“Entre episteme (filosofia/ciência) e pensamento não há passagem direta, mas apenas salto”, afirma o filósofo
Compreender a realidade em sua totalidade é um dos esforços da filosofia ocidental, do pensamento oriental e, igualmente, das religiões. Em consonância com o desenvolvimento científico, intelectuais têm proposto compreendê-la como “uma magnífica teia cósmica”, na qual tudo que existe, humano e não humano, está interconectado. Nesse processo, a própria identidade do ser humano é reavaliada. No Ocidente, segundo o filósofo José Carlos Michelazzo, essa operação deve implicar na necessária recusa de o homem ocupar o lugar de centro epistêmico. “E isso se dá por um processo de transformação da própria identidade do homem, ou seja, ele sai do autocentramento para o descentramento. Em outras palavras, é preciso que o homem recuse o lugar de centro epistêmico do Real, enquanto sujeito que conhece o objeto do qual está separado para se compreender como parte de um Todo”, disse.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Michelazzo exemplifica como a tentativa de compreender a totalidade do real tem sido elaborada ao longo dos séculos pela tradição oriental, a partir do pensamento de Dôgen Zenji, mestre zen-budista japonês nascido em Kyoto, e pela filosofia desenvolvida por Martin Heidegger no século XX, em contraposição ao desenvolvimento das ciências, em especial da física quântica. “Sabemos que todas as tradições, tanto ocidentais quanto orientais, que cultivam a dimensão do Numinoso, falam do caminho da kênosis, do esvaziamento, do desapego de nossa mente puramente humana até o seu desaparecimento para que seja preparada a sua entrega ao Absoluto”.
No Genjokoan, ensaio escrito por Dôgen, menciona: “o praticante deve deixar cair e abandonar o corpo e a mente para que seu acesso ao Absoluto (Sunyata) seja, de fato, realizado. Para chegar do lado de lá, portanto, é preciso se libertar das paixões do corpo e silenciar os pensamentos da mente. E, afinal, o que há de mais humano do que nosso corpo e nossa mente? Mas são justamente esses dois grandes pilares de nossa humanidade que devem ser entregues para que possamos ir para além do sonho de nossa identidade humana egóica, para que possamos despertar para Aquilo que verdadeiramente somos”.
Já na tradição filosófica ocidental, a partir do pensamento de Heidegger, frisa que “a ideia central era a de poder pensar o ser do homem como Dasein, para além dessa supremacia do homem sobre o mundo, à maneira do caçador sobre a caça, para apreendê-lo numa relação de um comum-pertencer (Zusamengehören) entre as extremidades desta relação (homem/mundo), de tal forma que o primeiro (homem) não poderia ser ele mesmo sem que o segundo (mundo) fosse também ele mesmo”. Entretanto, na relação com o mundo, o homem ainda tem privilégios em relação aos demais seres. “E um desses privilégios, para Heidegger, era devido ao homem ser um ente dotado de uma abertura especial com o ser na maneira como ele se relaciona com o tempo em seus três modos temporais de passado, presente e futuro. Outro privilégio era o fato do homem ser também o único ente que é ‘formador de mundos’, enquanto os demais não teriam essa prerrogativa, uma vez que nos reinos animal e vegetal (seres sencientes) seriam ‘pobres de mundo’ e no reino material e inorgânico (seres não sencientes) seriam ‘ausentes de mundo’”, esclarece.
José Carlos Michelazzo é graduado em Filosofia pela Universidade de Mogi das Cruzes – UMC e em Psicologia pela Faculdade de Educação e Cultura do ABC, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor de cursos de pós-graduação e especialização e psicoterapeuta em Clínica Psicoterápica, na perspectiva da Análise Existencial (Daseinsanalyse).
A entrevista a seguir foi realizada por Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e do canal Paz Bem.
IHU – Vivemos um momento privilegiado na reflexão filosófica, antropológica e literária em torno da temática da riqueza do “mundo invisível”, entendendo por isso a magnífica teia de vida que envolve a dinâmica do planeta. Damo-nos conta hoje da consciência profunda de que existe uma arquitetura de teias e filamentos marcados por rica vitalidade, que proporcionam a relação das raízes com as árvores, formando “estruturas conjuntas de fungos e raízes micorrízicas”. Trata-se de um mundo cosmopolita sob os nossos pés. Ou seja, habitamos um mundo vitalizado. Fala-se, inclusive, de inteligência no mundo das plantas e dos fungos, na medida em que se observam “comportamentos sofisticados que nos levam a repensar o significado de ‘resolução de problemas’, ‘comunicação’, ‘tomada de decisão’, ‘aprendizado’ e ‘memória’” (Merlin Sheldrake). Será que podemos afirmar que essa percepção de um universo todo animado por vitalidade está presente na reflexão do budismo de Dôgen?
José Carlos Michelazzo – Sem dúvida. Esse modo de entender a Realidade como uma magnífica teia cósmica é um grande movimento de transformação do pensamento ocidental. Por outro lado, isso se dá por um processo de transformação da própria identidade do homem, ou seja, ele sai do autocentramento para o descentramento. Em outras palavras, é preciso que o homem recuse o lugar de centro epistêmico do Real, enquanto sujeito que conhece o objeto do qual está separado para se compreender como parte de um Todo.
Na filosofia, Heidegger talvez seja aquele pensador que mais contribuiu para esse processo de transformação do homem ao desconstruir a concepção moderna deste como sujeito e pensar a sua essência (Dasein) numa perspectiva não mais a de um “caçador” de objetos como “presas” do mundo, mas como aquele que estabelece uma relação de pertença mútua aos fenômenos do mundo. Na antropologia, vemos um interesse na busca de compreensão dos costumes e valores de povos primitivos com o intuito de apreender aí seu modo de ser que primava por uma interpretação da vida humana profundamente integrada a um Todo mítico-religioso. Nas ciências modernas, como a física quântica e a biologia molecular, vemos o mesmo movimento a partir de pesquisas voltadas para o mundo pequeno. Quanto mais nos aproximamos do microcosmo, tanto no nível do átomo (mundo não senciente) quanto no nível da vida (mundo senciente), mais nos damos conta da teia do Real, onde tudo se conecta ao Todo.
Entretanto, se para nós, ocidentais, tal movimento de descentramento da identidade do homem representa uma descoberta contemporânea, especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, na metade do século passado, para os orientais (indianos, chineses e japoneses), tal interpretação integrativa do Real foi sempre parte de seu profundo interesse, presente tanto em sua filosofia como na arte, religião e cultura. Na verdade, é de lá que vem grande parte da inspiração desse movimento de transformação da identidade do homem ocidental. Fritjof Capra – em seu conhecido livro publicado na metade de 1970, O Tao da Física – cita sentenças de dois eminentes e renomados físicos que acreditamos ser oportuno transcrevê-las aqui.
A primeira é de Niels Bohr: “Se buscamos um paralelo para a lição da teoria atômica [devemos nos voltar] para aqueles tipos de problemas epistemológicos com os quais, no passado, já se defrontaram pensadores como Buda e Lao Tsé em sua tentativa de harmonizar nossa posição como espectadores e atores no grande drama da existência”. A segunda é de Werner Heisenberg: “A grande contribuição científica que temos de Física teórica que nos chegou do Japão desde a última guerra pode ser um indício de uma certa relação entre as ideias filosóficas presentes na tradição do Extremo Oriente e a substância filosófica da teoria quântica”.
Por conseguinte, é nesse horizonte de compreensão da Realidade unificante que também se insere o pensamento do Mestre Zen japonês Eihei Dôgen (1200-1253). Ele faz parte daqueles poucos seres humanos – chamados de Budas, Despertos, Iluminados – que alçaram ao que é denominado de Sophia perennis, presente em todas as épocas da humanidade e que, desde os upanixades, nos falam por diversas vertentes e linguagens sobre uma Realidade Absoluta e Numinosa, que se situa para além do mundo humano fenomênico. Mas a condição fundamental para adentrar este horizonte de compreensão é a de que passemos pela experiência de descentramento, ou seja, a da perda de uma identidade egoica, ficcional e ilusória de nos interpretarmos equivocadamente como egos separados do Real, cercado de coisas em si tomadas por nós como simples objetos. Tal descentramento nos possibilitaria, como os Budas, apreender todos os acontecimentos do mundo de nossos sentidos e intelecto (dualidade relativa) – unidos e relacionados entre si numa grande e inseparável teia – enquanto expressões, aspectos e manifestações de uma Realidade última (não dualidade Absoluta). Nesta dimensão, conhecer não será mais possível uma vez que as categorias, teorias e conceitos de nosso intelecto entrarão em colapso por não mais existir aí nenhum conhecedor e, por consequência, nenhum objeto a ser conhecido. Aí só podemos ser um (nada) com o Real (tudo).
Dôgen, portanto, quando fala deste Lugar – do Nirvikalpa, o âmbito do Imanifesto – suas palavras sempre nos atingem pelo viés do instigante e assustador, do provocativo e desconcertante. E isso só é possível porque ele está livre do Principium rationis da filosofia, daí suas sentenças só nos serem veiculadas por meio de paradoxos e oxímoros. Mesmo assim, ele nos fala e seu dizer se torna mais compreensível quanto mais estivermos descentrados de nossa ignorância egóica (avidya) – com a qual construímos nossa identidade como indivíduos, criamos as regras de nossas instituições e armazenamos o conhecimento de nossas ciências –, mais pertenceremos às “estruturas conjuntas de fungos e raízes micorrízicas”, uma vez que ocuparemos, como humanos, um lugar menos especial e mais fraterno com todos os seres sencientes e não sencientes, desde o átomo às galáxias.
IHU – Gostaria que você dissesse algumas palavras sobre o pioneirismo de Dôgen na abordagem da “ressonância” vital no universo. Penso aqui, em particular, em dois livros do Shôbôgenzô, que tratam da voz dos vales, das formas das montanhas, bem como das montanhas e rios como sutras (Keisei Sanshoku e Sansuikyô). Ele chega a dizer que aqueles que não conseguem captar o movimento das montanhas são incapazes de perceber o movimento de si mesmo. Você capta aí uma capacidade de ampliação do olhar para ver o universo inteiro como um corpo animado?
José Carlos Michelazzo – Você escolheu bem esses dois textos iniciais do Shôbôgenzô – Keisei Sanshoku (nº 8) e Sansuikyô (nº 13) – para mostrar como o Mestre vê e experimenta os seres sencientes e não sencientes na inseparável teia da não dualidade. Todavia, Dôgen sabe que aquilo que ele vê e experimenta é muito diferente daqueles que o ouvem em seus sermões e ensinamentos. Por isso, alguém já disse que todo o Shôbôgenzô, com os seus 95 textos ou capítulos, não passa de uma nota de rodapé do seu grande tema: a prática do Zazen. Tudo o que ele vê e experimenta no âmbito do Numinoso só é possível pela askesis, no seu sentido grego de exercício ou treinamento prático de descondicionamento dos padrões dualistas da mente ignorante na sua maneira de interpretar o Real.
No Keisei Sanshoku, Dôgen diz: “Quando você treina e pratica de verdade (Zazen), a voz dos riachos do vale [...] e a voz das montanhas, juntamente com as suas oitenta e quatro mil canções, serão ilimitadas. Se você mesmo não valoriza a fama ou ganho, corpo ou mente, então os córregos do vale e as montanhas serão, por sua vez, ilimitados em revelar a você Aquilo que É”. “Aquilo que É” é a expressão mais apropriada para designar a Fonte e Origem do Real: é a Natureza de Buda para o budismo, o Tao para o taoísmo e Brahman para o Advaita-Vedanta. Dôgen, portanto, nos diz que apenas quando estamos junto a essa Fonte é que podemos verdadeiramente ouvir a polifonia das vozes dos córregos e das montanhas porque apenas aí o que eles são e o que nós somos fazem parte de um único e mesmo acontecimento. Somos porque os córregos e as montanhas são e, por sua vez, estes são porque nós somos; seres não sencientes (córregos e montanhas) e seres sencientes (nós) enredados como não dois (A-dvaita) acontecimentos.
No Sansuikyô, o Mestre confirma essa comum-pertença entre nós e as montanhas ao dizer: “Aqueles que vivem afastados das montanhas, nem as percebem nem as reconhecem [...] não as veem ou as ouvem, nem eles compreendem o que elas são. Quem quer que seja que tenha dúvidas sobre o movimento das montanhas é aquele que ainda não reconhece o seu próprio movimento. Não é que eles não seguem em frente, é que ainda não reconhecem a sua própria mudança e não esclareceram o que ela é”. Compreender o que as montanhas são só nos é possível quando reconhecermos que os movimentos, tanto os das montanhas quanto os nossos, brotam de uma única e mesma Fonte. Há uma passagem memorável neste capítulo a respeito do imbricamento ontológico quando Dôgen afirma: “De um modo geral, dizemos que as montanhas pertencem a algum país ou região, mas é aos sábios que amam as montanhas que elas realmente pertencem. Invariavelmente, quando uma montanha ama seu anfitrião, as virtudes sublimes dos santos e sábios entram na montanha. Quando aqueles que são santos e sábios habitam nas montanhas e as montanhas lhes pertencem, como resultado, as árvores crescem luxuriantes e pedregulhos abundam, os pássaros são maravilhosos [...]”.
Normalmente, vemos autores interpretarem sentenças como essas na chave de uma inusitada e criativa verve poética do Mestre Zen. É verdade e não há como negar o caráter poético de tais afirmações. Entretanto, Dôgen vai muito mais além. O que ele nos diz não é, em absoluto, algo que nasce a partir de algum gênero literário e, sim, do horizonte do Numinoso, de uma ontologia não dual que o possibilita ver e experimentar como as coisas são, tal como são, isto é, em sua “talidade” (Tatatha). Nesse sentido, ser o que se é, é estar em rede, pertencer à teia. Assim, o amor dos sábios e santos pelas montanhas desperta a reciprocidade dos vários movimentos da teia como um jogo de reflexos: árvores crescem luxuriantes, pedregulhos abundam, pássaros são maravilhosos – todos reverberando em todos. Por fim, não há como não ver aqui, nessa ontologia de comum pertença, o absoluto contraste com a ontologia dualista da mente ignorante, no interior da qual saber o que uma coisa é só se torna possível pelo viés da separação e distinção, ou seja, tanto mais saberemos de uma coisa quanto mais a separarmos e definirmos os limites de seu ser em relação ao ser de outra coisa ou das demais coisas através da “faca afiada” da lógica e a recolhermos discursivamente no enunciado.
IHU – Como estudioso de Heidegger, você percebeu no processo reflexivo desse grande pensador um encaminhamento significativo de seu pensamento para outras influências como a artística e religiosa, sobretudo tendo em vista a tradição mística (Eckhart e Silesius). Você sublinha, entretanto, que faltou a Heidegger dar o “salto” para o numinoso, vivenciado, por exemplo, por Dôgen. O que você pretendeu dizer com isso?
José Carlos Michelazzo – A importância da obra de Heidegger se situa no âmbito da filosofia, por mais que ele tenha influenciado outras áreas do pensamento, como a ciência, a arte, a religião etc. Como tal, seu propósito foi provocar nela uma intensa renovação a partir do abalo da velha ontologia por meio de uma reinterpretação de duas categorias basais do pensamento filosófico, o ser e o tempo. Ou, mais especificamente, ele abre uma nova concepção de ser à luz do tempo existencial, vivido, e com isso desconstrói a antiga metafísica que sustentou a filosofia e as ciências do Ocidente que, apesar de suas variações epocais (antiga, medieval, moderna e contemporânea), na sua essência permaneceram sempre a mesmas desde os gregos.
O próprio Heidegger faz questão de afirmar que o que ele pretende iniciar já não é mais filosofia – que ele a interpreta como um “negócio da ratio” – mas pensamento. E esta distinção era muito clara para ele, uma vez que entre episteme (filosofia/ciência) e pensamento não há passagem direta, mas apenas salto, isto é, não há entre ambos uma passagem natural que nos desse um acesso contínuo e progressivo entre as duas experiências, já que um fosso as interpõe, o que nos obriga à necessidade de saltar sobre ele. Essa distinção de experiências, segundo Heidegger, diz respeito ao fato de que o pensamento já não se guia mais de forma exclusiva dentro dos parâmetros estreitos da razão e da lógica, guiados pelos princípios de razão, de não contradição, do terceiro excluído e por uma linguagem conceitual e discursiva. E é por esse distanciamento do pensamento das amarras racionais da filosofia que o filósofo pode dialogar com maior desenvoltura e liberdade com outras áreas da experiência humana como a artística, a religiosa e até mesmo questionar os rígidos postulados das ciências, especialmente as humanas.
Todavia, apesar de toda contribuição gigantesca do pensamento de Heidegger para a renovação da filosofia e dar ao pensamento significados inteiramente novos, ele é chamado de filósofo da finitude. E, como tal, pode ser considerado como um daqueles herdeiros em nossa contemporaneidade que apontou para o desmoronamento dos absolutos da tradição metafísica ocidental (morte de Deus em Nietzsche), substituindo-a pelo primado do mundo vivido (fenomenologia de Husserl). Essa herança faz com que Heidegger interprete o significado da vida do homem estritamente no interior do humano, ou seja, da existência finita: fenomênica, fáctica, temporal. Dentro deste horizonte, chega até mesmo a recunhar o significado de transcendência no interior a própria imanência da vida, contrapondo, assim, com o entendimento da metafísica da tradição que sempre interpretou a transcendência como pertencente a uma dimensão que fica “do lado de lá” do mundo sensível: o suprassensível.
Não que ele tenha negado um horizonte oculto e retraído da existência humana, uma vez que não havia nada de materialista em seu pensamento, no sentido estrito. Prova disso é o número de vezes que se refere, analisa e reflete sobre o tema do Mistério que envolve a vida do homem, suspenso sobre o abismo do nada. Tal segredo ontológico que envolve o ser do homem é o que nos faz pensar que Heidegger, com certeza, sabia dessa outra “porção” da Realidade. Afinal, ele veio da teologia, conhecia muito bem os pensadores e místicos medievais – especialmente Aquino, Scoto e Eckhart –, rascunhou a tradução de alguns capítulos do Tao Te King, de Lao Tsé, com a ajuda de um sinólogo chinês e, por fim, seu pensamento exercia uma enorme atração entre filósofos japoneses e monges zen budistas. Isso serve de prova contundente de que ele também era atraído por essa dimensão Numinosa do Real, cuja porta de acesso ele viu, mas não a abriu. Entre as possíveis hipóteses para esse silêncio de Heidegger em relação à dimensão Numinosa, a mais provável era a de que não queria dar mais lenha para seus adversários que já o tomavam por um pensador religioso. Minha hipótese, entretanto, era a de que, para Heidegger, essa porta também não leva a uma passagem direta para essa outra dimensão, pois há aí, também outro abismo que precisa ser saltado – aquele que vai do pensamento para o não pensamento.
Sabemos que todas as tradições, tanto ocidentais quanto orientais, que cultivam a dimensão do Numinoso falam do caminho da kênosis, do esvaziamento, do desapego de nossa mente puramente humana até o seu desaparecimento para que seja preparada a sua entrega ao Absoluto. No Genjokoan, Dôgen assevera que numa das etapas mais avançadas do Caminho de Buda, o praticante deve deixar cair e abandonar o corpo e a mente para que seu acesso ao Absoluto (Sunyata) seja, de fato, realizado. Para chegar do lado de lá, portanto, é preciso se libertar das paixões do corpo e silenciar os pensamentos da mente. E, afinal, o que há de mais humano do que nosso corpo e nossa mente? Mas são justamente esses dois grandes pilares de nossa humanidade que devem ser entregues para que possamos ir para além do sonho de nossa identidade humana egoica, para que possamos despertar para Aquilo que verdadeiramente somos. Podemos, num certo sentido, dizer que Heidegger e Dôgen se encontram numa mesma rota de convergência na medida em que apontam para o homem a necessidade de dar o salto – sobre o abismo da alienação ou ignorância em que se encontra o homem nos limites do humano – no seu caminho de regresso a um solo mais original de sua natureza. O primeiro, aponta para um primeiro salto que lhe permitirá libertar o pensamento da episteme; o segundo indica um segundo salto que lhe possibilitará libertar o não pensamento do pensamento.
IHU On-Line – Os autores que trabalham hoje com o tema da virada animal e vegetal, e quiçá, de uma próxima virada mineral, fazem críticas a Heidegger, no sentido de que o pensador alemão não conseguiu alcançar as repercussões mais vivas de um pensamento radical, capaz de abraçar a riqueza da teia vital. Como você vê essa posição de Heidegger que defende a ideia de que as plantas e os animais “seriam pobres de mundo”, bem como as pedras? Dá para continuar afirmando isso hoje com tranquilidade?
José Carlos Michelazzo – O grande foco de interesse presente no pensamento de Heidegger era a questão do ser (Sein), mas para pensá-lo era preciso primeiro pensar quem é o homem que pensa o ser. Na verdade, não era bem exatamente o homem no sentido corrente do termo – tal como é tomado no senso comum, na filosofia e nas ciências que, para Heidegger, é interpretá-lo como mero ente em meio aos demais entes –, mas ir além para apreender a essência deste ente, ou seja, o seu ser (Dasein). Essa dupla acepção de homem, enquanto “ente-ser”, era denominada por ele de diferença ontológica. No entanto, nesse modo de ser, o filósofo via no homem qualidades e possibilidades especiais que o distinguia dos demais entes e que dava a ele um lugar exclusivo junto ao Real.
Tal lugar especial, entretanto, não tem nada a ver com a concepção moderna de homem como sujeito, a partir de Descartes, como aquela figura prepotente entronizada no centro do Real sempre a apreender as coisas e os acontecimentos do mundo enquanto objetos de conhecimento e de domínio. Ao contrário, o propósito de Heidegger era justamente o de desconstruir tal concepção – e esse foi justamente o programa da primeira etapa de seu pensamento entre 1915-1930, cujo fruto foi o aparecimento de seu grande tratado de Ser e tempo. Nele, a ideia central era o de poder pensar o ser do homem como Dasein, para além dessa supremacia do homem sobre o mundo, à maneira do caçador sobre a caça, para apreendê-lo numa relação de um comum-pertencer (Zusamengehören) entre as extremidades desta relação (homem/mundo), de tal forma que o primeiro (homem) não poderia ser ele mesmo sem que o segundo (mundo) fosse também ele mesmo.
Entretanto, apesar da destronização do homem como sujeito, provocada por essa nova concepção de homem, o Dasein ainda conservou uma posição especial no âmbito da totalidade do Real, que nos faz lembrar a expressão bíblica do homem “como ápice da criação”. E um desses privilégios, para Heidegger, era devido ao homem ser um ente dotado de uma abertura especial com o ser na maneira como ele se relaciona com o tempo em seus três modos temporais de passado, presente e futuro. Outro privilégio era o fato do homem ser também o único ente que é “formador de mundos”, enquanto os demais não teriam essa prerrogativa, uma vez que nos reinos animal e vegetal (seres sencientes) seriam “pobres de mundo” e, no reino material e inorgânico (seres não sencientes), seriam “ausentes de mundo”.
Tudo isso parece reforçar essa “atmosfera de exclusividade” atribuída ao Dasein, deixando os demais entes relegados a reinos “inferiores”. O mais interessante é que Heidegger conhecia o trabalho dos dois importantes físicos compatriotas citados acima, Bohr e Heisenberg, chegando a trocar alguma correspondência com o último ou mesmo citá-lo em alguns escritos. Mas essa teia do microcosmo – que entrelaça todos os entes de todos os reinos, trazida a lume especialmente pela física quântica – não impressionou Heidegger por um motivo, o de que tal perspectiva iniciante da física, apesar de ser inovadora e revolucionária, ainda guardava um forte resquício da metafísica da tradição com a qual ele se confrontou ao longo de toda a sua obra.
Outra questão importante é que, apesar do empenho de Heidegger em ir além da compreensão de uma concepção dos entes fechados em si mesmos para apreendê-los sempre em conexão com a totalidade, seu pensamento permaneceu adstrito ao âmbito da dimensão fenomênica, impermanente e mutável da Realidade. Com isso, poderíamos dizer que, para Heidegger – como bom fenomenólogo que era a ponto de superar seu mestre Husserl –, os acontecimentos veiculados tanto pelo microcosmo da física quântica quanto pela dimensão do Numinoso não fazem parte do nosso campo de experiência direta, uma vez que, como seres humanos finitos, temporais e mutáveis, tais acontecimentos não seriam propriamente fenômenos no sentido da fenomenologia, mas um conjunto de hipóteses ou construções mentais pertencentes ao refinado intelecto humano. Interessante referirmos aqui a maneira simples e espontânea de abordar as duas dimensões do Real daqueles despertos, como Nisargadatta Maharaj – um dos grandes representantes contemporâneos do Advaita-Vedanta –, para quem a totalidade fenomênica é apenas parte do Real e ainda a menos verdadeira, tal como ele diz na primeira sentença de seu conhecido Eu sou Aquilo: “Todo aparecimento e desaparecimento pressupõe uma mudança [fenômenos] que acontece sobre um fundo imutável [Absoluto]”.
Tudo indica que todas essas querelas que se contrapõem, que mais se parecem com um nó cheio de pontas escondidas, são tentativas de encontrar o senso de Totalidade que, para os despertos, a Ela já pertencemos no âmbito mais recôndito de nós mesmos. Infelizmente, no horizonte da dualidade ao qual pertencem todos os que ainda dormem, tal senda está interditada ou, melhor, é inexistente. Mas, como boa notícia, poderíamos acreditar que, em última instância, essas duas perspectivas – tanto a teia microcósmica (física quântica) quanto o campo experiencial (fenomenologia) – em suas tentativas individuais de alcançar tal senso de Totalidade, acabam desaguando e se fundindo no âmbito do Numinoso. Na próxima questão teremos a oportunidade de nos estender um pouco mais sobre isso.
IHU On-Line – No seu magnífico texto sobre desapego e entrega na meditação zen budista, você fala da importância do Zazen como prática espiritual essencial, que nos possibilita recuperar uma unidade perdida. Você fala que o sentar-se diante de uma parede envolve um processo complexo, que demanda paciência e profundidade, que vai na linha do “polir, polir, polir” a parede por muito tempo, até que ela se transforme em vidro e aos poucos se estilhaça. Trata-se do processo de iluminação, que nos possibilita reencontrar uma unidade que se perdeu. Percebo nessa experiência um exercício espiritual que nos favorece profundamente a captar a vitalidade existencial do mundo envolvente. Gostaria que dissesse algo a respeito, relacionando sua reflexão com essa perspectiva atual da percepção de um universo animado.
José Carlos Michelazzo – Primeiramente precisamos contextualizar um pouco o significado das palavras Zen e Zazen. Por trás de ambas está o termo sânscrito Dhyāna que significa manter a mente aberta, sem apegar-se aos pensamentos que fluem livremente com o intuito de sustentar a consciência na atenção sem alterar ou oscilar a concentração. Em outras palavras, é o que de modo geral nos tempos atuais recebe o nome de meditação. Zen, portanto, é meditação; ao passo que Zazen é o sentar (Za) em meditação (zen). Zazen, por conseguinte, como prática fundamental e espiritual do budismo, é repetir o gesto ancestral de Siddartha Gautama que, segundo a tradição, sentou-se sob uma árvore (Árvore Bodhi) e jurou nunca mais se levantar enquanto não tivesse encontrado a Verdade. Após quarenta e nove dias de meditação e com a idade de 35 anos, conta-se, Gautama alcançou a iluminação espiritual, tornando-se Buda, o desperto.
Para quem não sabe, na meditação da linhagem Soto Zen o praticante senta-se na almofada com as pernas cruzadas de frente para a parede da sala de meditação, ficando, assim, a poucos centímetros dela e mantendo-se imóvel. Essa postura obriga o praticante a ficar tão somente com a parede à sua frente, uma espécie de “nada raso”, com o intuito de não o distrair com outros estímulos presentes na sala. Mas tal postura vai além disso, uma vez que nos fala de dois aspectos fundamentais da askesis do Zen.
Primeiro, diz respeito a um esforço para acalmar a mente sempre inquieta, agitada e, especialmente, incomodada com aquela postura desconfortável – bastante incomum e estranha para os principiantes – no interior da qual ela se contorce e se rebela como expressão de recusa a ser obrigada a se desapegar da profusão de pensamentos que, por excelência, é o seu ininterrupto modus operandi para, no final, se entregar ao Vazio. O segundo aspecto da ascese é aquele de “polir, polir, polir a parede”. Claro que se trata de uma metáfora para se referir às condições necessárias do verdadeiro buscador, ou seja, dizem respeito às virtudes da sinceridade e perseverança, confiança e determinação que devem estar presentes no empenho de alcançar a meta derradeira. Esse contínuo polir, polir, ao longo do Caminho, passa por três etapas. Inicialmente, é o polir de uma parede opaca, uma vez que o buscador está no reino da dualidade: ele é uma coisa, a parede é outra. Na segunda, quando a mente já se encontra num estado de profunda quietude, a parede começa a se tornar translúcida como se transmutasse aos poucos em parede de vidro por onde perpassa alguma claridade, mas que pode voltar a ser novamente opaca caso a mente se distraia e volte à sua inquietude. Por fim, quando a quietude do praticante alcançou um amadurecimento expressivo, ele entra em Samādhi, que é o nível de concentração extremamente profundo e penetrante, onde não se conserva mais a consciência de corpo-mente, e o senso de vontade ditada por uma entidade interna (ego) já não mais existe.
Nesse estado de distensão e fragilidade como um balão totalmente inflado, tudo o que se aguarda é por um gatilho, um estímulo fortuito – um bater de portas, alguém gritando, um talher caindo no chão – como a ponta de uma agulha tocando o balão prestes a explodir. “Este gatilho”, diz Nearman, o tradutor do Shôbôgenzô, “é uma forma necessária de condições externas em que alguém ou alguma coisa dá voz ao Dharma – isto é, dá expressão (que, na realidade, todas as coisas estão sempre fazendo) Àquilo que está além da dualidade – e o aprendiz, ‘ouvindo’ isso, ‘faz’ a conexão entre a Fonte desta voz e sua própria Natureza Original”. Para o Buda histórico, tal meta foi alcançada em quarenta e nove dias de “polimento”, ou seja, de perseverança em seu propósito de não deixar a meditação a não ser na condição de desperto. Para outros praticantes, todavia, alcançar a meta pode demorar meses, anos ou décadas de prática, ou então, uma única semana de retiro intensivo (Sesshin).
Mas o que vem a ser, propriamente, o estilhaçamento da parede de vidro? É o momento em que o praticante acorda do profundo sono de Maya e é absorvido pela Totalidade do Real. É como se o ar aprisionado no interior do balão, ao ter suas paredes estilhaçadas, se fundisse com a totalidade do ar circundante. O que, no início do Caminho, a experiência dual do praticante lhe dizia que ele e a parede eram “dois”, agora, no seu final, sua experiência não dual lhe diz que o interior da sala de meditação onde estão ele e parede, assim como o exterior onde está o entorno da sala – com seus corredores, as plantas, as pedras, as flores, os pássaros etc. – passam, ambos os lados, a ser “não dois”.
Este é, por conseguinte, o segundo salto de que falávamos antes e que nos leva para o domínio do Numinoso. Do começo ao fim do Caminho trata-se, fundamentalmente, de desapegar-se dos pensamentos e entregar-se ao Vazio do desconhecido, duas atitudes que aos poucos estarão desmantelando a identidade ilusória do praticante, o seu ego. Em outras palavras, o silêncio e a quietude aos poucos vão reduzindo este tão conhecido, fortalecido e mimado administrador de si mesmo e do mundo. Sem os pensamentos ele nada é, ele perde sua existência, ele é apenas uma ficção. Assim, minúsculo, finalmente, ele é absorvido pela não dual Consciência Numinosa, reintegrando o ar do balão ao Ar Original, à sua Terra natal, de onde ele partira para a sua viagem de exílio e aprisionamento.
É aqui, neste segundo salto, que aquelas duas perspectivas que nos referíamos na questão anterior – a teia microcósmica (física quântica) e o campo experiencial (fenomenologia) – vão se fundir no âmbito do Numinoso, tal como Dôgen nos revela através de sua experiência de desperto, e que pudemos testemunhar ao longo das poucas referências que fizemos aos seus textos do Keisei Sanshoku e do Sansuikyô. Neles, vemos o Mestre se referindo às montanhas e à água, aos sábios e santos, às pedras e às árvores, às flores e aos pássaros, não mais como seres isolados ou simples coisas em si dispostos no mundo, uma vez que estão conectados e integrados uns nos outros através de estruturas conjuntas tanto atômicas como moleculares (física quântica e biologia molecular), nem como entes classificados como formadores de mundo, pobres de mundo ou ausentes de mundo (fenomenologia). O que ele nos revela é que ele mesmo, Dôgen, é Aquilo com todos eles, seres sencientes e não sencientes. No entanto, tal acontecimento só lhe foi possível porque toda separação e distinção e toda presunção de apreendê-los como conhecimento foi dissolvida como mera ilusão. Finalmente, aí, o Real é encontrado. Aí Dôgen já não pode mais conhecer, só pode ser um com Ele.