Por: Jonas | 07 Março 2013
Poucas pessoas podem se gabar por possuir o dom inato de, absolutamente, captar a atenção de seu interlocutor. Pedro Miguel Lamet (Cádiz, 1941) conta com isso. E o domina sem simulação, nem trejeitos. Seu olhar transmite alegria e vitalidade. Seu tom e suas palavras, a tranquilidade em saber o que está dizendo. Talvez esta segurança sem peso esteja relacionada ao seu nascimento “rodeado pelo mar”. Ele, por via das dúvidas, tenta não perder “o humor gaditano”, apesar de que há anos a vida o levou para rotas distantes de sua região.
Em sua bagagem, acumula mais de 30 livros publicados, direções de revistas, como “Vida Nueva”, participação em jornais míticos na história espanhola recente, como o “Diario 16”. Em seu currículo falta espaço para todos os seus “ofícios”: jornalista, escritor, diplomado em Cinematografia e, antes de tudo, jesuíta. Em seu passaporte faltam páginas para este “gaditano pelo mundo”, que desde ontem está em sua terra para pregar os cultos de “O Perdão”.
Numa esquina do Café Royalty, iluminada pela tíbia luz de uma quarta-feira acinzentada e úmida, Lamet fala sem rodeios, embora ponderando suas palavras. “Realça isto”, aponta em tom de conselho, “esclarece esta outra coisa”, comenta o jornalista de personalidade, que sabe o que está acontecendo nos meios de comunicação. Afinal de contas, a palavra é a sua ferramenta há anos. Tanta bagagem como viajante das letras, causa certa reparação, quase pudor, para seu interlocutor. Sorte que Lamet deixa as coisas bem fáceis.
A entrevista é de Jesusccarillo, publicada no sítio El Observador Gaditano, 07-03-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você veio pregar os cultos de uma confraria em sua terra, qual a sua opinião sobre esta forma que o sul possui de viver sua religiosidade?
É como uma catequese vivente e, mesmo que seja um pouco superficial, na realidade, vai caindo como uma chuva mansa. Afinal, há um repouso de religiosidade em Andaluzia que não encontro em outras regiões, onde a secularização bateu mais forte. Porque aqui resta algo desse aspecto luminoso, misterioso, na vida cotidiana das pessoas, através dessa religiosidade. Existe um valor que precisa ser aproveitado e desenvolvido por meio de uma formação e cultura religiosa.
Uma expressão religiosa que, não poucas vezes, foi afrontada por diferentes frentes. A religiosidade popular corre o risco de uma banalização excessiva?
Em geral, acredito que esse é um risco do mundo de hoje. Chegamos a uma superficialidade em quase tudo. O mundo da imagem, da hipercomunicação, faz com que tudo seja extraordinariamente efêmero e superficial. Esse problema de profundidade aparece em todas as dimensões, mas na religiosa é muito mais grave. A religião supõe um encontro com o mais profundo do homem e se isso se converte na quantidade de castiçais que temos, esse “capelismo”, tão típico das confrarias, torna-se verdadeiramente perigoso. Por isso é preciso dar o salto.
Confrades ou não, a renúncia do Papa marcou a presente Quaresma. Em qual versão você acredita, a respeito de sua renúncia?
É uma soma de elementos. Por um lado, a idade que pesa e a enfermidade que se une à idade: não enxerga de um olho, tem o joelho machucado, usa marca-passos... Por outra, o peso da Cruz que carrega: a pedofilia, que enfrentou de forma muito corajosa, e os “vatileaks” ou as corrupções do Vaticano, para os quais já não se sente com forças para investir, pois é um assunto muito grave. Junto a isso, o fato de que é um homem de gabinete, que herdou uma situação muito complexa, porque João Paulo II, por ser tão de pastoral, dedicava-se muito às viagens e na vivência para fora, sem poder atender plenamente a reforma da Cúria. Essa reforma que Bento XVI pretendeu e que parece não ter se sentido com forças, por ser um homem tímido e intelectual. Da mesma forma como João Paulo II era um homem muito para fora, ele era muito para dentro.
Fala-se de relatórios, escândalos a ponto de vir à luz e de um Bento XVI abatido por esta situação, argumentos que soam quase como uma novela de intrigas. Como jornalista e sacerdote, como você avalia todas estas informações que, nos últimos tempos, sacodem o Vaticano?
