Por: Jonas | 12 Abril 2013
O jesuíta padre José María Llanos (1906-1992), conhecido como o “padre do Pozo del Tío Raimundo”, considerado tanto um autêntico mito tanto do nacional-catolicismo de Franco, como da transição espanhola, confessou e deu comunhão para Dolores Ibárruri, La Pasionaria, que morreu católica. A presidente do Partido Comunista Espanhol, que as massas enalteciam, e que confessava seu ateísmo durante a guerra civil, por fim, cantava hinos religiosos com o padre Llanos e compartilhava sua fé com piedosas cartas dirigidas ao sacerdote. Quem diz isso é Pedro Miguel Lamet, em “Azul y rojo” (biografia do jesuíta que militou nas duas Espanhas e que escolheu o subúrbio), uma obra de 730 páginas e com cerca de mil notas, que revela documentos inéditos sobre o “padre vermelho”, que acaba de ser publicada por “La Esfera de los Libros”.
A entrevista é publicada no sítio Religión Digital, 10-04-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Poesia, romance, ensaio, biografias, já são quantos livros?
Quase quarenta. Este é o de número 39, de uma longa trajetória.
Por que o padre Llanos agora, depois de 21 anos de sua morte?
Era meu amigo, embora nunca tivesse me atrevido a escrever sua biografia em razão de sua complexidade e dos assuntos em que esteve rodeado. Eu o conheci nos anos 1960, quando o Pozo era um lamaçal e eu, estudante de filosofia, todas as semanas, ia de Alcalá para dar catequese ali. Era um homem inclassificável, de caráter difícil, mas heroico, criador, líder e de uma fé muito profunda.
Já não existem algumas biografias de Llanos? Por que outra?
As que existem, escritas próximas de sua morte, carecem de aparato crítico e, portanto, não puderam, como é lógico, mergulhar em seus arquivos mais íntimos. Llanos guardava tudo: cartas, poemas, fotos, diários pessoais e milhares de artigos e conferências. Conservava até as imagens, seus cartões de Cidadão do Mundo, do Partido Comunista, Comissões Operárias e até a sua braçadeira falangista, de sua época de capelão da Frente de Juventudes. Claro, isso é uma riqueza que permite conhecer intimamente um personagem e desmistificá-lo.
E o que descobriu?
Em primeiro lugar, que o radicalismo de Llanos data de sua juventude. De pai militar e família católica, nascido na Rua Serrano de Madri, quando estudava Química, brigou com José Antonio Primo de Rivera, e quando se tornou jesuíta fez voto de perfeição, lutando com uma permanente dor de estômago, que durou toda a sua vida. Viveu a expulsão dos jesuítas no desterro da Bélgica e a guerra de Portugal, quando na Espanha foram fuzilados seus dois irmãos, Félix e Manuel.
Depois, é ordenado sacerdote, em Granada, e torna-se o padre da moda do franquismo.
Foi assim. Por suas mãos passaria a juventude mais brilhante daquela época, na Congregação os “Luises”, a Frente das Juventudes, o SEU, o SUT, centenas de turmas de Exercícios Espirituais, etc. Até Franco o chamou para que lhe oferecesse os Exercícios de Santo Inácio. Llanos dizia que o caudilho era “milagreiro”, e que havia dito que Santa Teresa tinha aparecido para ele. Sempre o respeitou. Llanos estava numa lista de “intocáveis” pela polícia, assegurado por Franco.
E como um homem assim dá o salto para outro extremo, para as Comissões Operárias e o comunismo?
Foi um processo paulatino. Quando se hospedava em castelos históricos, com os rapazes das centúrias, começou a sentir que existia, esquecida às suas costas, outra Espanha empobrecida. Então experimenta uma conversão aos pobres e ao mundo do trabalho. Cria os acampamentos de universitários operários do SUT e começa a auxiliar os marginalizados de Madri.
Quando decide ir para o subúrbio?
Na metade de sua vida, ao completar 50 anos. Em 1955, escreve uma interessante carta ao provincial dos jesuítas, até agora inédita, que publico na íntegra em meu livro. Sua primeira ideia era construir um barraco, uma “casinha de Nazaré” na lamaçal do Pozo del Tío Raimundo, apenas para dar testemunho, sem pregar, mas para viver como eles. Mais tarde, ao se dar conta da miséria e de seus muitos conhecimentos no centro de Madri, serve de ponte com o subúrbio e se compromete no desenvolvimento do mesmo: escolas, luz, água, cultura e depois casas, um bairro novo... Entretanto, inicialmente enfrentava a guarda civil, quando os recém-chegados, à noite, construíam seus barracos.
Porém, isso não explica que levantasse o punho no primeiro encontro do Partido Comunista, e que contribuísse com Marcelino Camacho na fundação de Comissões Operárias.
A razão de fundo é que ele queria ser do povo até “a morte”. E as pessoas de Pozo, em sua maioria emigrada e retaliada, eram do Partido Comunista Espanhol. Assim, irá visitar Marcelino Camacho na prisão e tornar-se amigo de Carrillo e de La Pasionaria. Há cartas muito íntimas com estes líderes políticos.
Como você comprova, em seu livro, que La Pasionaria morreu católica?
A cada quinze dias, Llanos visitava Dolores Ibárruri. Chegaram a se confraternizar e até cantar hinos religiosos de sua época, como o “Cantemos ao amor dos amores”. O jesuíta nunca revelou nada sobre a conversão de La Pasionaria, que em sua juventude havia sido católica e que depois de casada com um ateu, tornou-se comunista e ateia. No entanto, encontrei cartas que comprovam que esta mulher, no final de sua vida, retornou à fé. Resultava muito forte tornar público que o símbolo por excelência do comunismo, da Guerra Civil, tivesse morrido católica, razão pela qual esse episódio deveria ficar no foro interno do sacerdote amigo. Ele sempre guardaria esse segredo íntimo. Entretanto, existe uma carta que eu descobri em seus arquivos, datada do dia de Reis de 1989, em que Dolores, após dizer que sabia que ele pedia por ela “no partir do Pão (a missa)”, acrescenta: “Para ver se nós, “velhinhos” que somos, convertamos o que nos resta de vida num canto de ação de graças ao Deus de amor, como ensaio de nossa eterna ocupação”. Além disso, publico em meu livro dois formosos poemas de Llanos dedicados à La Pasionaria e o testemunho de uma amiga que informou que Llanos a confessou e lhe deu a comunhão.
O padre Llanos não se arrependia de seus arriscados gestos?
O padre Llanos se arrependia de tudo. Não conheci um homem mais crítico consigo mesmo, como também com maior personalidade, fé e coerência interna do que ele. No final de sua vida, na residência de anciãos jesuítas de Alcalá, confessa para um jornalista local que, como sacerdote, se arrepende do punho para o alto, mas não de ser comunista, pois precisava compartilhar tudo com aquele povo. E declara que sua paixão de sempre, o que o motivava em toda a sua vida, era seu amor a Jesus Cristo.
Como escritor, o que destacaria de sua obra?
Vivia preso a sua máquina Olivetti e enrolado numa manta. Escreveu mais de quatro mil artigos e dezenas de livros. Era um pós-conciliar já antes do Concílio, um outsider, um profeta para seu tempo, com um coração universal, cidadão do mundo e pioneiro em muitas coisas. Na transição [espanhola], deu credibilidade à Igreja, junto a Díez-Alegría e outros, demonstrando que o Evangelho não é patrimônio de um único partido político.
E seus superiores da Companhia, a hierarquia da Igreja, como permitiram tudo isso?
Porque amassava barro, vivia pobremente, nunca tirava férias. Tanto a esquerda como a direita o apreciava, de Solana a Fraga, de Álvarez del Manzano a Carrillo, de Franco a Tierno Galván.
Nunca houve uma mulher em sua vida?
Desde muito jovem, como bom poeta, era muito sensível aos encantos femininos. Teve paqueras muito inocentes antes ser jesuíta. Escrevia versos quase diários, alguns para mulheres, mas ele mesmo confessa que nunca havia “beijado de verdade”. No fim, teve um amor platônico muito intenso a Carmen Díez-Rivera, a chamada “musa da transição”, que também era uma marginalizada pela vida e a doença. Contudo, não passou de cartas e poemas. Assim como é muito curiosa a admiração e amizade que lhe professava o anticlerical Francisco Umbral. Os três se autodenominavam “trilateral”.
Se você tivesse que definir José María de Llanos em apenas uma frase, qual seria?
Llanos é indefinível e inabarcável por sua complexa personalidade e inesgotável atividade. Por essa razão, nunca me custou tanto escrever uma biografia, e escrevi mais de uma dúzia. Escolheria a definição que publiquei no “Diario 16” por ocasião de sua morte: “Foi antes de tudo um poeta, um sonhador que escreveu, com fatos da vida, seu melhor poema, a partir de sua consciente debilidade”.
Em sua opinião, que significado tem a figua de Llanos no atual momento?
Num mundo açoitado pela crise, corrupção e obsessão econômica, Llanos significa que a fé é inseparável da luta pela justiça e que existem valores desprestigiados pelo atual neoliberalismo dominante, como a solidariedade, o amor e a esperança que dão pleno sentido à vida humana.
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José María Llanos, “um profeta para seu tempo, com um coração universal”. Entrevista com Pedro Miguel Lamet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU