Cantos do Sul da Terra: fim do programa é um novo ataque à arte, cultura e música de nossas gentes. Entrevista especial com Demétrio Xavier

O programa que começou na rádio FM Cultura e depois migrou para a TVE-RS é um verdadeiro memorial de uma cultura campeira, popular e transnacional da América Latina

Foto: Paulo Backes | Blog Terra Australis

Por: IHU e Baleia Comunicação | 22 Fevereiro 2025

Poucas coisas causam tanto pavor a governos orientados a uma pauta neoliberal que a ideia de diversidade. A crise que vivemos é também estética. Resistir a essa dinâmica da “monocultura” musical, que converte aquilo que seria uma música regionalista em uma ode simbólica ao hegemônico, é uma tarefa prenhe de desafios. Por isso, no fim de 2024, houve muita sensibilização da cena cultural e musical do Rio Grande do Sul em torno do encerramento do programa Cantos do Sul da Terra.

Apresentado por Demétrio Xavier, a atração, começada na rádio FM Cultura, foi ao ar entre 2011 e 2018. A partir de 2022, passou a ser também apresentada na TVE-RS. Com a notícia do encerramento no fim de 2024, dezenas de artistas e intelectuais gaúchos se mobilizaram nas redes sociais e promoveram um show-manifesto, no mês de janeiro deste ano, em favor da sua continuidade e renovação da cedência de Demétrio Xavier do Tribunal de Justiça para o Executivo Estadual. Por enquanto, não há novidade e o programa não aparece na grade de programação da TVE-RS.

O programa, porém, presta um grande serviço à memória das muitas identidades que formaram o Estado, a região e, propriamente, a cultura gaúcha. “O estado vive uma hegemonia simbólica de uma das suas muitas identidades possíveis de serem referidas, que é o gaúcho no sentido tradicional. Isso é hegemonia sobre todos os aspectos porque foram hegemonias políticas e econômicas que construíram essa referência, hegemonias simbólicas, como na mídia, por exemplo, que consolidaram e cimentaram essa ideia”, explica Demétrio Xavier. “O que acontece com o Canto do Sul da Terra é que esse território é todo aberto. A fantasia que podíamos ter é a do tempo em que as pessoas vagavam por aí sem a consciência das fronteiras, porque estavam por ser consolidadas, ou, antes disso, quando se tratava dos povos originários. Por razões econômicas e políticas, sempre fomos povos que se moveram muito – pelo contrabando, pela guerra, pela fuga ou tropeirismo”, amplia.

A arte e a cultura não são algo de segunda categoria, dispensáveis à existência humana. Pelo contrário, a arte e a cultura são fundamentais para existência humana. Neste sentido, Xavier propõe que a arte autêntica “serve para lembrarmos que essa cura não é necessariamente balsâmica, que cessa a dor ou o que dá alegria, para não fazermos aquela confusão tão presente na comunicação e na arte orientadas pelo mercado, entre a arte e o entretenimento. Muitas vezes, a cura vai provocar dor e sofrimento, e a arte é assim. A arte provoca uma cura simultânea de quem a produz e de quem a recebe, que acabam com o tempo e com o andar da história sendo mais ou menos a mesma coisa: vai se produzindo ciclicamente e se retroalimentando esses discursos. Para isso, serve todo esse movimento humano: para curar no mais amplo sentido”, destaca na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Demétrio Xavier em evento no IHU (Foto: João Vitor Santos | IHU)

Demétrio Xavier é um músico porto-alegrense, especializado na música crioula uruguaia e argentina. Atuando no Rio Grande do Sul e nos dois países platinos, ele pesquisa a obra do argentino Atahualpa Yupanqui, tendo traduzido e gravado seu poema maior: “O Pajador Perseguido”. Xavier é vencedor do Califórnia da Canção Nativa, festival de música gaúcha, em 2009, com poema musicado por Marco Aurélio Vasconcellos, “A Sanga do Pedro Lira”. Na FM Cultura de Porto Alegre e na TVE, ele conduzia o programa Cantos do Sul da Terra, dedicado à música e à literatura do sul do continente e indicado, em 2012, para o Prêmio Press.

Confira a entrevista.

IHU – Pode explicar como surgiu o programa Cantos do Sul da Terra? Era um programa apenas na FM Cultura e, depois, migrou para a TV. Como foi esse processo?

Demétrio Xavier – Quando eu tinha 25 anos, em 1991, foi assinado o Tratado de Assunção, de criação do Mercosul. Estava muito na moda, embora não se soubesse para qual lado iria exatamente – ainda não se sabe – a ideia do Mercosul, da integração. Isso, para mim, era muito importante, eu sempre fui um intérprete de música hispano-americana, sobretudo platina e chilena. E era muito difícil a aceitação disso.

Comecei profissionalmente como músico na noite, aos 19 anos de idade, mas já tocava essas músicas anteriormente. Eu tinha esse sentido integrativo que mantenho até hoje, que é mais ainda no sentido integrado. Eu trabalho mental, emocional e conceitualmente com a ideia de território comum. Por isso, mesmo que seja feito com muito boa vontade, oponho-me à ideia de intercâmbio. Intercâmbio você pode fazer com outro planeta, com um mundo mais diferente. Mandar coisas daqui e receber coisas de lá; é interessante que as coisas se aproximem, que haja diálogo e interação. Mas quando eu canto uma música argentina, quando leio um autor chileno, estou lendo gente nossa, estou cantando gente nossa. Eu estou trabalhando com uma ideia superior a essa, que é a ideia de um território comum. É superior e, em certa medida, anterior: anterior aos conceitos de nacionalidade, às formas como foram trabalhados etc.

Eu costumo dizer, do ponto de vista mais utópico, que gostaria que uma pessoa lesse Mário Quintana ou Carlos Drummond e tivesse orgulho. Não simplesmente se sentisse identificado, mas que tivesse orgulho como se estivesse lendo o vizinho e pensasse: “Poxa, como nós somos bons”. E assim lido com os grandes uruguaios, argentinos, chilenos, a partir desse ponto de vista. Isso está nos Cantos do Sul da Terra hoje.

Mas, vamos voltar a essa trajetória. Naquela ocasião eu bolei, pedindo ajuda para pessoas que eram do ramo, um projeto de programa de rádio que se chamaria Tekoah. Integração do ConeSul – eu não gosto hoje da expressão ConeSul porque está muito associada às ditaduras dessa parte do continente. Com esse nome, procurei direto a FM Cultura, que tinha dois anos de vida – a emissora é de 1989. Gostaram muito, à época gravei um piloto, fiz entrevista com o secretário de Cultura do RS Luiz Paulo Pilla Vares, que era meu vizinho, com um argentino que trabalhava música aqui. Nesse projeto piloto havia música, entrevista e a trilha era a Chacarera La Equívoca, que é a trilha do Cantos até hoje. Na ocasião não deu muito certo. Embora tenham gostado muito, a ideia não progrediu. Eu ofereci para algumas rádios comerciais e em algum momento uma rádio “bateu o martelo” e aceitou. Eu só esqueci uma coisa: “Eu não li aqui no teu material, tu és radialista ou jornalista?” Eu era um estudante de Ciências Sociais e músico. Por uma má coincidência, naquele momento não havia curso de radialista com matrícula aberta. Daí eu deixei a ideia um pouco de lado e, em seguida, fui chamado no Tribunal de Justiça, onde sou lotado desde 1993. Essa ideia ficou esquecida por um bom tempo.

Em 2010, com a eleição do Tarso Genro, eu batalhei internamente no Tribunal e pedi transferência para a Secretaria de Cultura. Fui lotado no Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, onde fiquei alguns meses, e em seguida propus, na FM Cultura, um programa de rádio – as emissoras da então Fundação Piratini pertenciam à Secretaria de Cultura. Eu tive o capricho de manter a mesma trilha, a Chacarera La Equívoca, e bolei esse conceito do Cantos do Sul da Terra, que estava muito menos preso a uma ideia de integração no sentido comercial ou político, não era mais essa a questão, eu já era uma pessoa bastante mais conhecida como uma referência nesse estilo de música. E agreguei a literatura e a história ao Cantos, que pretende ser um programa não acadêmico, como eu não sou, mas que está aberto a tudo, dentro de uma forte noção de territorialidade, de epicentro aqui no Sul do nosso continente, trazemos coisas do mundo inteiro que consideramos nos dizer respeito. O próprio desenho geográfico do Sul da Terra, também é algo que procura ter uma liberdade muito grande.

Assim nasceu o Cantos do Sul da Terra: um servidor público cedido. Essa cedência precisa ser renovada a cada ano. Com as atitudes do governo José Ivo Sartori para com as fundações [o ex-governador extinguiu as Fundações estatais], em 2018, eu saí por decisão minha. Eu retornei, porque o governo Eduardo Leite disse que iria cessar a extinção, deixou voltarem colegas meus do quadro que eram fundamentais na grade das emissoras. Então me ofereci e consegui voltar, cedido em 2022. Assim, estive com o Cantos do Sul da Terra no ar de 2011 a 2018 e retornei no meio de 2022. Ao retornar, esse governo me pediu que fizesse uma versão televisiva. Eu hesitei muito – não tenho experiência –, mas insistiram muito e parecia algo que condicionava a minha cedência e fiz o mesmo Cantos do Sul da Terra para a TV, que hoje adoro fazer. E principalmente, o que interessa quando são emissoras públicas, as pessoas gostam e dão retorno.

IHU – O “Sul da Terra” não é uma fronteira estatal demarcada pelos limites dos estados; é, ao mesmo tempo, menos e mais do que isso. Afinal, o que é o Sul da Terra? Que cantos ecoam por essas bandas?

Demétrio Xavier – Essa pergunta é excelente porque permite falar sobre o conceito do Cantos de maneira bem pontual. Embora cada vez mais acredite que quem pode dizer o que é o Cantos é o ouvinte ou o espectador. Isso parece demagógico, mas não é; trata-se de uma experiência. Comecei a ser parado na rua por pessoas que me dizem coisas que sentem e entendem com o Cantos do Sul da Terra que eu jamais conseguiria dizer. Isso é uma sensação muito bacana de dever cumprido e por isso também de que é uma construção coletiva. Insisto sempre com isso ao microfone e na televisão também.

A questão territorial é muito importante para o Rio Grande do Sul. O estado vive uma hegemonia simbólica de uma das suas muitas identidades possíveis de serem referidas, que é o gaúcho no sentido tradicional. Isso é hegemonia sobre todos os aspectos porque foram hegemonias políticas e econômicas que construíram essa referência, hegemonias simbólicas, como na mídia, por exemplo, que consolidaram e cimentaram essa ideia. Então, ficamos em algo muito circunscrito, e um personagem específico dentre tantos aqui, desse pedaço de um imenso país, “dá conta” – não dá, mas é como se desse – do nosso universo simbólico.

A questão territorial é muito importante. As pessoas que gostam das coisas populares, tradicionais ou não, campeiras ou não, quando se dão conta de que isso pode pertencer a um ambiente muito maior, elas se sentem muito recompensadas. Muita gente estava cansada do discurso gauchês e dizem que as fiz relembrar do afeto, de coisas da infância, das suas origens, que estavam de lado porque não acreditavam que essa hegemonia simbólica não as representava.

O que acontece com o Canto do Sul da Terra é que esse território é todo aberto. A fantasia que podíamos ter é a do tempo em que as pessoas vagavam por aí sem a consciência das fronteiras, porque estavam por ser consolidadas, ou, antes disso, quando se tratava dos povos originários. Por razões econômicas e políticas, sempre fomos povos que se moveram muito – pelo contrabando, pela guerra, pela fuga ou tropeirismo.

Portanto, vamos ocupando um espaço comum e amplo, mas do ponto de vista simbólico e político o Cantos quer ser ainda mais amplo, porque o Cantos não quer ter nenhum pudor em trazer um filósofo do Oriente do mundo ou um pensador europeu ou um músico, poetas de todas as partes, desde que se considere [relevante] – isso tem a ver com meu conceito, é um programa muito autoral. E também da minha sensibilidade de perceber o que funciona coletivamente e na minha curadoria. Eu procuro que estejam presentes as coisas que nos dizem respeito – isso é fundamental. Nesse sentido, sou um costureiro, um cara que tece rede e vou buscando coisas que podem nos dizer respeito e vou propondo isso para as pessoas. Ao mesmo tempo, existe um forte núcleo territorial sim, que para mim é o Sul do Continente Sul-americano. Há um epicentro rio-platense, incluído o Rio Grande do Sul, porque o RS está presente no ambiente rio-platense, inclusive do ponto de vista hidrográfico, que é o que dá o conceito de platino, o rio-platense. O rio Uruguai é um dos tributários da Bacia do Prata e nasce no norte do estado gaúcho, com o nome de Pelotas e nos divide da Argentina, por exemplo. Esse é só um detalhe geográfico.

A questão é que somos, sob vários aspectos, rio-platenses. Então, estamos à vontade para a abertura desse território, mas temos um epicentro reconhecido. Ele tem que ser reconhecido para fazer sentido esse discurso: nós somos amplos, mas somos nós; nós somos plurais e receptivos, mas somos nós; somos como somos, todos. Não há uma maneira só de ser, absolutamente não há. Isso é fundamental no Cantos do Sul da Terra.

IHU – Cantos do Sul da Terra cumpre um papel importante quanto à memória da cultura, da arte e da música, não somente no Rio Grande do Sul, mas na América Latina também. Ao longo desses anos todos, como o programa cumpriu esse papel?

Demétrio Xavier – A única coisa que pode validar esse trabalho, principalmente por serem emissoras públicas, mas também por ser um conceito meu, é o retorno das pessoas. O retorno é belíssimo e constante. Encho a boca para dizer isso, espero não parecer arrogante. Agora, com cerca de dois anos de programa na TV, estou emocionado com o fato de que a TVE chegue às classes mais populares. Talvez porque a classe média migrou para a TV cabo ou streamings, hoje há uma ocupação desse espaço da TV aberta para uma classe extremamente popular. Pode parecer preconceituoso dar exemplos, mas no interior, nas cidades pequenas, em um supermercado popular recebo retorno das pessoas, como também em uma feira, em que uma família de assentados, extremamente singela no sentido da educação formal, vem me falar sobre o programa. Mas não é aquele “eu te vi na TV”, mas vem falar sobre o conteúdo, sobre as entrevistas. O papeleiro, da Vila dos Papeleiros, que passa na rua onde moro, fala das entrevistas que ele e a mulher não perdem.

A TV tem essa força de entregar para as pessoas essa memória, trazer uma referência que não estava suficientemente representada, na opinião delas, em outros espaços de cultura e comunicação. Com a rádio, isso sempre aconteceu, mas a rádio atinge uma camada que se beneficiou mais do ensino formal, que tem mais “confortos culturais”, que tem mais acesso. Mas as pessoas se sentem representadas também por encontrarem a referência e a reverência a personagens que costumam ser invisibilizados ou pouco visibilizados, do ponto de vista étnico e de gênero.

Isso acontece também com a questão territorial. Que grande descoberta a existência de um espaço em que se celebra a nossa condição fronteiriça, porque a fronteira não é aquela linha lá do mapa ou onde tem os marcos, claro que ali é uma forma específica de ser e de viver, mas todos nós, num imenso território desse pedaço de mundo, somos marcados pela condição de fronteira, pelo encontro (no sentido mais harmonioso) e pela fricção (no sentido menos harmonioso) também entre idiomas, climas, fitogeografia, domínios políticos e grupos humanos. Somos fronteiriços até a raiz. Isso o Cantos consegue entregar como algo positivo e definitivo, no sentido de definir a nossa gente, a nossa forma de ser.

IHU – Como as culturas indígena, negra, colona e imigrante fizeram e fazem parte do seu programa? Qual a importância delas na constituição do Rio Grande do Sul?

Demétrio Xavier – Ainda que o Rio Grande do Sul, para nós, seja um epicentro quase contingencial, embora seja uma contingência muito forte – eu, criador, produtor e apresentador do programa sou gaúcho –, estamos no Rio Grande do Sul e, sobretudo, lidando com o público gaúcho nas emissoras do estado. Então, não haveria como não estar presente essa ideia epicêntrica do RS. Mas a nossa grande intenção é lidar com a ideia de um território muito mais amplo, mas circunscrito ao ponto de que possamos perceber e sentir com afeto, intimidade e naturalidade. Essa é a intenção do programa. Então, estamos falando de toda uma região e daquele direito que nos damos de trazer coisas que são de fora dessa região e que nos dizem respeito, por isso é um território muito incerto e isso dá uma beleza ao programa. Essa é a ideia de território que as pessoas mais ou menos definem.

O RS é muito importante para nós, assim como a afirmação dessa diversidade da nossa constituição como cultura e identidades, justamente pelo fato de que, muitas vezes, as manifestações regionais que procuram dar conta de uma ideia de identidade rio-grandense, de uma identidade gaúcha, não levam em conta essa diversidade e ficam faltando as referências dos povos originários e negras. Como, em grande parte, também há pouca representação da condição feminina e tentamos suprimir essas lacunas. É muito bom estar intencionado a isso, e fazer a nossa busca de textos e canções baseadas em nossa vontade, mas é necessário dizer que são gerações e muitíssimas décadas de produção cultural que costuma não dar conta dessa diversidade, é uma pesquisa necessária e muitas vezes difícil, essa busca daqueles bens culturais – poesia, literatura, prosa e música – que não pertencem a essa hegemonia, senso comum do que é algo gaúcho ou rio-grandense. Esse é um compromisso, é um compromisso do Cantos enquanto formador de público, como algo pertencente às ferramentas e aos equipamentos de educação da máquina do estado.

IHU – Quando assistimos a Cantos do Sul da Terra, recordamos dois outros grandes personagens da cultura popular brasileira e seus programas de TV: Inezita Barroso e Rolando Boldrin. O seu programa ocupa um espaço muito similar. Como Cantos do Sul da Terra continua o trabalho feito por esses artistas?

Demétrio Xavier – Essas associações, não vou dizer comparações porque soaria pretensioso (e que bom seria se fossem mesmo comparações), me honram profundamente. Estamos falando de duas figuras fundamentais dessa cultura popular, que já não é hegemônica por ser de terra a dentro, por sair um pouco do paradigma litorâneo costeiro brasileiro que costuma ser o que comanda, falando do ponto de vista da indústria cultural. Essa ideia de terra a dentro, sertaneja no sentido original da palavra, no sentido que cutucou no início do século XX, depois de viver a tragédia que viveu no fim século XIX, foi Euclides da Cunha, para escrever Os Sertões e falar sobre essa dicotomia, contradição, fricção entre litoral e interiores. Não me refiro à canção feita de forma industrial e fomentada com volumes altíssimos de dinheiro, bancada por interesses privados do agronegócio, que hoje se chama sertanejo nas suas poucas variedades; não é a isso que estou me referindo. Essas duas feras (a Inezita e o Boldrin) lidaram com um conceito de regional que me agrada muito.

É claro que no Rio Grande do Sul tudo seja assim, falo em um predomínio. No RS, nós recebemos muito a ideia de que o personagem do nosso interior, da nossa história e do nosso meio rural é algo muito heroico ligado à valentia, à coragem, à suficiência e às guerras e eu não consigo ver que o povo do interior do país consiga se identificar muito com essa fantasia, com um personagem tão fantasioso. A fantasia pode ser útil desse personagem mítico, mas ela não dá conta de uma verdadeira identificação, uma verdadeira troca, enquanto a forma como a música e o discurso que a Inezita e o Boldrin levavam, inclusive como cantores, é maravilhoso, é de algo muito mais próximo de uma verdade popular, rural, tradicional e ancestral brasileira.

Ainda que eu goste muito de trazer o urbano e causar até uma intriga nos ouvidos das pessoas, colocando os “pares de música”, “as juntas” com músicas muito diferentes, nunca faço juntas do mesmo pelo – estou falando das juntas de boi, as pessoas ainda gostam de fazer as juntas de boi do mesmo pelo para uma carreta, uma tração, para lavrar um campo. Eu, muitas vezes, prefiro trazer juntas muito diferentes, assim e que ouvimos algo supercontemporâneo e urbano e, depois, algo muito tradicional, fazendo com que naquele mesmo pedacinho de cerca de dez minutos que compreende duas músicas. Essa associação é a melhor possível, é algo que eu busco como referência, embora não fosse uma grande ouvinte do trabalho desses dois, eu os conheci muito bem e, inclusive, os dois frequentam o Cantos, catando ou contando algum causo. Em geral, nos levam a sua benção em alguma cevada de palavra ou com alguma canção do interior do Brasil.

IHU – O programa não traz só apresentações musicais, mas também escritores, atores e atrizes, artistas de outros segmentos. Como essa miríade é formada e quais os critérios para o convite desses personagens?

Demétrio Xavier – Esse é um outro ponto de honra do Cantos do Sul da Terra, que é fazer o encontro e a intersecção do canto propriamente dito, ainda que o nome traga um jogo de palavras com rincões do Sul da Terra. É claro que isso também está presente nesse título, mas a música tem um papel predominante especialmente no rádio. Mas é um ponto de honra desde o início que haja uma aproximação com outras formas artísticas, mas também com outras áreas de conhecimento de maneira muito livre, tendo aquela ideia convergente de coisas que nos digam respeito. Parece muito amplo mas é isso mesmo, essa é a ideia, é o critério de entrada ou não de algo ou alguém em pauta. O que nos ajudou muito a colocar esse tipo de proposta no ar foi o início do Cantos na televisão.

O Cantos na TVE é muito recente; se o Cantos rádio nasceu em setembro de 2011, é apenas em outubro de 2022 que ele entra na televisão. Essa foi uma exigência da administração do atual governo estadual. Eu retornei por um convite deste governo em 2022 e poucos meses depois, também por insistência desse governo – o que me deixou muito contente –, colocamos o Cantos do Sul da Terra na TV. Nessa versão televisiva, as grandes estrelas são nossos cantores e poetas, são os convidados. Costumam ser dois blocos, com dois ou mais convidados, mas de maneira geral o programa tem uma parte mais cevada de conversa e depois uma parte mais musical. Com isso, tivemos a oportunidade de levar pessoas ligadas às artes plásticas, à ecologia, à biologia, ao estudo da estatuária, como, por exemplo, Arnoldo Doberstein, e coisas ligadas à religiosidade. Conseguimos ter a palavra de pessoas que representam segmentos da sociedade e pontos de vista. Isso é muito legal e é mais um ponto de honra e dos elementos que constituem o interesse público.

IHU – A imagem do gaúcho nos últimos anos acabou sendo capturada por estratégias de marketing que buscam associá-lo ao agronegócio, à monocultura. A redução é grosseira e falsa. Contudo, quem é ou o que é o gaúcho, melhor ainda o gaucho, em sua expressão latina?

Demétrio Xavier – Quando tu dizes o “o gaúcho, melhor ainda o gaucho”, eu concordo com esse “melhor ainda” no sentido de que ele amplia e representa mais gente, por representar também o Uruguai e a Argentina, mas há que ter um cuidado – digo isso porque ninguém tem certeza, são teorias. Eu acredito que a palavra gaúcho veio antes da palavra gaucho. Há toda uma discussão filológica, etimológica e histórica. Gaúchos e gauchos são mais ou menos a mesma coisa, com especificidades, como dentro do território do Rio Grande do Sul há grandes especificidades.

No Rio Grande do Sul, criou-se um problemão a partir do momento em que se passou a usar, primeiro informalmente e depois formalmente, a palavra como gentile – ser nascido em território rio-grandense é suficiente para ser gaúcho. Isso cria uma confusão total: o que quer dizer música gaúcha quando se usa essa expressão? O que é comida gaúcha? Não está se falando de algo que siga a linha daquele antigo tipo social que foi o gaúcho, aquele indivíduo que surgiu do excesso de gado livre pelo campo e de cavalos, sobretudo para explorar aquele gado, em terras que eram sem divisas, em uma zona que não tinha fronteira precisa durante muito tempo.

Era uma sociedade colonial que produzia muita gente desertora, muitos filhos de ninguém, porque ser fidalgo era “ser filho de alguém” e havia os filhos de ninguém, os bastardos, os despossuídos, assim como houve uma minoria de aventureiros, que eram de famílias mais bem colocadas. Mesclados nesses grupos, os negros, sejam os que haviam escapados, os que estavam em quilombos, ou os negros livres, os que eram objetos de contrabando de escravos entre os países ou os que participaram das lutas de fronteira. E também alguns grupos de indígenas, principalmente depois que se destrói a experiência das missões, engrossaram muito esse grupo dos gauchos, dos caras que andavam pelo campo, livres, eventualmente saqueando, muito malfalados. A palavra gaúcho era uma ofensa.

Com o tempo começa a se dignificar e positivar essa palavra, o que costuma acontecer nesse processo sociolinguístico, principalmente quando o personagem não está existindo, já não seria problemático “encher a bola dele”, por determinados movimentos culturais e políticos. Isso acontece na Argentina, no Uruguai e no Rio Grande do Sul, com especificidades em cada país.

Talvez se possa buscar um gaúcho em um habitante da Campanha, que ainda vive de forma externamente parecida, embora inserido na Estância e em um ambiente contemporâneo, capitalista e em um mundo pós-moderno. Ainda se pode buscar essa linhagem, mas sempre vai haver confusão no Rio Grande do Sul com essa história de que ser rio-grandense é também ser gaúcho. Reduções grosseiras e falsas não faltaram, sempre houve, com sentido político e por várias razões, nos três países. Talvez seja mais notável no Rio Grande do Sul um movimento organizado, mas ele existe nos três países, na simbolização mítica desse personagem ou aproveitamento desse personagem para discursos oligárquicos, de elite ou de hegemonia. Eu pessoalmente acredito nisso todo ao contrário.

Creio que buscarmos naqueles personagens lá dos campos livres indivisos, aquele que era desertor e fugia da sociedade colonial e constituía os grupos pelos campos, talvez fossem os grandes campeões de diversidade, porque eram pessoas capazes e falar todos os idiomas daquela região – não estou falando apenas de espanhol e português, mas de todos os idiomas indígenas e africanos, inclusive se entender com algum pirata francês que entrasse pelo Rio da Prata, por exemplo, ou de outras nacionalidades, pois registros disso não faltam.

Esse personagem lidava com tudo isso. Ele não quis saber da dureza ou da rigidez da sociedade colonial. Talvez ele seja um grande exemplo, talvez um pouco perdido nesse aspecto, de alguém libertário, vivendo de forma alternativa. Se isso é contemplado na construção majoritária que se faz do gaúcho, certamente não. Essa falsificação existe, tem seus formatos e interesses em cada época. Embora não seja nossa cruzada excessiva, um pouco é nosso papel, pelas mesmas razões de verdade histórica, de sentido educativo e de formação de público, desmistificar tudo isso.

IHU – Como a poesia e a música ampliam o mundo, abrem flancos, veredas, alargam e dão sentido à vida? De que forma a arte vivifica a vida?

Demétrio Xavier –

Cuando sentí una alegría
Cuando un dolor me golpió
Cuando una duda mordió
Mi corazón de paisano
Desde el fondo de los llanos
Vino un canto y me curó

Essa estilha do Atahualpa Yupanqui, em El Payador Perseguido, responde isso e gosto de tomar de maneira mais ampla duas palavras que estão no último verso: o canto e o curar. Eu gosto da palavra canto como “os discursos”, discursos também da arte e da literatura. Nosso programa também gosta que o canto tenha essa amplitude toda. Estou falando em literatura e em outras possibilidades de discurso artístico.

O curar eu gosto de tomar no sentido indígena, em que a cura é a solução ou o tratar e cuidar qualquer coisa, não é algo necessariamente clínico ou algo necessariamente voltado à saúde física, como essa palavra surge para nós ocidentais. Para os povos originários, curam-se o tempo, a terra, o planeta, a humanidade, enfim, a alma dos bichos, das coisas, da vida e da paisagem. E essa cura, um canto cura. Todas essas manifestações funcionam assim.

Isso serve para lembrarmos que essa cura não é necessariamente balsâmica, que cessa a dor ou o que dá alegria, para não fazermos aquela confusão tão presente na comunicação e na arte orientadas pelo mercado, entre a arte e o entretenimento. Muitas vezes, a cura vai provocar dor e sofrimento, e a arte é assim. A arte provoca uma cura simultânea de quem a produz e de quem a recebe, que acabam com o tempo e com o andar da história sendo mais ou menos a mesma coisa: vai se produzindo ciclicamente e se retroalimentando esses discursos. Para isso, serve todo esse movimento humano: para curar no mais amplo sentido.

IHU – Qual a importância de compreender as expressões artísticas como patrimônios imateriais, mas essenciais para a preservação da cultura e das identidades de uma população, como já dissemos, que transcendem as fronteiras geopolíticas?

Demétrio Xavier – A principal importância dessa noção e responsabilidade, e esse conceito de patrimônio imaterial é extremamente útil para isso, é evitar que essas manifestações sejam apropriadas por alguém por algum interesse e adaptadas a esses interesses quando são hegemônicos – no sentido da distribuição do poder em nossas sociedades, que nas nossas sociedades não é justa, equânime. Essa hegemonia que pode e faz, a miúde, com frequência, apropriar-se dessas manifestações e usá-las pervertendo, subvertendo e desrespeitando a origem e o sentido – esse é um risco.

O outro risco é o apagamento, que é outra prática do poder opressor, arbitrário, injusto, não isonômico, não equânime. Então, é preciso zelar por esse tipo de manifestação como patrimônio. Embora gostemos desse sentido coletivo das coisas, o patrimônio passa por essa ideia que lembra uma frase alegórica e pouco improvável para um indígena, “essa terra tem dono”, do Sepé Tiaraju. O Sepé Tiaraju já era multicultural, falava latim e espanhol e tinha um cargo de corregedor nas missões, é até possível que tenha dito isso. Um indígena jamais diria isso, pois nunca conseguiria entender esse negócio de ser dono da terra.

Esse tipo de pertencimento, essa ideia de patrimônio, para nossa cultura e entendimento, é uma bela defesa do nosso universo de manifestações artísticas, populares e espontâneas que dizem respeito às nossas demandas, inquietudes e necessidades para que elas não sejam apropriadas, conspurcadas e apagadas. Portanto, é um ponto de vista fundamental.

Leia mais