Literalmente, o Vaticano sempre foi um “bocatto di cardinale”. Une-se a fascinação do religioso, que sempre é visto como algo oculto, quase esotérico, com a beleza que o Vaticano possui do ponto de vista cenográfico. Tudo isso é como o cinema. Assistir uma destas cerimônias de eleição, morte do papa ou a despedida, neste caso, é para a RAI (uma cadeia de televisão italiana) uma realização. Isso faz unir o misterioso com o secreto vaticano. O problema é saber o que é verdade e o que não é. Trabalhei em Roma como jornalista, e os vaticanistas, sem considerar que o jornalismo italiano é de muito pouca confiança em geral, tem uma capacidade de imaginar quase extraterrestre. Junto a isso se une, neste caso, um fato objetivo: há uma grande divisão interna entre os cardeais italianos. Segundo as últimas notícias que vêm de Roma, esse fato já está afetando a imagem do futuro papa. Isto não deve nos escandalizar, pois a Igreja é composta de homens e Deus atua através de mediações humanas. Portanto, é algo que não impede que existam homens santos e santidade dentro da Igreja.
O que destacaria do pontificado de Bento XVI?
Destacaria duas coisas. Primeiro que soube trocar de “chip”. Ele se deu conta que tinha uma dura imagem de inquisidor, de martelo de hereges. Essa imagem, que foi um serviço pedido pelo seu antecessor, ele a purificou graças a uma grande bondade, uma grande simplicidade e uma grande sobriedade. Isso é o que mais eu gosto neste Papa: é um intelectual metido a papa, que conseguiu fazer um pontificado para dentro. Sem dúvidas, os dois pontos mais importantes de seu papado, fora outros como o ecumenismo ou suas encíclicas, foi o de atacar com toda limpeza o problema da pedofilia e, agora, esta renúncia que é histórica. Supõe a desmistificação do papado, convertendo-o em serviço e humildade. Resumiria toda sua atividade no gesto final de se tornar “um peregrino em sua última etapa”. Outro ponto muito interessante é ter continuado trabalhando como teólogo, uma vez que não podia renunciar isto. Ele diferenciou seu magistério como Pastor de seus livros como teólogo, que são excelentes.
Abrirá precedente?
Dependerá do Papa que vir, mas teria que ser um sumo pontífice muito desnaturado para, numa situação de grande velhice, não seguir essa linha. É muito oportuna para uma época em que a longevidade aumentou de forma chamativa.
Qual o perfil de sumo pontífice que a Igreja necessita atualmente?
Precisa de um homem que não vire as costas para o mundo, que abandone os castelos de inverno e a atitude defensiva diante do mundo e a cultura da Igreja, e que saia à rua para falar com as pessoas. Isso supõe saber escutá-las. Trata-se, basicamente, de dialogar com os grandes desafios intelectuais do mundo de hoje. Nos últimos tempos, tiveram bem poucos representantes da Igreja que dialogaram, como o cardeal Martini, que conversou com Umberto Ecco. Hoje, muitos cardeais trazem a impressão de que o mundo é muito mau e de que é preciso se proteger dele e se defender. Assim, o que acontece é que as pessoas deixam a Igreja no ostracismo, vivem fora das grandes inquietudes da Igreja. Na Espanha, por exemplo, no dia da renúncia do Papa fui chamado por 50 meios de comunicação, sendo que passei o ano sem ser chamado. Isso significa que a Igreja não interessa, a não ser nesses casos.
Portanto, deve ser um homem de Deus. Com santidade entendida como despertar interior, não como um homem que reza muito, mas que, no entanto, não despertou por dentro, não se libertou. Quando Deus liberta alguém interiormente, torna-se capaz de muitas coisas. É capaz de ser livre e de responder aos desafios do mundo de hoje. É necessário que seja um homem muito universal e que considere o Terceiro Mundo, mesmo que não seja de lá. O que eu mais gostaria é que o próximo papa ficasse muito inquieto e preocupado com a parte do mundo que não conta, com a fome e a injustiça, que ao final pudessem lhe chamar o “papa dos pobres”. Neste momento, precisamos de alguém que nos dê alegria, felicidade e esperança. Quando você assiste um telejornal, você se sente mal, é um acúmulo de notícias negativas. Lembro quando falavam ao padre Arrupe que ele era um otimista patológico e ele dizia: “Acredito em Deus, como não serei otimista”.
Acerquemo-nos um pouco mais da Espanha. Numa entrevista, você comentou que a Igreja espanhola está “enroucada”. A Conferência Episcopal rema numa direção diferente da própria Igreja?
Ela tem sido mais papista que o Papa. Uma anedota: quando o Papa veio a Valência, quem estava governando era Zapatero. Os católicos fervorosos e alguns setores importantes da Igreja estavam esperando que Bento XVI se metesse com o Governo e seu presidente. E ele não fez nada disto. Limitou-se a apresentar a doutrina da Igreja sobre a família e ponto. Isso significa que, aqui, tem existido um alinhamento excessivo com o PP. Acredito, por exemplo, que sobre o tema da corrupção ainda não houve pronunciamento. Teve algum bispo que disse algo, mas a Conferência não. O tema da corrupção e da crise econômica é algo totalmente nosso: é dos pobres, das pessoas que estão passando muito mal. É algo que não me explico. A forma como a Igreja espanhola mudará, dependerá do Papa que virá.
Você acredita que esta situação pode se tornar excludente para os cristãos de outras ideologias?
Acabo de concluir uma biografia do padre Llanos, que foi um homem da transição, que viveu tanto o falangismo, como o comunismo. Estes homens, como o padre Díaz-Alegría, Julio Lois, o cardeal Tarancón..., conseguiram fazer com que a Igreja não se identificasse apenas com a direita, como ocorreu durante os anos do franquismo. Agora, ultimamente, talvez um setor do clero jovem, muito conservador, está voltando a fazer com que a Igreja se identifique com algumas determinadas siglas. Parece-me um enorme erro. É verdade que os partidos de direita possuem uma ideologia mais próxima da Igreja em relação aos temas da família, mas também é verdade que os partidos de esquerdas possuem uma ideologia mais próxima da Igreja nos temas sociais. Portanto, não existe partido confessional.
Política e religião, uma relação complicada. O que uns e outros deveriam fazer?
O que já foi feito na Transição. Alguns meses antes de morrer, Santiago Carrillo esteve numa paróquia de Madri, convidado para uma homenagem a Lois, Llanos e Díaz-Alegría. Uma coisa me chamou atenção. Ele disse que na Guerra Civil foram queimadas igrejas e que foi um grande erro, embora motivado pelo povo visse a Igreja unida à oligarquia. Possuía apenas parte da razão, mas disse o seguinte: “Na França, eu me tornei amigo de muitos padres, após o Concílio, e cheguei a compreender que a Igreja e os comunistas, embora sejamos ateus, podíamos colaborar em causas comuns magníficas”. Isso é perfeitamente possível. Agora, as pessoas jovens conscientizadas, que trabalham em ONGs, vão ao Terceiro Mundo e, sejam crentes ou agnósticas, são unidas pela causa dos pobres e mudança do mundo. Podem existir muitas causas que nos unem e que não nos dividem. Eu, como crente, digo que todos esses que trabalham pela justiça estão servindo a Deus.
Vivemos tempos agitados, um caldo de cultura de iluminados e estranhas ideologias. Falta religiosidade ou espiritualidade para a atual sociedade?
A sociedade está num momento em que conta com duas correntes: uma superficial, dominada pelos Mercados, a Bolsa, Merkel... Esse mundo materialista é superficial, sem espiritualidade, vive o dia. E faz isto num aspecto quase animal: o que interessa é o dinheiro, o prazer e o instantâneo. Porém, há uma corrente já profetizada pelo grande teólogo Karl Rahner: “O século XXI ou será místico ou não será”. Há uma busca enorme de espiritualidade mal orientada, no Terceiro Milênio, que chega aos esoterismos. Todas essas pessoas acreditam nos “poltergeist” e extraterrestres, mas não acreditam em Deus, algo estranhíssimo, ou a New Age. São buscas de Deus mais ou menos solapadas. Há um interesse pela meditação e a natureza. Acredito que devemos estar em contato com tudo isso, pois quando o homem mergulha dentro de si, encontra a Deus, porque nele existimos, como dizia São Paulo. Por isso, acredito que a Igreja não deveria dizer: “eu tenho a exclusividade de Deus”, mas deveria se encontrar com todo o mundo nesse caminho.
Como jornalista, você acredita que a Igreja aprendeu a apresentar sua mensagem e suas ações nos tempos atuais?
Está retrocedendo. Explico-me. Lembro os tempos em que entrevistava o cardeal Tarancón, o padre Arrupe. Eram entrevistados que apresentavam sua posição. Agora tente colocar uma alcachofra diante de um bispo, que ele sente pavor. Chama-me a atenção que os cardeais norte-americanos, no Conclave, estão dando uns “briefing” fantásticos, estão deixando todos para trás. Aqui, existe muitíssimo medo da informação. Aos bispos que me perguntam, eu sempre dou um conselho. Eles percebem que as frases que dizem são deterioradas e que fazem uma interpretação errada nos meios de comunicação. A resposta que eu dou: “Você viu os políticos? Quando eles são interpretados de forma errada, voltam a dizer outra coisa, mas em outro sentido, assim conseguem aparecer, novamente, no meio de comunicação”. Existe o medo dos meios de comunicação, às vezes, na verdade, é justificado. É preciso saber utilizar esse potencial. Estamos numa época em que a submissão vale mais do que a liberdade. Os bispos e os clérigos têm medo de não parecerem obedientes e submissos, por isso, realmente não falam. Acredito que se deve aproveitar a mensagem de Jesus. Acrescento ainda mais. Também não devemos nos tornar informadores do eclesiástico. Devemos ser informadores de Jesus. Quando trabalhava na Rádio Vaticano, chamava-me a atenção que aquela era a voz do Papa, mas não de Jesus e do Evangelho. Quando uma pessoa santa transmite por meio de uma tela, está transmitindo Deus, caso tenha medo, fica no clericalismo.
De onde vem este medo?
Vem da ideia de que o mundo em que vivemos é mau. Também vem da falta de preparação dos hierarcas para utilizar bem a imagem. O clérigo quando não aparece um pouco afeminado, no momento em que fala na televisão, aparece abatido, triste, temeroso. Se nós temos a Jesus e sua boa notícia, não deveríamos ter medo.
É surpreendente que exteriormente muitas pessoas percebam “duas Igrejas”: a da Cúria e da base, que está com os mais desfavorecidos. É falha de imagem? Divisão real?
Quero deixar claro que em minhas palavras pode parecer que os bispos não importam, não é isso que quero dizer. Existem bispos muito bons, que são homens de oração, que se preocupam com sua gente. O que acontece é que é muito difícil pastorear a sociedade do século XXI. Acredito que, após do Vaticano II, houve uma involução por falta de diálogo e porque existiram muitas deserções, muitos problemas. Acredito que o espírito de João XXIII, em abrir as janelas para o mundo de hoje, é preciso ser recuperado. É necessário conseguir fazer com que não exista esta dicotomia tão grande entre a Igreja instituição e o Povo de Deus. Por isso, acredito que todos nós devemos ser Povo de Deus. Para isso, tanto os bispos devem baixar-se do assento, como nós devemos nos aproximar deles, para que se dê uma Igreja inteira.
Romancista, poeta, jornalista e jesuíta. Se você tivesse que definir a si mesmo, com o que ficaria?
Eu ficaria com uma frase do padre Arrupe: “Tento como posso não colocar impedimentos à graça de Deus dentro de mim”. Acredito que não sou nada disso. Sou uma espécie de veículo através do qual a graça de Deus se manifesta, de acordo com aquilo que meu ego, mais ou menos, permite. Todo meu empenho é para que minhas qualidades humanas consigam transmitir essa mensagem. Se consigo ou não é outra coisa.
Que significa para os jesuítas sair de Cádiz?
Tenho que dizer que os jesuítas não saíram de Cádiz, que estão em O Porto de Santa Maria. Sei que dizer que O Porto de Santa Maria é Cádiz, é como dizer que As Bahamas também são (risos). Penso que Cádiz deveria amparar mais O Porto e O Porto a Cádiz.
E Cádiz? O que pressupõe para você?
Sinto-me muito gaditano, embora esteja como num “gaditanos pelo mundo”. Sinto-me muito em casa e uma das coisas que mais me curam, neste mundo, é não ter perdido o humor gaditano, porque o mundo está muito sério e não lhe falo nada da Igreja (risos). Existe tal tensão e seriedade na Igreja, que fica faltando um pouco de loucura, brincadeira.
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“Necessitamos de um papa que nos dê esperança”, afirma o jesuíta Pedro Miguel Lamet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU