Para o professor e pesquisador italiano com formação na França, a vitória de Macron só foi possível porque ele conseguiu manter um centro político democrático e republicano, desafio que se estende por outros quadrantes globais
Quando se olha hoje para as Olimpíadas de Paris, evento que valoriza a disputa leal e o mais altruísta espírito esportivo, não se imagina o risco de retrocesso civilizatório que o país vivenciou há cerca de um mês. Emmanuel Macron, presidente francês, precisou mobilizar uma coalizão de partidos mais alinhados à esquerda e centro-esquerda para derrotar o avanço da direita radical, capitaneada por Marine Le Pen. “O desafio que hoje está colocado na França, para enfrentar de maneira consistente a ameaça de um governo de extrema-direita, é voltar a um regime parlamentar, implementando um sistema eleitoral proporcional (mais parecido com o que vigora na Itália)”, explica Giuseppe Cocco, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A tarefa foi difícil para o chefe presidencial francês. E isso se deve à impopularidade de suas decisões recentes no governo. “Macron conduziu uma reforma das aposentadorias muito contestada com grandes manifestações de rua extremamente violentas. Mas na hora da votação ele teve que usar o artigo 49.3 da Constituição para evitar uma derrota no parlamento”, descreve Cocco. “Esse artigo 49.3 permite ao governo fazer passar uma lei sem recorrer ao parlamento. Em função disso, Macron foi acusado de protagonizar uma virada autoritária e até de abrir o caminho aos fascistas”, complementa.
O resultado final foi considerado uma reviravolta, que pegou até mesmo a direita de surpresa, que planejava melhor sorte. “Macron conseguiu dar a volta por cima. Aquilo que quase ninguém esperava que ele conseguisse fazer. Ele conseguiu manter um centro político democrático e republicano que em outros países implodiu ou ficou hegemonizado pela direita radical: nos Estados Unidos, onde Trump tomou conta do Partido Republicano, no Brasil onde o centro desapareceu diante da emergência do bolsonarismo, na Itália onde o centro ficou diluído em uma coalizão dominada pela extrema-direita de Giorgia Meloni”, ressalta Cocco.
Giuseppe Cocco | Foto: Acervo IHU
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e é editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Entre outros livros, publicou: New Neoliberalism and the Other: Biopower, Antropophagy and Living Money (Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava, Entre cinismo e fascismo (Autografia, 2019), Dopo la marea (Derive e Approdi, 2021) e, em parceria com Bárbara Szaniecki, O making da metrópole: rios, ritmos e algoritmos (Rio BOOKS, 2021).
IHU – Para que possamos compreender melhor as recentes eleições realizadas na França, eu gostaria que o senhor explicasse o papel do premier (primeiro-ministro) e do presidente, cargo ocupado por Emmanuel Macron?
Giuseppe Cocco – A França é uma república presidencial no marco da constituição dita da Cinquième République (instaurada por De Gaulle em 1958 depois que a quarta República, instaurada em 1946, tinha se tornado ingovernável no marco das guerras coloniais).
A eleição do presidente é direta e em dois turnos, como no Brasil. Mas na França o Parlamento (a Assemblée Nationale) também é eleito segundo uma regra majoritária em dois turnos. O poder executivo é constituído pelo próprio presidente e um primeiro-ministro – nomeado pelo presidente – que é o chefe de governo e precisa de uma maioria no parlamento para fazer passar suas leis, fazer aprovar o orçamento etc. Em geral, o primeiro-ministro é oriundo da maioria presidencial. Mas há casos em que a maioria parlamentar acaba nas mãos da oposição e isso gera uma situação dita de “coabitação”: o presidente e o primeiro-ministro não sendo da mesma orientação política.
Isso aconteceu, por exemplo, entre 1986 e 1998 quando o presidente socialista (François Mitterand) teve que nomear primeiro-ministro o gaullista Jacques Chirac e depois, quando o próprio Chirac que tinha se tornado presidente precisou nomear o socialista Lionel Jospin como primeiro-ministro (entre 1997 e 2002). Teoricamente, o presidente guarda o controle sobre a política externa e da defesa.
A Cinquième Republique marcou a ruptura com o regime parlamentar, deslocando o poder do lado do executivo. Macron usou desse poder para apostar numa reversão do resultado das eleições europeias com a dissolução do parlamento e a convocação de eleições-relâmpago. Paradoxalmente, o desafio que hoje está colocado na França, para enfrentar de maneira consistente a ameaça de um governo de extrema-direita, é voltar a um regime parlamentar, implementando um sistema eleitoral proporcional (mais parecido com o que vigora na Itália).
IHU – Como foi possível a virada?
Giuseppe Cocco – Inicialmente é preciso lembrar a situação da presidência Macron antes dessas reviravoltas. Tendo sido reeleito em 2022 com quase 60% dos votos no segundo turno, ele dispunha de uma maioria apenas relativa no parlamento. Marine Le Pen, da extrema-direita, tinha representado a oposição no segundo turno pela segunda vez (já tinha acontecido em 2017) e totalizado mais de 40% dos votos. Isso lhe permitiu formar um governo (nomeando como primeira-ministra Elisabeth Borne) fraco que dependia da divisão da oposição entre, por um lado, a frente de esquerda (NUPES: Nouvelle Union Populaire et Écologiste), hegemonizada pela figura carismática e nada democrática de Jean-Luc Mélenchon, e, por outro, o Rassemblement National (RN) de Marine Le Pen.
Apesar dessa fraqueza, Macron conduziu uma reforma das aposentadorias muito contestada com grandes manifestações de rua extremamente violentas. Mas na hora da votação ele teve que usar o artigo 49.3 da Constituição para evitar uma derrota no parlamento diante da possibilidade que os votos das oposições se juntassem (pois a NUPES e o RN eram e são contra a reforma). Esse artigo 49.3 permite ao governo fazer passar uma lei sem recorrer ao parlamento na medida que o voto contrário não exprime uma nova maioria, mas apenas uma convergência pontual e oportunista que não se traduziria em um novo governo. Em função disso, Macron foi acusado de protagonizar uma virada autoritária e até de abrir o caminho aos fascistas.
Com efeito, ao mesmo tempo que houve uma dédiabolisation do partido de extrema-direita (o Rassemblement National conduzido por Marine Le Pen) houve uma diabolisation paradoxal do Macron, alimentada pelos espectros opostos do campo político: a extrema-direita e a esquerda hegemonizada por Jean-Luc Mélenchon e sua formação política, La France Insoumise (LFI). Os fascistas acusam Macron por suas políticas migratórias, a esquerda o acusa de querer se aliar à extrema-direita, inclusive com a reforma da lei de imigração promovida por seu ministro do interior (Gérald Darmanin, chefe da ala direita do “macronisme”). O paradoxo não está apenas na convergência de críticas opostas, mas no fato que na realidade é a esquerda “mélanchonista” (o LFI) que converge nas posições de extrema-direita: como vimos, na questão das aposentadorias, mas também diante da invasão russa da Ucrânia. A esquerda mélenchonista e a extrema-direita se opõem ao apoio militar da França à resistência ucraniana e se opõem também à participação da França na OTAN.
Enquanto isso, o Rassemblement National se preparou para as eleições europeias juntando todas suas componentes, marginalizando a coalizão ainda mais radical de Éric Zemmour e colocando como presidente do partido um político muito jovem, Jordan Bardella, de apenas 28 anos, com as aparências de “bom moço”. Ao contrário, a esquerda chegou dividida, tendo a experiência da aliança que tinha permitido um excelente resultado nas legislativas de (2022) se fragmentado em quatro listas independentes: a LFI de Mélenchon, os Verdes, o bloco constituído pelo que resta do Partido Socialista e o movimento Place Publique (dirigido por Raphael Glucksmann) e enfim o Partido Comunista. A fragmentação sendo permitida também pelo mecanismo proporcional das eleições europeias.
Diante desse cenário, Macron começou pela reorganização de seu governo: no lugar de Elisabeth Borne (esgotada pelos conflitos em torno da reforma das aposentadorias, apesar de ela ser da ala esquerda do “macronismo”) ele nomeou um jovem deputado (Gabriel Attal, de 34 anos). Assim, à imagem de Bardella ele opôs aquela de um outro jovem emergente, mas de um que reivindica abertamente sua homossexualidade e suas origens judaicas. Mas essa não era sua única “jogada”. Como sabemos, no dia 9 de junho, logo depois do resultado das eleições europeias (nas quais o RN chegou em primeiro lugar e o macronismo em último), Macron anunciou duas medidas muito fortes e inesperadas: em primeiro lugar a dissolução do parlamento (francês) e em segundo lugar a convocação de novas eleições legislativas em um lapso de tempo extremamente curto de somente 20 dias: o primeiro turno sendo convocado com um lapso de 21 dias (para o 30 de junho) e o segundo para a semana seguinte (7 de julho).
A iniciativa de Macron se tornou imediatamente o centro de um debate político extremamente concitado. Apesar da violência e negatividade das avaliações e interpretações da “mexida”, o primeiro resultado foi que, ao invés de se focar na vitória relativa da extrema-direita nas eleições europeias, os comentários políticos foram se deslocando, por um lado, sobre o sentido da dissolução tão rápida e das eleições relâmpago, e pelo outro, nas operações e manobras que as diferentes forças políticas tiveram que fazer na correria para se preparar a uma eleição legislativa que não tinham previsto. Como dissemos, os comentários eram ácidos e convergiam mais ou menos em todos os setores políticos em dizer que Macron tinha apostado tudo, como um irresponsável jogador de poker.
Na esquerda se dizia que Macron tinha dissolvido para abrir o caminho ao governo à direita de Bardella. Outros diziam que na realidade ele dissolveu não apenas o parlamento, mas o próprio macronismo. A edição de julho de Le Monde Diplomatique titulava: “France, de la crise au chaos politique” [França, da crise ao caos político].
O fato é que, convocando novas eleições, não apenas Macron deslocava o debate eleitoral do marco europeu para aquele nacional (francês), mas sobretudo de um procedimento eleitoral ao um outro radicalmente diferente: ao passo que as europeias são eleições proporcionais em um turno, aquelas francesas são majoritárias em dois turnos, permitindo a todo candidato tendo superado 12,5% em sua circunscrição eleitoral de disputar o segundo turno. Sem entrar em todos os detalhes técnicos, o que interessa aqui é que o segundo turno das legislativas não é automaticamente entre os dois candidatos que chegaram na frente, mas pode ser entre três ou até quatro. A redução do segundo turno a uma série de duelos entre dois candidatos não é decidida automaticamente pelo resultado eleitoral (como nas eleições presidenciais brasileiras, por exemplo), mas depende do funcionamento de um sistema de desistências que produzam – ou não – esses duelos.
Diante da nova situação, a esquerda respondeu se juntando em uma nova frente. Já na noite do 9 de junho, uma manifestação na Praça da République chamava pela formação de um Nouveau Front Populaire (NFP). Se a referência histórica era ao Front Populaire que, em 1936 tinha ganho as eleições e governado a França até 1938, a urgência era de paliar à fragmentação da NUPES e à perda de hegemonia por parte de Mélenchon sobre a esquerda: nas europeias, a vitória relativa – 13,7% – foi para a coalizão entre o PS e Place Publique de Glucksmann ao passo que LFI ficou um pouco abaixo de 10% (9,89%), os ecologistas fizeram 5,5% e os comunistas 2,5%. Nos poucos dias à disposição para as negociações, a distribuição das candidaturas foi bem favorável ao Parti Socialiste-Place Publique (confirmando a perda de hegemonia de LFI). Isso apareceu no nível do programa de governo: em frente a um certo maximalismo econômico (anulação da reforma das aposentadorias), o NFP reconhecia a necessidade de apoiar a resistência ucraniana e – além de cobrar uma solução pacífica na guerra em Gaza – condenava sem ambiguidades o Hamas pelo massacre de civis no dia 7 de outubro de 2023.
Do outro lado, a direita gaullista (Les Républicains, LR) formulava os comentários mais violentos, veiculados particularmente no jornal Le Figaro contra a decisão de Macron. A razão desse incômodo se explicitava no dia 11 de junho, quando o presidente do partido, Éric Ciotti, chamava a uma aliança com os fascistas, mergulhando os gaullistas numa crise com acentos folclóricos: depois de sua expulsão, Ciotti se recusando a entregar as chaves da sede central do partido.
Durante a rápida campanha eleitoral, Macron usou termos muito fortes sobre o perigo que o RN nacional representa para a democracia e para a França, mas não deixou de denunciar também a esquerda mélanchonista, usando a retórica dos “opostos extremismos”.
O resultado do primeiro turno, no dia 30 de junho, parecia confirmar as previsões mais pessimistas sobre a aposta do presidente. O RN chegava em primeiro (com 29,5% dos votos expressos) o NFP em segundo com 27,99%), a coalizão macronista (Ensemble) em terceiro com 20,04%) e Les Républicains bem atrás com 6,57%. A taxa de abstenção despencou de 52,49% (em 2022) e 51,29% em 2017) para 33, 19%. Isso parecia confirmar o resultado das [eleições] europeias e a dissolução ser um “tiro no pé”. Só que esse era apenas um ensaio que dessa vez precisava ser transformado para que a maioria relativa se tornasse absoluta, distrito por distrito. Com um prazo de apenas dois dias (até o 2 de julho às 18h), as coalizões precisavam decidir se mantinham todos seus candidatos, inclusive nas posições desfavoráveis onde podiam favorecer a eleição do “pior”. Ao passo que o RN ficou sozinho (apenas com Ciotti e poucos outros), o NFP e Macron chamaram para constituir a frente republicana, quer dizer a se desistir em todas as triangulares para favorecer o mais bem colocado para derrotar o candidato do RN: a esquerda apoiando o centro (inclusive o centro-direita) e vice-versa, em função dos casos.
O mecanismo de inversão do resultado foi o funcionamento da frente republicana e democrática e não a resiliência dos diferentes campos. Eis que o RN chega em terceiro lugar e passa de vencedor das [eleições] europeias a perdedor das legislativas, atrás da coalizão presidencial (que chegou em segundo lugar) e da esquerda (o NFP) que chegou em primeiro. Até Les républicains (os gaullistas remanescentes) conseguiram um escore razoável. Isso com uma grande participação ao voto, a maior desde 1997.
Macron conseguiu dar a volta por cima. Aquilo que quase ninguém esperava que ele conseguisse fazer. Ele conseguiu manter um centro político democrático e republicano que em outros países implodiu ou ficou hegemonizado pela direita radical: nos Estados Unidos, onde Trump tomou conta do Partido Republicano, no Brasil onde o centro desapareceu diante da emergência do bolsonarismo, na Itália onde o centro ficou diluído em uma coalizão dominada pela extrema-direita de Giorgia Meloni. Essa implosão é o primeiro passo rumo à consolidação majoritária dos sucessos eleitorais da extrema-direita. Ora, essa implosão é fruto de uma polarização política que é alimentada também por determinadas derivas da esquerda. Paradoxalmente, essas derivas da esquerda não são o fato do “esquerdismo” (em suas diferentes vertentes mais ou menos revolucionárias, trotskistas anarquistas, autônomas ou “de movimento”), mas de setores hegemônicos, altamente burocratizados da esquerda institucional, da esquerda como projeto de partido-estado: no Partido Trabalhista inglês tinha sido o caso da gestão de Jeremy Corbin; na Argentina foi o caso do kirchenerismo; no Brasil se trata de aparelhos que gravitam em torno do lulismo senão do próprio PT; na França isso diz respeito a setores que antes estavam no Partido Socialista (a começar pelo próprio Jean-Luc Mélenchon).
IHU – O que significou esta virada contra a direita radical capitaneada por Marine Le Pen, cujas projeções eram de vitória para o parlamento?
Giuseppe Cocco – Essa virada tem muitos significados, todos extremamente importantes e que ao mesmo tempo continuam sendo objeto de uma disputa acirrada. Muito vai depender do tipo de governo que o Macron vai conseguir montar. Montagem que por enquanto está num impasse. O impasse tem essa forma: ao passo que Macron – a nosso ver – afirma que a vitória foi da Frente Republicana (que dispõe de uma maioria absoluta), a esquerda, sobretudo mélenchonista, diz que a vitória foi do Nouveau Front Populaire (que dispõe de uma maioria bem relativa). É claro que Mélenchon está olhando para as próximas eleições presidenciais (em 2027 a não ser que Macron saia antes) e não para a governabilidade atual.
Nos concentraremos em suas duas principais dimensões do resultado: a primeira é o sucesso do esforço para impedir a chegada da extrema-direita (o Rassemblement National de Marine Le Pen e Jordan Bardella) ao governo; a segunda é a confirmação que as ameaças à democracia aparecem claramente como sendo o fruto de uma dupla deriva na qual a emergência da extrema-direita – ou o novo tipo de fascismo – é, sim, o fenômeno principal (e global), mas setores da esquerda desempenham um papel não desprezível e muito preocupante.
Em primeiro lugar, para entender a importância da virada que o presidente Emmanuel Macron conseguiu promover e realizar, precisamos lembrar quais seriam as consequências de um governo de extrema direita na França: sem contar os dramáticos aprofundamentos de todos os conflitos sociais internos, e particularmente em torno da condição dos imigrantes e dos franceses oriundos das imigrações, haveria consequências muito ruins para a o projeto europeu e para a resistência ucraniana ao revanchismo imperialista russo. Com o cenário de uma possível vitória de Donald Trump e o consequente enfraquecimento do apoio à resistência ucraniana, o papel da França no dispositivo de segurança da União Europeia é fundamental. Se muita gente na esquerda brasileira e sul-americana olha com simpatia ao imperialismo russo, às vezes usando como desculpa uma retórica pacifista (“quando um não quer, dois não brigam”, declarou certa vez Lula), é preciso ter clareza que uma eventual vitória – mesmo parcial – da Rússia significaria a multiplicação dos conflitos no mundo todo (inclusive na América do Sul) e o aumento significativo dos riscos de uma grande conflagração global.
No Brasil, alguns observadores pensaram poder dizer que o partido de Marine Le Pen teria passado por algum processo de moderação e que não se pode mais considerá-lo como sendo de extrema-direita e ainda menos como fascista. Aliás, é curioso como há uma interdição a usar essa noção apesar das evidências diante das quais nos encontramos, inclusive de processos políticos e sociais que reproduzem – claro, em termos e situações diferentes – um verdadeiro fenômeno fascista, muito parecido com o que se afirmou na Europa na década de 1930. Diz-se então que o Rassemblement National teria até se tornado “gaullista”. O chefe do partido gaullista remanescente, Éric Ciotti, até tentou fazer uma aliança com os fascistas, mas foi desmentido pelo partido e expulso no meio de uma série de episódios folclóricos sobre o controle das chaves da sede central do partido (LR).
Em segundo lugar, como dissemos, a virada torna explícita e visível a deriva – que não é de hoje – que atravessa a esquerda francesa. Essa deriva não é especificamente francesa, nós a encontramos em todos os países ocidentais e também latino-americanos. Podemos resumi-la em alguns traços: primeiramente, ao invés de responder aos enigmas da crítica material (reformista ou radical, pouco importa) do capitalismo enquanto relação que se constitui entre processos de emancipação e novas formas de exploração, produz-se uma retórica em torno do “neoliberalismo” e do “capital financeiro”; em seguida, desloca-se a questão dos direitos do terreno de sua produção para aquele meramente moral de sua existência formal e identitária; enfim, no campo internacional, renova-se a infâmia da esquerda comunista diante do pacto entre Hitler e Stalin (Ribbentrop-Molotov) de 1938 que tinha aberto as portas do inferno, o início da Segunda Guerra Mundial: dessa vez a esquerda mundial e sobretudo latino-americana pisca o olho desinibida para o eixo fascista russo-chinês que inclui até o fundamentalismo religioso do Irã e do Hamas e a bizarra dinastia neomedieval norte-coreana.
Essas posições não seriam nenhuma novidade numa esquerda sectária e marginal. Mas, desde a crise financeira de 2008 e aquela da dívida soberana (de 2010), esses regimes discursivos encontraram o modo de se tornarem majoritários ou hegemônicos dentro de setores expressivos da esquerda. Dono de uma passagem relâmpago e fracassada no governo de Syriza na Grécia, o ex-ministro da economia se tornou o megafone dessa restauração ideológica da esquerda em torno da crítica do neoliberalismo. Isso se desdobrou com a virada neodesenvolvimentista da Dilma no Brasil e a ascensão do Jeremy Corbin dentro do Partido Trabalhista: nos dois casos foi um desastre. No Brasil isso levou ao impeachment, no Reino Unido barrou a possibilidade de o Partido Trabalhista ganhar as eleições até a sua reformulação atual. Na França, essa retórica se afirmou com a hegemonia de Jean-Luc Mélenchon (e de sua formação política pessoal, La France Insoumise) sobre a esquerda. Uma dinâmica carismática cuja dialética é hoje bem clara: quanto mais as ambições pessoais de Mélenchon tornar-se candidato competitivo nas eleições presidenciais avançam, quanto menos a esquerda tem chance de voltar ao poder.
Muitos definem essa deriva da esquerda como sendo “populista”. O termo populismo talvez nos permita enfatizar que a complexidade de nossa condição, hoje, é de termos que enfrentar dois populismos ao mesmo tempo: um de extrema-direita e um de esquerda. E isso no meio de uma polarização desenfreada, que inflaciona o sentido das palavras e torna o debate político extremamente difícil senão impossível.
Contrariamente às aparências, esses dois “populismos” não estão sempre em posições “opostas” e o caso francês o mostra muito bem. Se as divergências sobre a questão das migrações se mantêm (com a esquerda recusando a diminuição dos fluxos e a direita ameaçando até os franceses com dupla nacionalidade), há convergência na recusa da reforma das aposentadorias assim como na oposição à ajuda militar à resistência ucraniana. Na França hoje, o partido de Mélenchon conseguiu emplacar dois vice-presidentes do Parlamento graças ao voto da bancada do RN. O próprio RN anunciou que votará o projeto de lei que a La France Insoumise disse querer apresentar para abolir a recentíssima reforma das aposentadorias. Mesmo que não se trate de uma aliança formal, mas de um jogo tático que procura tornar caótica a fase de constituição de um governo após as legislativas, não deixa de ser uma dinâmica bem inquietante.
Em outras latitudes, as nossas aqui nos trópicos, essa convergência aparece na tímida cobrança do governo Lula pelo respeito do resultado eleitoral na Venezuela. O ditador chavista (Maduro) pensou bem em repetir o discurso bolsonarista sobre insegurança do sistema eleitoral brasileiro, explicitando assim que, independentemente dos regimes discursivos que caracterizam esse ou aquele “populismo”, uma vez que esse amadurece (sic) como governo, vira a mesma autocracia. Nós reencontramos essa convergência em outras formas que apenas em aparência são inesperadas. Por exemplo, o efêmero ministro da economia do governo Syriza na Grécia comentou em termos negativos a recente vitória do Partido Trabalhista no Reino Unido: em termos absolutos de votos, Starmer ganhou menos de Corbin e sua eleição não teria legitimidade popular (do Demos).
Com efeito, o embate entre Maduro e Lula assim como essas críticas à vitória do Partido Trabalhista explicitam os paradoxos que já estão na decisão mélenchonista de se colocar contra todo tipo de negociação com o centro liberal. Sem essas negociações, é impossível transformar em termos de governo a barragem eleitoral contra a extrema-direita.
Esses paradoxos gritantes são resolvidos por meio de cambalhotas retóricas: a emergência do fascismo não implicaria na necessidade da defesa da democracia e de suas instituições e, vejam bem, seria o fruto de uma estratégia dos próprios liberais. Eis que chega ao Brasil a mais nova versão dessa velha doxa, na figura de uma economista que promete de tudo explicar: “os economistas inventaram a austeridade e abriram o caminho ao fascismo”. De repente, o problema não é o fascismo, mas o liberalismo na sua versão econômica (neoliberalismo) e nos ajustes (a austeridade) que seriam implementados para permitir a chegada do fascismo.
São as teses defendidas faz muito tempo por vários pensadores da esquerda no-global. Recentemente, por exemplo, um documento assinado por alguns intelectuais italianos, logo depois da convocação de eleições na França, afirma que Macron teria dissolvido o parlamento para acelerar a chegada do RN ao poder.
A experiência dos governos progressistas mostra ao contrário: o fascismo não vem por causa dos ajustes, mas dos desajustes e particularmente da destruição da moeda operada pelas políticas desses governos na Argentina ou na Venezuela ou no Brasil nos anos 2010. Deveria ser óbvio que dizer isso não significa aceitar a lógica dos ajustes como sendo necessariamente a da “austeridade”, mas simplesmente lembrar que sem moeda, sem mobilização, sem cooperação democrática não funciona nada, nem sequer a extração de matérias-primas: o chavismo destruiu a indústria venezuelana do petróleo, o evismo (de Evo Morales) destruiu aquela boliviana do gás.
A alternativa ao ajuste é um outro ajuste e não o “desajuste”. Se não se consegue fazer um outro ajuste (por exemplo, fazer com que a nacionalização permita a prospecção de mais jazidas e não de menos), só sobra a alternativa entre o ajuste ortodoxo e o desajuste mesmo, esse que abre o caminho à extrema-direita, que seja discursivamente de direita ou de “esquerda”, como ditadura de Maduro. Que setores da esquerda, como, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST brasileiro ou exponente de Podemos, na Espanha, continuem se identificando com o governo Maduro é de uma miséria incomensurável.
Na Venezuela o fascismo é a metamorfose do próprio chavismo (como aconteceu com os todos os socialismos do século XX). Na Argentina, o fascismo é Milei e é uma consequência na falta de ajustes (dos desajustes peronistas) da mesma maneira que Bolsonaro ganhou as eleições de 2018 graça aos desajustes da governança petista das estatais (aquela mostrada pela Lava-Jato) e da inflexão adoidada do projeto neodesenvolvimentista de Dilma.
Não adianta pensar que a volta de Lula ao governo “salvaria” o que aconteceu entre 2014 e 2015 no Brasil e que em 2016 foi um “golpe”. O vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes do TSE que ajudaram a consolidar a vitória eleitoral de Lula, em 2016 estavam nas ruas de São Paulo para manifestar pelo impeachment de Dilma e não são os malabarismos discursivos do Lula a transformar essa que é uma composição de centro-direita e centro esquerda em um governo de verdadeira esquerda.
IHU – Quais partidos e grupos políticos compuseram a Nova Frente Popular que saiu vitoriosa no pleito francês?
Giuseppe Cocco – As principais formações são La France Insoumise (Jean-Luc Mélenchon); o Partido Socialista (que inclui o movimento independente Place Publique de Glucksmann), Les Verts et o Parti Communiste Français. A essas se juntam outras formações menores. O NFP está querendo emplacar um primeiro-ministro, a última proposta é de uma economista que atualmente é responsável pelas finanças da Prefeitura de Paris (a prefeita é Anne Hidalgo, do PS). Trata-se de tática muito arriscada, que não leva em conta, por um lado, que a vitória foi da frente republicana (e não do NFP) e, pelo outro, que atrás da pujança da extrema-direita há uma série de dinâmicas estruturais que não tem solução ideológica: essas dinâmicas são as da demografia e aquela que lhe está atrelada das imigrações; aquela da necessária bifurcação ecológica e enfim o contexto de uma transição para uma ordem mundial caótica sob o signo nefasto do multilateralismo.
Nesse contexto, a insistência em conseguir a vaga de primeiro-ministro e a ilusão de aplicar um programa (com apenas 30% da representação parlamentar) deixa de lado a pauta essencial: reforçar o marco democrático no qual esses enigmas possam ser enfrentados. Isso passa pela reforma da quinta república e a introdução de um dispositivo eleitoral proporcional.