz para a nossa situação atual. Por causa da situação que os primeiros teólogos da libertação viviam, que era uma enorme injustiça política e econômica, eles ligaram o que eles viam no Evangelho a essa realidade. Mas, como o passar do tempo, eles expandiram essa ideia.
A inclusão das mulheres e a questão da violência contra as mulheres em nível global é central em uma grande quantidade de trabalhos de libertação nos dias de hoje. Pressionar para que se incluam as minorias sexuais é apenas o próximo e lógico passo. Eu acho que vemos isso acontecendo em algumas partes da Igreja.
Em Massachusetts, eu conheci alguns legisladores durante a votação pela igualdade no casamento. A maioria deles eram católicos e falavam de forma comovedora sobre como a sua fé os obrigava a votar a favor desses direitos. Eles não usavam exatamente a linguagem teológica da opção pelos pobres, mas é disso que eles estavam falando. Dar prioridade aos que foram deixados de fora. Eu acho que os católicos e católicas têm essa noção a partir da opção pelos pobres. Está em seus ossos.
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Teologia da libertação: elevar a consciência dos fiéis. Entrevista com James Nickoloff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU