Por: Jonas Jorge da Silva | 22 Outubro 2024
“Em quais plataformas estamos imprimindo as nossas esperanças? Em quais plataformas estamos imprimindo as nossas lutas? Circulando as nossas lutas? Temos vontade de escutar e aprender, por exemplo, as gramáticas da Amazônia? Estamos ajudando a construir essas gramáticas ou também estamos em um rol de cumplicidade, asfixiando e empurrando essas gramáticas para baixo?”, questionou a Profa. Dra. Ivânia Vieira, da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, no último encontro da série de debates [online] Questões do Antropoceno, cujo tema foi Povos da Amazônia: resistências, alianças e alternativas populares.
Encerrada no último dia 19 de outubro, a iniciativa do CEPAT contou com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá – UEM e do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB.
“Sou Ivânia Vieira, eu me autodeclaro indígena, embora na minha certidão de nascimento tenha sido colocada com a pele de outra cor. Eu falo da cidade de Manaus, sou amazonense de Manaus, filha de pais amazonenses, neta de avós do Ceará, e uma pessoa que sempre fez dos seus estudos em escola pública uma caminhada”. Foi assim que se apresentou a professora da Faculdade de Informação e Comunicação, coordenadora do Programa LigAção-Comunicação, Meio Ambiente e Cidadania na Amazônia e integrante do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Série de debates 'Questões do Antropoceno', com o tema 'Povos da Amazônia: resistências, alianças e alternativas populares'
Trata-se de uma pessoa muito atenta à realidade dos povos da Amazônia, com uma longa história de envolvimento nas lutas e reivindicações dos movimentos populares. Prova disto é o fato de ser a cofundadora do Fórum de Mulheres Afro-ameríndias e Caribenhas, do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas - Musas e da Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas - FAMDDI.
Em sua exposição, Vieira relembrou que a cidade onde mora, Manaus, tem a maior população da região norte, com mais de 2 milhões de habitantes, e que conta com o maior número de indígenas das capitais, com 71.713 pessoas. Apesar disso, lamentou que a população indígena de Manaus não receba uma boa acolhida, tendo que lidar cotidianamente com práticas racistas e padecendo a falta do mais básico para uma vida digna.
Também trouxe outros dados sobre Manaus. Nesta cidade, existem 8,5 mil igrejas evangélicas, sendo a Assembleia de Deus a denominação com o maior número de fiéis, contando com cerca de 1.000 igrejas e 200.000 frequentadores. Já os católicos, em queda brusca, atualmente, representam 50,5% da população.
Apesar da presença de tantos adeptos da Bíblia, Vieira avaliou que todo esse cenário tem favorecido um aumento na escala da violência, o cerceamento de vozes e o retrocesso no estado do Amazonas. Um exemplo claro é que o segundo turno da disputa eleitoral na capital está sendo entre candidatos de direita que concorrem entre si quem de fato é mais fiel ao bolsonarismo. É o claro resultado de modelos de vida em sociedade que oprimem, que tornam a população mais serviçal, mais submissa e que têm conseguido triunfar. Eles revelam as tensões da vida em sociedade e seus determinados tipos de acomodações.
Frente a essa constatação, o grande desafio está em pensar uma comunicação como instrumento de luta em prol da liberdade, da autonomia e da defesa dos direitos das pessoas e da natureza. Para Vieira, o movimento popular, progressista, precisa se reinventar diante de um cenário que privilegia o privatismo das coisas e os negócios de pequenos grupos que se apropriam da verba e do espaço públicos.
Citando o livro do professor José Ribamar Bessa Freire, Rio Babel: A história das línguas na Amazônia, Vieira destacou a importância de resgatar o que era a região amazônica no passado, avaliando como “o projeto de ocupação, o projeto de colonização e os seus efeitos têm uma marca profunda e cruel, quando pensamos a partir da Amazônia”: “No momento em que Camões morria, no século XVI, não havia um único falante de português na Amazônia, mas em seu território eram faladas cerca de 700 línguas indígenas, todas elas ágrafas, depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas etnociências, da técnica e das manifestações artísticas, que eram transmitidos através da tradição oral e de diversos tipos de narrativas”.
“Trinta e seis anos após a morte de Camões, já no século XVII, a língua portuguesa entrou no Grão-Pará, levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo ordenamento linguístico em toda a Amazônia. Desde então, os falantes de português na região se tornaram bilingues, desenvolvendo contatos permanentes com várias línguas indígenas, o que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Durante todo o período colonial, no entanto, a língua portuguesa, cujas categorias não davam inteligibilidade à realidade cultural e ecológica da região, permaneceu minoritária, como língua exclusiva da administração, mas não da população. Esta situação só mudou a partir da segunda metade do século XIX, quando passou a predominar o monolinguismo na língua europeia”, constatou em citação do professor Bessa Freire.
Com os olhos voltados para a história, Ivânia Vieira vê no presente a permanência de traços do assujeitamento dos habitantes da Amazônia. Presente, agora, por exemplo, no que chama de empreendimento evangélico de igrejas com braços longos na cidade de Manaus e região. É esta forma de empreendimento que determina quem pode ter acesso ao trabalho, quais tipos de conduta é aceitável ter, em uma arquitetura social que vai impondo o seu projeto de vida.
Trabalhando com a imagem do cipó como símbolo para as lutas e formas de comunicação dos movimentos populares, progressistas e mais à esquerda, Vieira frisou que todo cipó possui uma seiva que o que alimenta, o que nos permite o movimento e o entrelaçamento ao mesmo tempo, sem perder a firmeza. Contudo, um cipó queimado, de tão ressecado, pode levar a um tipo de paralisia, com o risco de todos nós puirmos junto com ele.
Para Ivânia Vieira, no processo de retomada do protagonismo, é crucial a contribuição dos intelectuais indígenas, tendo em vista que são poucos os países que possuem a diversidade sociocultural e étnica do Brasil. Citando o antropólogo indígena Gersem Baniwa, enfatizou a necessidade de romper com uma maneira única de ver o mundo e pensar as experiências entre os seres vivos, bem como a produção do conhecimento. “Para as populações indígenas e ameríndias, muito mais importante que o conteúdo é a forma, como aprender e o que fazer com o conhecimento”, já afirmou em certa oportunidade Baniwa.
Na continuidade, Vieira citou Miquelina Barreto Tucano, para quem “é preciso reunir pessoas que tenham coragem e determinação para enfrentar a política que faz mal à humanidade [...] Cada vez que a humanidade perde um direito, ela fica pior, ela fica mais doente. Perdemos o direito de ver a estrela da manhã em São Gabriel da Cachoeira”. Também mencionou outras referências indígenas, concluindo que “esses intelectuais indígenas nos ajudam a pensar esta realidade e a forma de comunicação que queremos utilizar”.
Série de debates 'Questões do Antropoceno', com o tema 'Povos da Amazônia: resistências, alianças e alternativas populares'
“Por que não prestamos atenção às falas e ensinamentos dos nossos intelectuais indígenas? Por que até agora esse tipo de ensinamento, esse tipo de conhecimento é colocado à margem ou é sufocado em diferentes escolas, universidades, em boa parte dos programas de pós-graduação e de forma muito intensa na própria sociedade, nos coletivos que trabalham formas de resistência?”, questionou Vieira. Em sua avaliação, “o conhecimento e a literatura indígenas ainda passam pelas brechas, não por uma porta aberta”. “Até que ponto somos cúmplices em manter este cenário de não abrir a porta, de não larguear a brecha, de não abrir a janela para que esse conhecimento passe?”, prosseguiu com os seus questionamentos.
A linguagem deve ser compreendida como um espaço de guerra, de disputa pelo sentido, que se dá na comunicação. É necessário buscar garantir um outro sentido de comunicação, diferente ao da direita radical, que tem se concretizado e conseguido mobilizar pessoas. “O que a comunicação que fazemos e como fazemos está nos proporcionando? Quais avanços estamos conseguindo perceber?”, prosseguiu Vieira com os seus questionamentos. Ela lamentou que mesmo em espaços importantes como, por exemplo, o Fórum Social Pan-Amazônico – FOSPA, a comunicação ainda seja relegada a um segundo plano, sem se perceber que estamos em meio a uma disputa por sentido. “Há uma comunicação que tem sido sufocada, dessaranjada, desestruturada e que ajuda a somar perdas e reforçar retrocessos em nossas experiências”, afirmou.
Diante desse cenário desfavorável, “o sofrimento do outro não nos importa ou nos importa em um modelo conformizado de comunicação que não consegue gerar outro tipo de reação diante dos números e nós o banalizamos”, afirmou Vieira. É uma acomodação que beneficia as práticas de perversidade atuais e que “não nos tira deste lugar de contemplação acomodada, para que possa nos levar a uma reação inteligente e criativa de enfrentamento do quadro atual”. “A comunicação não é assunto só de comunicadores, de especialistas e pesquisadores da área, de estudantes da área, mas, sim, da sociedade. Sendo assim, deve ser pauta dos movimentos progressistas, das organizações de esquerda”, defendeu.
Vieira destacou que o mundo que o jornalismo nos apresenta, por exemplo, é um lugar construído, organizado, técnico, que nos ajuda a pensar o nosso cotidiano e a hierarquizar nossas escolhas, dizendo quem são as pessoas, povos e os lugares que valem mais e quais valem menos. “A Amazônia tem sido tratada dentro desta balança, desde a viagem dos primeiros cronistas, desde a produção de intelectuais que hoje ainda são muito respeitados, que formam em universidade de diferentes regiões do mundo, do Brasil. Aqui, a Amazônia é apresentada pela lógica de um sublugar, a lógica de subpovos. Essas práticas jornalísticas mantêm os pilares coloniais. Até mesmo propostas alternativas nesse campo de atuação expõem a marca da colonialidade”, explicou.
Para Vieira, a Amazônia segue mantida em confinamento estratégico. “A moeda da hora, o crédito de carbono, tornou-se o guarda-chuva do agronegócio e obedece a uma dinâmica do mercado financeiro. Desmatamento e degradação geram adicionalidades, o título gera mais valor quando atua em uma área de desmatamento e de degradação”, criticou. Assim, a floresta se torna mero fundo de carbono, mascara-se o que está sendo feito com os povos amazônicos e suas florestas. “A floresta passa a funcionar como território de carbono e não mais como território de povos tradicionais”, lamentou.
É na comunicação e no jornalismo contracolonial que se torna possível realizar empates nesses jogos, buscando construir conquistas que passam necessariamente por alianças capazes de superar o eixo de acomodações críticas dos ativismos em torno de nós mesmos. Para isto, é preciso denunciar a perversidade como algo que se assemelha a desenvolvimento, que se assemelha ao criativo, que se assemelha ao progresso.
A partir de autores como Nego Bispo e Lélia Gonzalez, Ivânia Vieira defendeu a cosmopercepção como um caminho de aprendizado, um dispositivo que reorganiza as alianças para que sejam alianças vigorosas, capazes de superar o cansaço e as condutas paliativas. Novamente, traz o exemplo dos cipós, que com a sua seiva pode nos levar a movimentos, a fazer um outro transporte, reintegrando-nos nas lutas frente ao cenário de tantos prejuízos e mortes.
“Em quais plataformas estamos imprimindo as nossas esperanças? Em quais plataformas estamos imprimindo as nossas lutas? Circulando as nossas lutas? Temos vontade de escutar e aprender, por exemplo, as gramáticas da Amazônia? Estamos ajudando a construir essas gramáticas ou também estamos em um rol de cumplicidade, asfixiando e empurrando essas gramáticas para baixo?”, questionou Ivânia Vieira, encerrando a sua exposição inicial, que foi seguida por um rico debate com os participantes.
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Povos da Amazônia e a comunicação: sair de uma contemplação acomodada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU