10 Junho 2014
No mês que marca o Dia do Meio Ambiente - 5 de junho -, um dos pioneiros do movimento ambientalista no Rio Grande do Sul, Celso Marques não vê motivos para comemorar. Ele percebe um movimento de retrocesso desde os anos 1980, quando os ativistas conseguiram apoio da sociedade para aprovar propostas que visassem à preservação da natureza.
A entrevista é de Fernanda Bastos, publicada pelo Jornal do Comércio, 09-06-2014.
Nesta entrevista o ecologista, que acompanhou boa parte da trajetória de José Lutzenberger na Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), lamenta que o Estado que foi o berço do ativista não tenha adotado em suas práticas a perspectiva de desenvolvimento aliado à proteção do meio ambiente. O ex-presidente da Agapan ainda analisa recentes polêmicas envolvendo o movimento na Capital, como o corte de árvores na avenida Beira-Rio e no entorno do Hospital de Clínicas.
Para ele, os avanços obtidos pelo movimento ambientalista nos anos 1970 e 1980 estão sendo afetados pela falta de planejamento dos governos municipal, estadual e federal. Marques ainda critica as mudanças na legislação, como a elaboração do Código Florestal, e indica erros do Judiciário nas suas análises sobre causas ligadas à área.
Eis a entrevista.
Qual é o papel de Lutzenberger na sua formação como ambientalista?
Conheci o Lutzenberger em 1973. Quando ouvi as coisas que ele falou pela primeira vez, uma série de coisas que estavam em aberto se fecharam na minha cabeça. O meu estudo foi na Agapan, que, naquela época - como até hoje - era uma espécie de universidade informal, porque nem nas universidades havia ecologia. Então, a gente aprendia muito com o Lutzenberger. Tinha muita gente da universidade, porque o corpo social, os conselheiros da Agapan eram, em sua grande parte, um número muito grande de professores da Ufrgs. Foi com o Lutzenberger que passei a frequentar a Agapan, a ONG que deu início a todo o movimento ambientalista e teve, inclusive, um reconhecimento nacional naquela época.
É interessante, porque foi um período da ditadura militar, em que havia dentro das redações dos jornais censura, então surge a ecologia que era uma forma de pensamento que não se enquadrava nem no que se entendia por esquerda, nem no que se entendia por direita. Era uma coisa nova. O pensamento ecológico não se enquadrava muito bem no paradigma ideológico existente, que era dessa polarização entre esquerda e direita, favorecendo a cobertura imensa que a imprensa deu durante vários anos à questão ecológica. Criticar políticas públicas sem ser acusado de comunista, fazer uma crítica ecológica, isso também deve ter sido um fator para que tivéssemos uma cobertura da imprensa muito grande nos anos 1970 até os anos 1980.
E como está hoje?
Houve um envolvimento maior dos interesses. Como muitas vezes os anunciantes são os maiores poluidores, a grande imprensa passa a mão por cima do interesse dos anunciantes e isso é um fator muito prejudicial. E a situação mudou bastante daquela época para cá. Porque, quando falamos da questão ambiental, não estamos falando mais de coisas abstratas. Temos uma Constituição Federal, uma Constituição Estadual, leis orgânicas municipais, numerosos cursos de ecologia e também assuntos correlatos à questão ambiental, quer dizer, o contexto é outro. Hoje, temos condições de cobrar do Estado, e também quando uma empresa pisa na bola cobramos, porque temos uma legislação a ser cumprida.
As leis são suficientes para evitar abusos?
O grande problema que vemos hoje é que os programas ecológicos muitas vezes não são levados como políticas públicas pelo Estado, porque não temos uma democracia de fato. Temos uma democracia de direito, mas não temos uma democracia de fato, porque a gente não tem no Brasil uma tradição do Estado, da sociedade respeitar as leis. Uma vez o Paulo Affonso Machado, que é considerado um dos maiores juristas da área ambiental no mundo, e fez uma conferência aqui em Porto Alegre, e disse: “Olha, vivemos uma situação que é completamente escandalosa no Brasil, porque se formos ver o que está rolando na área do direito ambiental, ações na Justiça que dizem respeito a isso, o Estado é réu em 97% das ações que rolam no País”. Ou seja, o Estado não dá o exemplo. Recentemente perguntei a ele sobre esse dado, e ele disse que não sabia se permanecia o mesmo, mas lembrou que naquela época a questão ambiental estava em alta e hoje está em baixa, então provavelmente deve ser muito mais.
A Operação Concutare, no ano passado, alertou para problemas nos órgãos de Estado
É quase um consenso dentro dos funcionários da Fepam que, desde o governo da Yeda Crusius (PSDB) para cá, o órgão foi praticamente destruído. Hoje é um órgão que está cheio de problemas, muitos funcionários se demitiram, outros foram pressionados pela direção quando tomavam posições técnicas que eram contrárias aos interesses políticos e ficaram marginalizados, então se criou um clima.
Em termos de políticas públicas ambientais, houve avanços dos anos 1970 para cá?
Um dos avanços efetivos que a questão ambiental teve na nossa sociedade foi a Constituição Federal. A sociedade civil participou bastante dessa construção, a Agapan fez abaixo-assinado com milhares de assinaturas que foram encaminhadas a Brasília para incluir certas questões no próprio texto da Constituição. Ampliamos a questão ambiental dentro da própria legislação, nesse período que foi de consolidação das questões ambientais através da estrutura do texto constitucional. Tivemos todo um trabalho aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, teve um trabalho sobre o Código do Meio Ambiente na Assembleia Legislativa durante uns 10 anos e depois esse código foi aprovado na Assembleia por unanimidade, foi super debatido.
Mas agora os retrocessos começaram nessa movimentação de determinados setores produtivos que se mobilizaram para retroceder a legislação ambiental do Código Florestal, por exemplo. Foi uma grande derrota que a sociedade brasileira sofreu. E, em um país em que basicamente o Estado se caracteriza como delinquente ambiental, como é o caso do Brasil, estamos vendo que a questão ambiental, inclusive algumas vezes até o próprio Judiciário se equivoca como é o caso dessa lei que libera agrotóxicos que são proibidos em alguns países, descumprindo nossa própria lei aqui.Ou seja, conseguimos fazer uma legislação, conseguimos envolver também o Ministério Público como um guardião da legislação e do seu cumprimento, movimentamos esses setores todos, mas, no âmbito do próprio Judiciário, às vezes, enfrentamos o desconhecimento.
A Agapan está mobilizada contra decisão do TJ sobre os agrotóxicos, por exemplo?
Sim. Grande parte da luta ambiental está no jurídico, porque está tendo uma ressonância boa no setor de proteção do consumidor sobre essa questão dos agrotóxicos, que era um tema pelo qual brigávamos sozinhos. E agora, o pessoal que está preocupado com segurança alimentar começou a se dar conta de que é tudo a ver com a prevenção da saúde pública.
O senhor é um crítico da atual estrutura dos conselhos municipais, apontando falhas no sistema de representação.
Um exemplo é que em Porto Alegre estamos em briga com a Câmara de Municipal em função da lei das antenas de telefonia celular. A Câmara não queria fazer audiência pública, tivemos que ir à Justiça para garantir. Fazer uma audiência pública já é um avanço, agora o fato que a gente constata também com a nossa participação em numerosas audiências é que, muitas vezes, o próprio Estado escuta todo mundo, mas ele dá voz, mas não dá vez. Quer dizer, a prefeitura escuta todo mundo, mas não leva em conta o que escuta.
No caso do Conselho Estadual de Meio Ambiente, se pegar os históricos, todas as atas e discussões que se levaram a cabo no conselho, vamos ver as votações e vamos ver as entidades ambientalistas que estão presentes lá acabam sem voz, só servem para carimbar projetos. O Plano Diretor é outro caso, a gente via que, nas reuniões do conselho, muitas vezes os arquitetos, urbanistas, ecologistas e pessoas que estão preocupadas com a cidade são recebidas como estranhas no ninho, tranca-rua. A constatação é que o político e o empresário, eles trabalham dentro de um conjunto de limitações que levam a pensar a curtíssimo prazo. Mas se passa 46 anos pensando a curto prazo, fica parado.
O meio ambiente sofre com a falta de continuidade das políticas nas esferas federal, estadual e municipal?
Um exemplo é a discussão sobre o (o corte de árvores para a ampliação do) Hospital de Clínicas. Como é que se colocou na mídia? Como se estivéssemos há 40 anos falando para as paredes. Como depois de 43 anos de sensibilização da nossa coletividade com a questão ambiental, como se coloca um debate público assim? E o mesmo com a questão das árvores da avenida Edvaldo Pereira Paiva. No caso do Hospital de Clínicas, com muitas árvores plantadas pela Agapan na década de 1970, chegou a ser grotesco, porque nos debates colocaram os termos assim “Prefere proteger a vida de uma pessoa ou de uma árvore?”. Isso é a redução do problema ecológico no nível mais baixo. A opinião pública tem sido desinformada, porque se colocam os problemas não nos termos que eles estão sendo colocados pelos ecologistas. O que na realidade está havendo é uma forma grotesca de super simplificação de um problema. Nos dois casos e em geral poderia ter outras formas de resolver o problema sem cortar as árvores.
Mas tem muita gente que não gosta de árvore, engenheiros que veem as árvores como um problema. É o primeiro ponto, um projeto na área ambiental tem que cumprir com a exigência de ter levado em conta várias alternativas, mas tem gente que diz que nem existe projeto na área urbana e que os últimos projetos viários de Porto Alegre ocorreram em 1940. Manipularam a opinião pública como se os ecologistas fossem contra, não é isso. A prefeitura está com uma visão de planejamento urbano, de transporte urbano e de mobilidade que é completamente anacrônica e daí se coloca que somos contra a derrubada das árvores. Não, sendo um projeto inteligente que esteja de acordo com o que há de mais avançado na área de urbanismo e de mobilidade urbana, se precisasse derrubar mil árvores, mas que fosse um projeto bom, os ecologistas estariam apoiando. Mas derrubar centenas de árvores para um projeto burro que está na contramão da história? Não podemos apoiar. Como a prefeitura faz, então? Ela joga a opinião pública, coloca o problema em termos completamente equivocados, é um processo antidemocrático.
A perspectiva para os próximos anos é negativa?
A questão ecológica é uma questão complexa. Ela é um elemento definidor do que seria um verdadeiro desenvolvimento sustentável. Como nunca se conseguiu contrapor argumentos que de fato derrubem os questionamentos ecológicos, então hoje se aceita a questão ecológica, mas com a seguinte ressalva: temos que conseguir conciliar desenvolvimento com conservação do meio ambiente, como se fossem coisas separadas. Mas o primeiro texto que li do Lutzenberger foi um texto de uma aula inaugural que ele deu com o título “Por uma ética ecológica”. Esse texto do Lutzenberger me parece completamente atual hoje, porque o que ele coloca é que a questão ecológica está enraizada na nossa próxima cultura, porque a nossa cultura não tem uma ética ecológica. Por exemplo, se eu te matar ou fizer uma agressão física, estou sujeito a ser punido pela lei, agora se destruo um ecossistema - antes da existência de leis - não teria problema, porque a nossa visão, é uma visão de que a natureza não faz parte das nossas preocupações.
A nossa cultura nos blindou, é concentrada no homem isolado da natureza. Fazer mal a um homem é totalmente condenável, agora fazer mal à natureza, botar agrotóxicos, radiações eletromagnéticas prejudiciais à saúde, isso não conta, porque a nossa atitude é como se não tivéssemos nada a ver com a natureza. O Brasil é considerado o país mais rico do planeta em termos de biodiversidade, uma potência ecológica. Mas só vamos ter um lugar ao sol como nação se incorporamos a questão ecológica à nossa concepção de desenvolvimento. É a única saída para termos uma importância dentro das nações e de realizar uma vocação de felicidade, de bem-estar, de civilização, de qualidade de vida.
Perfil
José Celso Aquino Marques tem 69 anos. É natural de Bento Gonçalves. Veio para Porto Alegre aos dois anos de idade. O interesse pelo ativismo ambiental surgiu no início dos anos 1970, ao ouvir uma palestra de José Lutzenberger, fundador da pioneira Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a Agapan. Atua ativamente na entidade desde 1973, dois anos depois de sua criação. Foi presidente da Agapan por três gestões e integra o Conselho Superior da entidade, sendo coordenador ainda da Comissão Jurídica. Neste ano, recebeu homenagem dos conselheiros pela sua contribuição à causa. É um dos principais líderes dos ecologistas gaúchos nas últimas décadas. Professor de Filosofia, também atuou como educador ambiental. Antes de se dedicar ao ensino, trabalhava como publicitário e jornalista. Graduou-se em Filosofia nos anos 1980. Nesse período, também integrou a equipe do extinto Departamento do Meio Ambiente, no governo do Estado.
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Legado de Lutzenberger não é valorizado, critica Celso Marques - Instituto Humanitas Unisinos - IHU