A tecnologia, evoluções no pensamento e emergência de uma outra filosofia. Entrevista especial com Anderson Pedroso

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 12 Outubro 2019

Vilém Flusser vai apreender reflexões sobre a centralidade que as máquinas vão assumindo na vida das pessoas. Mais do que isso, vai pensar como elas vão assumindo centralidades e papéis distintos no fazer humano ao longo dos tempos. “Segundo Flusser, até a 1ª Revolução Industrial, os instrumentos eram extensões mecânicas das mãos, e o homem estava no centro, cercado de ferramentas”, aponta Anderson Pedroso, doutorando em História da Arte, que estuda o autor. Segundo ele, na 2ª Revolução Industrial, a máquina assume o centro e é cercada pelos homens. “Finalmente, em época pós-industrial (3ª Revolução industrial?), as fábricas se esvaziam, pois são as máquinas computadorizadas que trabalham diretamente a matéria (hardware), e o homem vai se especializando nos programas (software), isto é, ele trabalha (e pensa) com as pontas dos dedos!”, completa. Para ele, “o homem começa a criar universos paralelos e adquire liberdade para refazer o mundo a partir deles”.

Entretanto, ao mesmo tempo em que o humano adquire certa liberdade de inventar e construir novas concepções de mundos, é inevitável que haja também algumas reduções. E Flusser também pensa sobre isso. “Flusser tinha razão quando criticava como a mentalidade tecnicista reconfigurou e reduziu o conceito de arte”, aponta. Mas, segundo Anderson, isso tem relação em como a técnica vai impactar a forma de pensar. Um exemplo clássico é o caso da fotografia, muito trabalhado pelo autor. “Com o aparecimento da fotografia, como prática de fabricação ou constituição de imagens, o pensamento deixa de ser puramente linear, progressivo, imitando a escrita, se torna imagético, circular, inspirado na maneira holística de como os homens na pré-história olhavam as figuras nas cavernas”, explica. E completa: “Flusser apontou para o fato de que existe uma relação ontológica entre a imagem técnica (composta de pontos) e a forma de pensar. Pensamos como vemos. Assim, o pensamento não se realiza mais de forma linear (histórica), movido pela categoria de progresso. O pensamento se torna circular, cênico, ainda em forma de constelação”.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Anderson revela que é possível pensar além desses limites que a técnica impõe. Aliás, mais do que limites e reduções de conceitos, como o de arte, ele propõe um pensamento que, talvez, distenda clássicos conceitos. “De fato, quando se fala em arte, o registro inicial de uma conversa é predominantemente binário, isto é, baseado na contraposição entre o belo e o feio, e as referências são a arte do Renascimento. Talvez seja uma das razões pelas quais muitas pessoas não conseguem compreender a Arte Moderna e, ainda menos, a Arte Contemporânea”, aponta. Afinal, vivemos outros tempos, em que a técnica e tecnologia desmoronam a dualidade entre belo e feio. “Flusser deixou como legado a necessidade urgente de se refletir sobre uma ‘filosofia da tecnologia’. Ele considerava que as bases estavam postas desde Heidegger, Bachelard, passando pelos teóricos marxistas e pelos pensadores contemporâneos como Santayana. Mas é preciso continuar a pensar, pois, ainda segundo Flusser, não temos outra saída”, provoca.

Anderson Antonio Pedroso (Foto: Reprodução Facebook)

Anderson Antonio Pedroso é doutorando em História da Arte, com interesse em questões estéticas, na Universidade Sorbonne - Paris 4, na França. Possui mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela mesma instituição e mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, na Itália. É graduado em Teologia pela Gregoriana e em Filosofia pela Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, São Paulo. Foi professor auxiliar de Teologia das Faculdades João Paulo II, e de Filosofia do Direito na Instituição Toledo de Ensino - ITE. Ele é padre jesuíta.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a fenomenologia compõe o pensamento de Vilém Flusser? Quem são os principais autores que formam suas bases?

Anderson Pedroso – É, em parte, graças à fenomenologia que Flusser desenvolveu um tipo de pensamento mais perceptivo, isto é, intuitivo e gestual. Como sabemos, Flusser não costumava citar academicamente os autores e as fontes de seu pensamento. Assim, durante minha pesquisa, tive que mergulhar numa miríade de textos que se encontravam nos Arquivos Flusser em Berlin. Então, percebi que, através de seu estilo fenomenológico, coisas antigas emergiam de maneira nova.

Visto o caráter interdisciplinar da tese (um tema de Estética filosófica no Departamento de História de arte da Faculdade de Letras), adotei uma perspectiva de “arqueologia do seu pensamento”. O resultado é que parece haver uma espécie de triangulação fundamental da produção intelectual de Flusser, a saber: uma crítica histórica da cultura, associada a uma original teoria da comunicação (bastante conhecida) e uma certa “ciência da arte”. Esta última é algo que nos estudos de arte de língua alemã é chamado de Kunstwissenschaft, a saber: uma ciência, ou conjunto de saberes, que busca compreender o funcionamento da criação artística e também das sensações (aesthesis) dos espectadores (ou participantes) das obras de arte.

Em outras palavras, o pensamento de Vilém Flusser parece ter se concentrado na imbricação de três conjuntos de saberes que, em língua alemã, poderia ser sintetizada em três ‘K’: Kulturgeschichte, Kommunicologie e Kunstwissenschaft. As três poderiam ser vistas também como três esferas interpenetradas, e em movimento. De um certo ponto de vista elas aparecem misturadas, mas um olhar atento é capaz de ver quando uma destas três esferas de conhecimento emerge com mais força em um determinado texto, enquanto as outras permanecem como um fundo comum disseminado.

Fenomenologia

Em Flusser a fenomenologia propriamente dita parece agir como uma perspectiva teórica e experiencial que atravessa esta triangulação (ou conjunto de esferas interpenetradas), iluminando desde seu interior. É também interessante que tudo é traduzido em uma linguagem particular, curiosamente composta por expressões da filosofia existencial e da cibernética. Neste sentido, Flusser não hesita, por exemplo, em falar da segunda lei da termodinâmica, a entropia (morte térmica), associando-a à reflexão sobre o “ser-para-a-morte” (Heidegger). Enfim, é sua percepção fenomenológica aguçada que faz de alguns de seus textos interessantes, algumas de suas ideias tão perspicazes, além de possibilitar-lhe transmitir seu pensamento com bastante originalidade.

Autores

Quanto aos autores, Flusser depende fundamentalmente de Edmund Husserl, mas, como é típico no seu modo de agir, ele absorve uma parte do pensamento de um autor, e às vezes “recorta” um pouco algumas ideias, ou as aborda desde outro ponto de vista, para que ela possa se encaixar melhor na estrutura do pensamento nômade que ele está construindo em determinado momento. Isso explica por que ele parece não ter aderido à terminologia de Husserl de maneira rígida.

Um exemplo bem específico é o da noção de “gesto”. Foi durante os primeiros anos na França, a partir de 1972, graças aos diálogos com outros intelectuais, como por exemplo, Abraham Moles (um outro autor judeu que teve grande influência em seu pensamento), que Flusser se concentrou na noção operatória de “gesto”, inspirado no conceito husserliano de “ato intencional”, para revelar o sentido profundo de ações quotidianas, muitas vezes consideradas como banais. É o que ele fez com os “gestos do fotógrafo”, que se tornou finalmente a figura-chave, a partir da qual se configurou (design) sua “filosofia da fotografia”. Assim, a “filosofia da fotografia” proposta por Vilém Flusser é, na verdade, um desdobramento de sua análise fenomenológica dos gestos do fotógrafo em ação.

Existem muitos outros autores que têm uma grande influência (confluência?) na original composição filosófica (fenomenológica e existencial) de Flusser. Entre eles, podemos pensar nos dois Martin: M. Buber e M. Heidegger. Do primeiro vem a perspectiva fundamental do diálogo, do segundo, depende, por exemplo, sua noção de arte. Junto com E. Husserl, eles são eixos importantes do pensamento gestual de Flusser. Mas, como já comentei, Flusser absorve e modifica certos conceitos destes autores, recompondo-os em sua original constelação (triangular) de ideias.

Em todo caso, a questão da arte em Flusser, que nos interessa particularmente, não pode estar desconectada da potente crítica da cultura e da história ocidental que ele procurou fazer, através da fenomenologia, de forma emblemática. Ao falar de jogo, por exemplo, Flusser não trata simplesmente do aspecto lúdico (embora ele fosse fascinado por isso), mas de estratégias de sobrevivência das armadilhas da sociedade moderna (capitalista) e do naufrágio da História no século XX.

IHU On-Line – Flusser afirma que “a invenção da fotografia constitui uma ruptura na história”. Mas que ruptura é essa? E em que medida as técnicas e tecnologias da fotografia na atualidade atualizam essa perspectiva do autor?

Anderson Pedroso – Antes de mais nada é importante definir o termo “ruptura”, pois para Flusser este termo tem um sentido bem experiencial – mais uma vez invocando aqui sua fenomenologia. Em uma carta a um amigo confidente, Flusser afirma que sua juventude nos anos 1930 foi vivida em um mundo de rupturas profundas. De fato, ele foi diretamente tocado pelos acontecimentos que marcaram o século XX. Nascido em 1920, ele viveu a crise econômica dos anos 1930, vendo a emergência do totalitarismo na Europa (neste sentido os anos 1930 poderiam nos ajudar a pensar o que estamos vivendo atualmente...). No início dos anos 1940, sua família é exterminada em Auschwitz, enquanto ele conseguia escapar para a Inglaterra, e, em seguida, para o Brasil, com sua futura esposa.

Assim, ele viveu e pensou o Ocidente em crise. Ora, Flusser pensa “crise” mais ou menos no mesmo sentido de H. Arendt, isto é, como um momento em que às articulações faltam evidências, uma brecha (gap), provocada por uma ruptura fundamental. Assim, Flusser vive, então, esta “época em crise” como uma experiência pessoal e coletiva (cultural), a saber, como uma “falta de chão” (expressão que ele escolheu como título de sua autobiografia, Bodenlos). Tudo isso junto parece configurar o que se pode chamar de uma verdadeira “crise de época”.

As máquinas e os homens

Imerso nestes acontecimentos dramáticos que atravessaram o século XX, ele propõe a uma já conhecida visão teórica da história (Escola de Frankfurt), uma corporeidade concreta e uma maneira própria de imaginar. Com efeito, seu pensamento é gestual, nunca separado do corpo. Segundo Flusser, até a 1ª Revolução industrial, os instrumentos eram extensões mecânicas das mãos, e o homem estava no centro, cercado de ferramentas. Depois da 2ª Revolução industrial, é a máquina que está no centro, cercada de homens. Finalmente, em época pós-industrial (3ª Revolução industrial?), as fábricas se esvaziam, pois são as máquinas computadorizadas que trabalham diretamente a matéria (hardware), e o homem vai se especializando nos programas (software), isto é, ele trabalha (e pensa) com as pontas dos dedos! O homem começa a criar universos paralelos e adquire liberdade para refazer o mundo a partir deles.

Tudo isso me parece pertinente, pois tem um impacto enorme no imaginário contemporâneo (veja-se por exemplo os últimos filmes de ficção, à la Matrix) e na imaginação humana (veja-se confluência entre a arte e a tecnologia), bem como na percepção de si mesmos e nas relações que estabelecemos (mais abstrata e virtual). Tudo isso junto, é bem observável em certas séries de Netflix.

Em outras palavras, Flusser considera fenomenologicamente as rupturas fundamentais da história como consequência do desenvolvimento da imaginação humana, enquanto processo de abstração e concretização da realidade. Na medida em que o homem faz experiência dialética com as coisas que estão em torno dele, ele desenvolve um tipo de imaginação, de artefatos e de obras de arte correspondentes. Enquanto o homem pré-histórico manipulava coisas com as mãos, e desenhava nas cavernas com instrumentos de pedra, com galhos e com seus próprios dedos, o homem contemporâneo manipula ideias, que ele reproduz, enquanto imagens, em superfícies projetáveis (as telas que, agora ele simplesmente toca com as pontas dos dedos). Trata-se de um salto que passa pelo aparecimento da escritura e suas lógicas. Em todo caso, existe uma relação intrínseca entre o homem e a imagem, pela qual sua “forma mentis” se revela profundamente ligada à sua experiência de corporeidade. É a partir desta convicção que se dá a análise flusseriana do gesto fotográfico.

Câmera fotográfica

Foi assim que Flusser tentou mostrar que o aparecimento da câmera fotográfica não foi por acaso. Pelo contrário, a câmera fotográfica e suas novas imagens (a-cheiropoietas, isto é, não mais feitas por mãos humanas), encarnou esta ruptura na história que se alargou rapidamente no ritmo dos avanços tecnológicos que ela mesma impunha. Em 150 anos, as imagens passaram de chapas de cobre espelhadas (“daguerreotipos”) a leves superfícies de tablets... Bom, ainda há algo de manual. Logo mais tudo será projetado no ar, sem necessidade de apoio.

A velha câmera fotográfica, um híbrido de arte e tecnologia, implicava também uma prática híbrida do homem com a máquina. Isso mudou sua relação deste com as coisas, além de inaugurar uma forma nova de fabricar imagens – sintoma de uma forma nova de pensar e de imaginar, mais tecnológica. Finalmente, podemos dizer que a tecnologia se tornou a mediadora de tudo o que fazemos e da forma como pensamos.

IHU On-Line – Como Flusser apreende as ideias de pensamentos em linha e superfície?

Anderson Pedroso – Como acabei de dizer, com o aparecimento da fotografia, como prática de fabricação ou constituição de imagens, o pensamento deixa de ser puramente linear, progressivo, imitando a escrita, se torna imagético, circular, inspirado na maneira holística de como os homens na pré-história olhavam as figuras nas cavernas. Evidentemente, existe uma diferença fundamental: agora trata-se de imagens produzidas por aparelhos, frutos da técnica reinante na Modernidade. Resultado: a “nova imaginação” se torna exata, realizada através de conceitos matemáticos, mas lida em sua totalidade (circular) como imagem superfície.

Com a “nova imaginação”, a contemporânea, se é capaz de imaginar não mais coisas (contemplando-as, imitando-as ou descrevendo-as), mas de imaginar os conceitos das coisas e de criar outras coisas (recompondo-as e concretizando-as) numa superfície imagética (onde se projeta a imagem, e que é a imagem mesma), isto é, numa tela. Trata-se de uma nova forma de ver e de estar no mundo, numa dinâmica de abstração e concreção que caracteriza e estabelece o que Flusser chama de pós-história.

Assim, a fotografia não somente tem uma história, mas ela tem tudo a ver com a História. O advento da fotografia e a consequente disseminação das imagens técnicas (produzidas por aparelhos) são os sintomas de um mundo que não se apresenta mais como processo linear, onde os acontecimentos são sucessivos (como frases em um texto), numa narrativa histórica. Como acabamos de dizer, a partir da fotografia, a realidade é vista como superfície interpretada e interpretante, isto é, uma cena. Assim, se antes pensava-se linearmente, e progressivamente, agora se pode pensar (novamente) por imagens e imediatamente – “num piscar de olhos”, ou uma visão “scanning”, como dizia Flusser. Isto é parecido com o que acontecia antes do aparecimento da escrita, quando os homens gravavam e pintavam suas experiências nas cavernas pré-históricas. Quem olhava, descobria (heuristicamente) o todo. Hoje, é este olhar que é recuperado ao mesmo tempo que o “mito do progresso”, que alimentou a história (enquanto tèlos) até Auschwitz, é deixado para trás.

Provavelmente trata-se de um novo regime de historicidade, pela qual se abandona o “farol” que conduzia a Modernidade, ou seja: não se olha mais para um futuro que iluminaria o presente (“futurismo”), mas concentra-se no presente mesmo, o único capaz de dar inteligibilidade aos eventos atuais e quotidianos do tempo presente (“presentismo”). De fato, com as devidas diferenças, as análises de Flusser sobre o tema da pós-história, inaugurada pelo advento das imagens fotográficas, fazem pensar neste conceito de “presentismo”.

Passado, presente e futuro

O historiador francês François Hartog, em sua tese sobre os regimes de historicidade, considera a modernidade como uma experiência do tempo marcada pela categoria do futuro. Ela é antecedida pelo antigo regime de historicidade, em que o passado é que conduzia o presente, isto é, a exemplaridade dos antigos e a imitação dos feitos do passado eram o modelo: Historia Magistra vitae (Cicero). Não se tratava de pura repetição, mas de uma forma de compreender o presente olhando o passado. Mas uma crise se instala no final do século XVII e dá origem a uma ruptura que inicialmente provocou um certo pessimismo, expresso no adágio: “quando o passado não ilumina mais o futuro, o espírito marcha nas trevas” (Tocqueville).

Com as novas descobertas da ciência moderna, a experiência do tempo se acelera na direção de um futuro que começa a dar inteligibilidade para o presente. “Progresso” é o nome deste modo de predomínio da categoria do futuro. No entanto, já no final do século XIX este modelo ou regime de temporalidade dá sinais e extenuação. Assim se pode falar de uma crise do futuro durante o século XX, o que nos permitiria mudar o adágio de Tocqueville, em: “quando o futuro não conduz mais o presente, o espírito marcha nas trevas”. É neste momento de crise que uma nova categoria se impõe: o presente. Neste sentido se fala de presentismo, como um novo regime de historicidade em que a inteligibilidade, ou a luz para iluminar o presente, vem do próprio presente, não mais do passado (Antiguidade), nem do futuro (Modernidade). Assim, é o presente que busca seu próprio ponto de vista sobre si.

Flusser parece coincidir com algo desta percepção de uma temporalidade outra quando ele fala de pós-história, mas ele pensa este novo momento em termos de uma filosofia da imagem (fotográfica).

IHU On-Line – Como compreender essas novas formas de pensamento em uma sociedade mediada pelas lógicas das imagens fotográficas?

Anderson Pedroso – Antes de tudo, é necessário compreender as imagens fotográficas, para além de uma perspectiva esteticista ou de uma leitura exclusivamente semiótica. Na medida em que a fotografia mostra algo, ela esconde a si mesma. Ela revela mentindo. É sua natureza, ou sua condição de possibilidade. Mas isso não é um problema, é só uma característica que a faz verdadeiramente (e flusserianamente) artística. Neste sentido, Flusser gostava de repetir um adágio de Nietzsche, segundo o qual a arte é melhor que a verdade (“Kunst ist besser als Warheit”).

De fato, Flusser insistiu no caráter filosófico que o gesto do fotógrafo encerrava. Foi em 1975 que Flusser participou do famoso Festival de Fotografia de Arles. Naquele momento, ele estabeleceu uma analogia entre a fotografia e a filosofia: elas são dois métodos de “dúvida metódica” em busca do melhor ponto de vista para obter uma imagem (ideia) de uma determinada realidade.

A partir desta analogia, Flusser considera que os dois métodos de representação da realidade encarnam a busca de um ponto de vista para obter uma imagem (ideia). E ainda mais, as duas práticas são feitas de reflexão: pelo espelho na câmera e pelas ideias na cabeça. Assim, ambas são métodos de reflexão realizados por meio de gestos decisivos (apertar o botão). Neste sentido, algo interessante aparece: assim como fotografar, pensar não é só uma questão de vista e de visão intelectual, mas do corpo inteiro. Em outras palavras, Flusser sugeriu que pensamos com o corpo, através de gestos. Assim, a gestualidade mesma é colocada no centro.

Filosofia a partir da fotografia

Mas do ponto de vista da imagem mesma, também há uma reflexão filosófica interessante de Flusser a partir da fotografia. A certa distância, uma fotografia analógica impressa em papel é vista como uma cena; mas se chegarmos bem perto, com ajuda de uma lupa ou microscópio, veremos apenas pontos e intervalos entre eles (na fotografia digital, vemos os pixels na tela).

Ora, inspirado na Filosofia Antiga, Flusser fala de duas visões do mundo, uma “heraclitiana” e outra “democratiana”. Sabemos que Heráclito pensava a realidade em termos de um rio (“tudo flui”), isto é, a realidade é fluida, derramando-se em uma direção. Já Demócrito pensava a realidade como uma chuva de átomos – que nos faz pensar uma nuvem de bits (clound!, diríamos hoje). Mais uma vez, esta ausência de direção (para frente), faz pensar nas teses sobre o presentismo. Em todo caso, com o advento da fotografia, passamos a esta nova percepção da realidade e de nós mesmos. A imagem formada projetivamente numa tela de computador de maneira binária (1-0) demonstra a estrutura da matéria: tudo o que existe é uma confluência de pontos e de vazios.

Na verdade, Flusser adotou esta ideia de uma visão contemporânea “democratiana”, a partir de uma obra do filósofo e historiador das ciências Michel Serres – um intelectual francês que morreu em Paris há poucos meses. Em todo caso, Flusser apontou para o fato de que existe uma relação ontológica entre a imagem técnica (composta de pontos) e a forma de pensar. Pensamos como vemos. Assim, o pensamento não se realiza mais de forma linear (histórica), movido pela categoria de progresso, isto é, na direção de um futuro que dá sentido ao caminho. O pensamento se torna circular, cênico, ainda em forma de constelação. Como consequência, emerge uma nova consciência, irrigada pela constante chuva de imagens técnicas (feitas através de aparelhos), que estamos todos banhados todos os dias (cartazes, TV, cinema, smartphones). Isso muda a relação do homem com a realidade e com os outros.

Imerso num universo que é calculável, o homem contemporâneo vive num mundo codificado. Visto do espaço, o globo terrestre é circundado de satélites e recoberto de uma rede de sinais de comunicação invisíveis (ou infra visíveis). Em outros termos, ele aparece então envolvido por uma aura espectral. Isso me parece muito próximo, pelo menos do ponto de vista imagético, de algo que Teilhard de Chardin (que Flusser leu e até citou) refletiu, com seu conceito de “noosfera”, como uma forma de consciência coletiva interplanetária que recobriria o globo terrestre, colocando tudo em uma outra ordem de comunicação – quiçá, comunhão (um termo teológico por excelência). É interessante, porque, em um momento de otimismo, Flusser fala de “comunhão cósmica”, como antítese de uma solidão humana diante das telas.

Novo sentido à imaginação humana

Em suma, para Flusser o que se deu depois da fotografia foi um novo sentido à atividade humana de imaginar. Agora, o homem imagina (faz imagem) com aparelhos que calculam os elementos pontuais do universo, agrupando-os para formar novas imagens, até então inimagináveis. Segundo Flusser, triunfos do mundo ocidental, a ciência e a técnica, destruíram a solidez do mundo em pontos (bits), que agora são recompostos em telas (superfícies aparentes). Consequência: o homem se desvincula do mundo material para viver numa sorte de relação com o impalpável. Este processo de abstração já é profundamente arraigado nas novas gerações. Algo que precisamos ter presente quanto às crianças e jovens de hoje, para além de nossas análises geracionais, muitas vezes um pouco estereotipadas.

Neste sentido, já no final dos anos 1970, Flusser confessa que seu interesse era cada vez mais concentrado no problema da estrutura da comunicação no ensinamento escolar. Ele considerava que a comunicação estava em crise, e era preciso repensá-la enquanto gesto e design, para além da questão dos conteúdos, cada vez mais disponíveis.

IHU On-Line – Flusser viveu no Brasil. Como foi a relação dele com o país?

Anderson Pedroso – Flusser tinha uma relação muito dinâmica, de fascínio e de reservas, com Brasil. Em um primeiro momento, nos anos 1950, ele chegou a falar do brasileiro como modelo do “novo homem”, enquanto homo ludens – que superaria o “velho homem”, o homo faber. Nos anos 1960, ele conheceu pessoalmente Guimarães Rosa, cuja obra o ajudou a chegar a uma compreensão bastante perspicaz do imaginário brasileiro (o Brasil profundo). Mas ele também conheceu outros intelectuais e artistas que contribuíam com a cena cultural urbana em São Paulo (a Pauliceia desvairada).

Em seguida, nos anos 1970, ele se tornou mais realista e crítico para com as elites conservadoras e uma certa classe média, conivente com o regime ditatorial, que não cultivava quase nenhuma profundidade intelectual e cultural, nem vontade de contribuir com o país, mas parecia unicamente interessada em manter seus privilégios econômicos. Neste momento, ele decidiu deixar o Brasil, motivado naturalmente, por muitas outras razões – entre elas, a busca de uma maior interlocução intelectual. No entanto, é importante dizer que entre Flusser e Brasil houve muita troca. Foi uma verdadeira experiência de “transfert” cultural.

Pessoalmente, ele soube se enriquecer culturalmente. Ele se sentiu acolhido em um país onde a alteridade era aceita de forma natural, como um elemento de enriquecimento mútuo. De fato, ainda hoje o estrangeiro é sempre visto como figura interessante, seu sotaque é muitas vezes motivo de imitação jocosa, mas nunca de desprezo. Ao contrário, há uma certa admiração pelo diferente. Isso é muito simpático. Talvez este sentido de uma alteridade aberta fascine ainda os estrangeiros. Enfim, Flusser compreendeu logo que se tornar brasileiro parecia não passar exclusivamente pelo domínio da língua (que ele acabou conseguindo), mas pela forma de pensar e agir, pelo jeito (o não-dito). Enfim, Flusser recebeu a nacionalidade brasileira em 1951 e tentou apropriar-se deste jeito de ver, viver e pensar próprios, sem nunca ter perdido suas origens, em termos de cultura de base.

Pensamento de Flusser

Neste sentido, talvez seja bom localizar, principalmente para quem ainda não conhece Flusser, o território geográfico e o “terreno” cultural onde, precisamente, se cultivou (e depois desterrou) o seu pensamento. Isso pode ajudar como chave de leitura dos textos de Flusser.

Como sabemos, Flusser nasceu e cresceu na Praga dos anos 1920 e 1930, um momento de grande florescimento intelectual, banhado pelo ambiente multicultural próprio de territórios de fronteira. Nesta região dos Sudetos (onde se falava alemão e tcheco), heranças culturais diversas e aparentemente inconciliáveis conviviam sem grandes problemas. Um bom exemplo é o fator religioso que, do ponto de vista dos estudos culturais, é um elemento importante (embora, não poucas vezes, negligenciado) na composição do imaginário que vai condicionar a forma de pensar e de agir.

Com efeito, Flusser foi educado no judaísmo tcheco cosmopolita dos anos 1930, que convivia com um cristianismo latino (catolicismo barroco, carregado de corporeidade) e uma proximidade com cristianismo oriental (ortodoxo, com sua forte tradição icônica). Estes três elementos de fundo religioso estarão presentes em seu pensamento mais profundo.

Interessante porque em sua autobiografia, Flusser conta que na sua fuga da perseguição nazista, ele pôde levar dois livros: um livro de orações judaicas, um Sidur (curiosamente dado por sua mãe, que ele descreve como uma mulher pouco religiosa) e o Faust de Gœthe, que ele conhecia quase de cor... O primeiro foi perdido durante a travessia, enquanto o segundo foi felizmente conservado. Assim, a questão da religião é algo pelo qual ele parece se interessar (de um ponto de vista cultural) como um continente perdido, que exatamente por estar imerso em águas profundas, continua a condicionar o presente. De outra parte, em terra firme, a sombra de Mefistófeles, o diabo perguntador de Fausto, parece ter acompanhado alegoricamente Flusser e mesmo, inspirado em suas práticas dialógicas.

É verdade que Flusser fazia parte de uma elite judaica que reivindicava um despojamento de certos pressupostos religiosos e se queria cada vez mais secular. Porém, neste ambiente ninguém escapava incólume dos condicionamentos culturais de um imaginário comum. De fato, em Praga, certos mitos judaicos eram ainda operantes como, por exemplo, o Golem, um hominoide desprovido de livre-arbítrio, feito de argila pelo rabino da cidade para ajudá-lo, que, no entanto, se rebela e ameaça dominar seu criador e aterrorizar os habitantes da cidade. Trata-se de mito que se tornou lenda no século XVI, inspirando o teatro folclórico yiidish e que inspirou muitas expressões artísticas no início do século XX (esculturas, fotos, filmes), numa sorte de prelúdio das ficções científicas atuais. Não é por acaso que os robôs cibernéticos serão considerados como último avatar deste “monstro” criado por mão humana.

Luta iconoclasta

Um outro traço da cultura de então é que, se nos ambientes intelectuais germânicos que ventilavam entre Praga e Viena, uma filosofia da linguagem, de ares místicos (Wittgenstein), despontava, nos ambientes artísticos europeus se buscava a autonomia da Arte, como reação a toda ideologia política que a queria domesticar nos anos 1930. Contra tais ídolos (Socialismo russo, Nazismo alemão, Fascismo italiano), os artistas pareciam reatualizar a ancestral luta iconoclasta, numa sorte de relação dialética com as imagens. Dessa forma, os habitantes de Praga viviam entre mitos, línguas e imagens de grande poder simbólico. Assim, não é por acaso que Flusser pensou a cultura, a comunicação e a imagem.

Cibernética

Depois de sua fuga da perseguição nazista em 1942, já no Brasil, Flusser entrou em contato com as tecnologias, especialmente nos anos 1950. É bastante conhecida esta fase de sua vida em que de dia trabalhava em uma fábrica de transformadores de rádio e de noite lia sobre filosofia. Assim tecnologia e filosofia eram temas ativos em sua cabeça. Nos anos 1960, ele entrou em contato com o mundo artístico, especialmente com a arte abstrata, que ele via como premissa e promessa da confluência entre arte e ciência. No final dos anos 1960, Flusser participou de eventos emblemáticos neste sentido, como as três “Bienais de Ciência e Humanismo”, que aconteceram consecutivamente durante as Bienais de Arte de São Paulo (1967, 1969 e 1971).

Isso explica por que o pensamento de Flusser parece ter assumido o viés informacional que ele absorveu de suas leituras de textos sobre a cibernética. De fato, ele acompanhou as peripécias da cibernética desde seu nascimento oficial, em 1948 (a “primeira cibernética”, de Norbert Wiener), até seu desenvolvimento em forma de uma análise sistêmica de auto-gestão, nos anos 1980 (uma “segunda cibernética”).

Assim, a cibernética atravessa transversalmente, como fio de ouro, as diferentes fases do pensamento de Flusser. Nos anos 1950 ele descobre a cibernética lendo certas obras especializadas e outras mais genéricas. Nos anos 1960, a cibernética emerge no careffour de suas reflexões sobre a língua e seu contato com a arte abstrata. Aliás, a arte abstrata sempre foi um lugar de grande interlocução de Flusser. Ele ainda conheceu pessoalmente Haroldo de Campos (poesia concreta). Nos anos 1970 a cibernética reaparece com força em suas reflexões mais maduras sobre a comunicação e pelo seu encontro, na França, com alguns artistas-cientistas, especialmente Nicolas Schöffer e Wen-Ying Tsaï.

Em 1975, ele participou ativamente do Festival da Fotografia, em Arles (França), com uma intervenção sobre a filosofia e a fotografia, através de um enfoque fenomenológico e sistêmico (cibernético). Este evento abriu-lhe as portas do mundo cultural europeu. Assim, o livro que fez famoso Flusser, “Filosofia da caixa preta” , não pode ser lido sem esta base cibernética: termos como input-output, feed-back, aparelho/aparatus, são a apropriação linguística de uma cultura sistêmica que estruturava seu pensamento paradoxalmente não sistêmico. Finalmente, nos anos 1980 Flusser levou ao máximo suas reflexões de natureza cibernética ou sistêmica, ao considerar a sociedade contemporânea completamente informatizada uma “sociedade telemática”.

Enfim, se o fundo cultural originário europeu é o substrato primeiro que irriga seu pensamento de base (crítica da cultura, teoria da comunicação e filosofia da imagem), ele é enriquecido com um percurso intelectual original que Flusser pôde fazer no Brasil e desenvolver, a partir da França, nos países vizinhos (de língua alemã). Mas Flusser se manteve sempre ligado ao Brasil, através de visitas e de uma rica correspondência com alguns de seus amigos e interlocutores, entre eles, Milton Vargas, que ele considerava como um alter ego. Talvez essas breves informações possam ajudar a iluminar alguns pontos cegos de nossa leitura dos seus textos.

IHU On-Line – Como, a partir de Flusser, o senhor apreende os fenômenos das “selfies” que são impulsionadas pelas redes sociais? O que essa relação do humano com a foto e sua imagem revela acerca de nosso tempo?

Anderson Pedroso – Acredito que já devam existir análises sobre esta questão das selfies, desde a psicanálise até o marketing, passando pela sociologia. Posso tentar responder do ponto de vista da história da fotografia. Antes de tudo, trata-se de experimentos pessoais e coletivos que revelam uma demanda experimental científica que atravessou o século XX. No azo da fotografia, há, portanto, dois traços fundamentais interligados: o lúdico (que contava com o azar) e o tecnológico (ancorado no cálculo). Assim, o jogo lúdico da fotografia se revelou como uma estratégia de “azar programado”.

Do ponto de vista da experiência estética, o desenvolvimento da fotografia mostra como a visão do homem foi se transformando pelo seu contato com as novas tecnologias. Basta pensar na “Nouvelle vision” que a fotografia dos anos 1920 encarnava e promovia. Esta “nova visão” era ao mesmo tempo de um mundo industrial e urbano, um mundo da velocidade e das máquinas, da linha direta dos trilhos dos trens que representavam bem a Modernidade e seu regime de temporalidade “futurista”. Consequentemente, um novo fotógrafo é encarregado de mostrar este mundo em imagens e o olhar do público também muda.

São interessantes, por exemplo, as famosas fotografias que Moholy-Nagy fez do prédio do Bauhaus: não há mais horizontal ou vertical onde se apoiar, algumas fotos podem ser vistas de cabeça pra baixo. O importante é a linha transversal, rompendo com a antiga visão fotográfica baseada na linha do horizonte. De fato, uma fotografia à la ancienne enquadrava tudo segundo as regras da perspectiva dos pintores do Renascimento. Esta visão não corresponde mais ao homem moderno do início do século XX, pois este homem é pedestre das grandes cidades, e nunca olha somente direto, mas move o olhar para cima, para contemplar os prédios, e para baixo, para olhar os automóveis. Enfim, o homem urbano começa a ver tudo em movimento e de modo oblíquo. A diagonal se torna a linha por excelência da cidade moderna e de suas vertigens.

Virtualidades

E as fotografias vão explorar estas virtualidades: fotos de grandes prédios ou das chaminés das usinas. Diferente dos pintores, o fotógrafo não se interessa da natureza, considerada muito desordenada... Logo, os fotógrafos fazem fotos do alto dos prédios, produzindo imagens vertiginosas da cidade. E a fotografia aérea, desenvolvida durante as duas guerras como estratégia militar, trabalha ainda mais este olhar do alto. Visto do alto, tudo parece mais simples, a ordem é coletiva, a complexidade do real desaparece atrás da abstração, do jogo de formas e luzes. De outro lado, a fotografia científica também desenvolve uma outra perspectiva deste olhar contemporâneo: se pode ver a realidade microscópica, o que permite uma nova concepção do corpo humano.

Associada à ciência e à técnica, a nova visão que atravessa o século XX celebra a era das máquinas e dos robôs. Mas, na segunda metade do século XX, tudo começa a mudar, tanto quanto à percepção da realidade, como aos condicionamentos materiais da fotografia: a fixação da imagem em papel fotossensível, através de um procedimento de revelação físico-químico feito em laboratório, começou a dar lugar à imagem digital, feita por câmeras portáteis. Estas últimas substituíram a câmera fotográfica analógica, que reinou durante o século XX. Característico do século XXI, estamos mergulhados em megapixels e a realidade virtual não nos é mais algo estranho. Isso tem uma consequência na experiência contemporânea: simultaneidade, megavisão e vida virtual. As selfies estão inseridas neste novo contexto, mas dão continuidade a esta demanda de uma prática experimental na história da fotografia.

Autorrepresentação

Já do ponto de vista estético, na história da arte os “auto-portraits” estão inscritos na tradição mesma das práticas artísticas autorrepresentativas de todos os tempos. Há algo de bonito em algumas selfies, talvez porque transparece algo de ingênuo, um desejo de fixação e de transmissão de uma emoção. Enfim, nem tudo é negativo, kitsch ou brega. Acredito que toda atitude esnobe com o que é popular deve ser seriamente questionada. Não deveríamos aumentar a ruptura social, afirmando uma arte (e um modo de ser) elitista, contra outra “popular”. Numa selfie coletiva as pessoas se juntam, há um momento de alegria, de fixação de um instante (tempo) em uma imagem (espaço) – desejo de eternidade? Tudo isso é muito próprio da fotografia, como experiência de tempo e espaço e como percepção estética de si mesmo, desde sua invenção há mais de um século.

Mas está claro: no caso das selfies, já não são mais os artistas pintores que, com ajuda de espelho e outras técnicas, pintavam a si mesmos. Agora é um aparelho que abstrai, recompõe e concretiza a imagem de uma pessoa, que pode inclusive “melhorar” alguns de seus aspectos exteriores, artificialmente retocados (photoshop!). Estamos diante de algo tão revolucionário, pois da manipulação da imagem, passa-se à manipulação do corpo e dos genes (DNA), o que pode ser praticado como algo tão banal. Talvez isto seja algo para se pensar mais seriamente.

Esta é precisamente a armadilha dos aparelhos, segundo Flusser: usando-os, somos usados e dominados por suas lógicas, no caso, a lógica do consumo, da aparência, da busca de seguidores virtuais, num ensaio de idolatria pessoal... Tudo isso tem um preço e são as grandes empresas que lucram, inchando o tempo presente com novas demandas consumistas: a cada dia aparecem novos gadgets, aplicativos, para comprar.

Experiência mercantilizada

Assim, o problema real parece ser o que o mercado faz com nossas experiências, e como somos condicionados e escravizados por suas lógicas e seus programas. Não sei o que Flusser diria sobre as selfies, mas com certeza ele provocaria alguma reflexão, justamente para quebrar as lógicas programadoras que estão por detrás deste fenômeno. Flusser provavelmente pensaria numa estratégia para se “jogar contra o aparelho” (o apparatus estatal, financeiro, comercial, cultural) e ganhar espaços sempre maiores de liberdade.

IHU On-Line – O fácil acesso à fotografia através de dispositivos móveis e o compartilhamento de imagens via redes sociais imprimem novas formas de percepção da experiência, do conhecimento e da relação entre seres humanos? Por quê?

Anderson Pedroso – Sim, talvez dando continuidade a algumas intuições de W. Benjamin (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica ), Flusser apontou uma transformação profunda da experiência humana pela transmissão das imagens, desde uma perspectiva tecnológica (cibernética). De fato, segundo Flusser, do ponto de vista material (hardware), os aparelhos se tornaram cada vez mais leves, adaptáveis, belos, isso graças a novos profissionais, considerados agora fundamentais: os designers!

Ao mesmo tempo, do ponto de vista interno (software), os programas se tornaram mais sofisticados, graças a outros profissionais, os programadores. Eles criam novos aplicativos (gadgets) que não param de se desenvolver – mais parecem bactérias tecnológicas que se associam, alimentam e assimilam umas às outras.

Do ponto de vista do usuário, acontece algo paradoxal: seu uso se tornou cada vez mais simples (basta um “touch”, ou mesmo um olhar – a retina), perde-se a noção de “como” isso acontece. Trata-se da “maldição da caixa-preta”, a saber: vemos a entrada e a saída (input-output), o estímulo e o resultado, mas não sabemos o que se passa dentro dela. Isso é profundamente ideológico. Em outros termos, não importa o processo, mas a eficácia. Um conceito que está associado à rapidez. Hoje tudo tem que ser imediato.

Presentismo

Aqui se manifesta um outro aspecto da teoria do “presentismo” que mencionei, que se estende na economia mediática. As redes sociais e os meios de comunicação mais variados sofreram uma metamorfose: a cada minuto se anuncia um acontecimento que se apresenta como “evento”, numa necessidade de renovação constante de tudo (das estruturas das coisas até as relações pessoais). A TV já mostrava isso abundantemente, mas também as mídias sociais, especialmente alguns dispositivos. O fenômeno do Twitter, do Facebook e do WhatsApp entraram para a história como ferramentas de campanha política e talvez acabaram por ajudar bastante nas últimas eleições nos EUA e no Brasil...

Mas, talvez, o mais representativo em termos de imagens seja o Instagram, em que há uma exposição contínua e concorrencial: tudo tem que acontecer, ser e ter, imediatamente – eventos! Mas isso tem seu preço e, na medida em que se percorre um perfil, junto com a fascinação, se dá a sensação do obsoleto que rapidamente recobre todas as “imagens-eventos” – e, consequentemente, todos os acontecimentos da vida. O Snapchat parece o filho caçula que se tornou bastante popular entre os mais jovens. Este aplicativo me aparece como um derradeiro sintoma desta rapidez que obriga a ver, ler, compreender e responder tudo imediatamente.

Nesta corrida contra o tempo e em busca de relevância imediata, as pessoas parecem fabricar um presente que se quer “histórico” antes mesmo de acontecer. Há uma avalanche de eventos acarretando numa contração extraordinária de nossa experiência de historicidade. Tudo isso acontece em tempos de capitalismo que prega a flexibilidade, a mobilidade em vista da eficácia. Não se fala em gestação, processo, muito menos em discernir (esta palavra-processo, bastante negligenciada), mas de estar pronto para responder a tudo instantaneamente, a toda solicitação (de amizade, de opinião, de pesquisa de satisfação...). Na maioria dos casos, não há tempo para se pensar, refletir, contemplar, e, finalmente, discernir, mas deve ser o primeiro a responder “em tempo real”. Isso já tem provocado algumas questões: somos obrigados a estar sempre online? Temos que dizer tudo de imediato: o que fazemos, como nos sentimos, numa transparência obrigatória? Neste sentido, nos deparamos com um paradoxo, segundo alguns estudos: numa sociedade que faz constante apelo à transparência, nunca se produziu tanta opacidade pela tecnologia. De fato, sabemos somente algo do que é feito de nossos dados eletrônicos pelo marketing e o mercado.

Consequentemente as milhares de (sub)celebridades do Instagram são vítimas do sistema que elas mesmas alimentam. Apesar de propagar uma liberdade invejável em todos os sentidos (ir e vir, vestir e despir), elas estão constantemente ameaçadas pela irrelevância. Isso explica a triste corrida por “imagens-eventos”. O vulgar assumiu um lugar jamais pensado. As pessoas estão dispostas a tudo. Paisagem interior desoladora que revela um enorme vazio atrás das mais coloridas imagens fotográficas. Flusser falava da imagem como uma tela fina, feita de nós e de espaços, como uma rede. De longe parece consistente, mas de perto não é mais que uma capa do vazio que se encontra atrás dela. Assim, muitas imagens, senão todas, expõem para esconder. Isso não é ruim do ponto de vista semiótico, mas quando a vida se confunde com a imagem, então é bem complicado. Diz-se que num mundo tão conectado nunca se experimentou tanta solidão. Às vezes as telas de TV, computador ou smartphone são “audiência para a solidão”.

IHU On-Line – De que forma a ideia arte, numa perspectiva histórica, é reconfigurada a partir (I) do advento da fotografia e (II) da massificação dos usos da fotografia?

Anderson Pedroso – A expressão reconfigurar a arte é interessante porque justamente é o que Flusser tentava. Ele parecia obstinado em restaurar a unidade perdida depois do Renascimento, entre arte e ciência moderna. Ele defendia com tenacidade, o que eu chamaria de uma “afinidade eletiva” entre a arte abstrata e a ciência tecnológica que se desenvolveram durante o século XX.

Em 1974, Flusser participou, no Museu de Arte Moderna de Paris, de um Congresso sobre o tema da imaginação contemporânea. Foi um evento importante para ele, pois afirmava sua convicção de uma tendência atual à reunificação entre arte e ciência, depois de um lapsus de quatro séculos. De fato, o Renascimento parece representar o último momento de unidade cultural em que a relação entre ciência e arte eram o sinal mais evidente. Mas, em seguida, por diversos fatores, a ciência moderna se impôs como um saber predominante, e a única prática legítima para chegar à verdade.

Consequentemente, a arte foi colocada de lado, ou mesmo lançada entre as realidades pouco sérias, “subjetivas” no sentido de falta de objetividade e valor cognitivo real. A grande questão é que, paradoxalmente, divertindo-se e criando outros mundos (brincando), o homem se desenvolve e realiza suas mais profundas virtualidades e habilidades (Schelling).

Flusser notou como durante o século XX, já nos primeiros anos, se dá um momento histórico de confluência entre arte abstrata e a ciência tecnológica. A confluência das duas estaria bem representada na fotografia, esta máquina de produzir imagens, que é na verdade sintoma de uma nova percepção do mundo e de si mesmos. Uma nova imaginação estava emergindo, pela qual o homem não era mais capaz de simplesmente imaginar fenômenos concretos, mas também de imaginar os conceitos. Isso evoca algo da “fantasia essata” de Leonardo.

E isso é possível ver com maior evidência a partir da segunda metade do século XX, por exemplo na arte minimalista, na arte conceitual, na vídeo-arte, assim como nas instalações com hologramas. O mesmo se deu da parte da própria ciência, quando observamos certos modelos de ácidos ribonucleicos e de sistemas de nebulosas que são artísticos, sem deixar de ser científicos, e vice-versa. Assim, a “imaginação exata” que tende a ultrapassar a distinção rigorosa entre arte e ciência. Com entusiasmo, Flusser designa este momento como uma “Nova Renascença”, embora ele tivesse que se resignar quanto a seus atores: “infelizmente nos falta um Leonardo” , dizia.

Leonardo, de quem estamos recordando este ano os 500 anos de sua morte, é a figura (híbrida?) do cientista que age como artista, isto é, com liberdade de imaginação, e, vice-versa, do artista que age como cientista, isto é, em constante busca de saber – sem portanto partir dos pressupostos científicos e suas pretensões. Em todo caso, nestas condições se dava a arte no Renascimento, através de uma experiência estética consciente de seu valor cognoscitivo, diverso daquele científico, mas, exatamente por isso, inovador e indispensável. O resultado é que ao lado de grandes obras (pintura, escultura, arquitetura) está uma miríade de invenções que não funcionaram, mas que faziam parte deste grande exercício de criatividade e sem as quais as obras de arte (obras-primas) não existiriam.

Arte e ciência

De fato, os artistas continuam utilizando tudo o que acham interessante, sem preconceito ou pretensão da verdade, para explorar suas ideias, intuições e emoções, de maneira sensorial. É neste sentido que a arte atual pode ajudar os cientistas contemporâneos, inclusive questionando a ciência quanto ao sentido dos seus métodos científicos e produtos tecnológicos. Aí se instala uma tensão, mas uma tensão criativa que constitui a relação entre o homem e a técnica. Então uma luta é necessária. E serão necessárias “artimanhas” da parte do homem-artista para dominar este bicho que ele criou. Assim a tensão provoca uma resistência criativa. Só a arte tem no seu DNA esta informação matricial criativa e inovadora para escapar de todo condicionamento que lhe diminui a liberdade.

Segundo Flusser, realidades novas nascem deste caldo, desta mistura: uma “arte pura” ou uma “ciência pura” são monstros estéreis, pois não geram nada de novo, repetem, quando não assustam, reprimem e aprisionam a imaginação do ser humano. O que Flusser faz é um tipo de paradoxal manifesto a uma “livre imaginação científica”, e também a uma “exata imaginação artística”. Isso é interessante, e parece se realizar, pois tanto os cientistas como os artistas estão intercambiando métodos. Alguns artistas criam com ajuda de logaritmos, enquanto alguns cientistas deixam a imaginação voar para além do preestabelecido.

IHU On-Line – O ser humano renascentista vê na arte uma forma de buscar o entendimento sobre si. Como a humanidade do século XXI, da técnica e da lógica, reconfigura a sua relação com a arte?

Anderson Pedroso – Como já mencionamos, até o Renascimento não havia uma separação radical entre arte e ciência, mas somente se mantinha uma distinção entre elas. Flusser parecia obstinado pela restauração da unidade perdida entre arte e ciência depois do Renascimento. E ele estava convencido de que era a tecnologia, a qual se desenvolveu no século XX, que tornaria possível tal façanha. Neste sentido, evocando o caráter urgente desta demanda, ele falava de um Novo Renascimento e afirmava que a partir de então: “todos os homens serão artistas”. Assim, Flusser trabalhou no interior deste reencontro entre arte e ciência, apostando na confluência de duas formas de pensar aparentemente inconciliáveis: a técnica e o humanismo, encarnados respectivamente na cibernética (pós-humanista) e em uma fenomenologia (anticartesiana).

De fato, Flusser, leitor de Heidegger, conhecia bem a crítica heideggeriana ao predomínio da técnica que a cibernética representava, como parte de sua reivindicação sobre a preponderância do ser, e suas tentativas de salvá-lo do esquecimento. Mas Flusser era também fascinado pela cibernética, termos que vem do grego kibernein (governar), e que instaura uma nova forma de conhecimento sistêmico baseado no controle da informação (input-output), pela dinâmica da retroação (feed-back). Enfim, se Heidegger denunciava a linearidade e calculabilidade da cibernética como a mecanização do pensamento e da vida (Maschenschaft), com o consequente fim da poesia e da filosofia. Flusser preferia enfrentar o monstro para convertê-lo em aliado: é melhor jogar para mudar o jogo! É interessante notar como ele, de formação clássica (humanista), sempre manteve um grande interesse pelas ciências duras.

A arte parece entrar naturalmente nesta dinâmica. Enquanto experiência criativa que comporta conhecimento, a arte é convocada pelo seu poder de “driblar” o que se apresenta como preestabelecido, de encontrar saídas “geniais” para impasses, e estabelecer uma nova relação com e entre as coisas. Neste sentido, Flusser gostava muito da palavra “artimanha”, que em português, especialmente no Brasil, tem uma conotação ambivalente: talvez faça pensar imediatamente no “jeitinho brasileiro...”, numa lógica de tirar vantagem – o que não deveria nos orgulhar... Mas também fala de uma forma de resistência criativa, de flexibilidade e de adaptação diante dos imensos desafios que a realidade socioeconômica impõe à maioria dos brasileiros. Assim, a arte entraria com aquela poética que equilibra a nossa relação com a vida profundamente marcada pelas lógicas da mecanização e da tecnologia – isso nos faz pensar na noção dos atos de resistência cultural em Michel de Certeau.

Artista não é gênio

Mas existe algo muito interessante quanto à figura do artista. Para Flusser, o artista não é visto mais como gênio, e não é mais divinizado como demiurgo, que imitaria a Deus, que cria ex nihilo. Ao contrário, o artista contemporâneo é visto (e admirado) por Flusser porque encarnaria o protótipo do novo homem, a saber, o homo ludens: aquele que brinca com informações, produzindo o imprevisível capaz de renovar todas as realidades. Na verdade, o jogo é sério e nele se joga a liberdade diante de todos os sistemas vocacionados ao totalitarismo, num mundo condenado ao envelhecimento e à morte por causa da segunda lei da termodinâmica, afirmava Flusser.

Mas o homo ludens não é a apologia ao infantilismo ou ao descompromisso. Ao contrário, encarna uma forma de exercer a liberdade, profundamente necessária para se aventurar no jogo, muitas vezes perigoso, de um mundo formatado e informatizado. Neste sentido, este homo ludens não pode jogar sozinho. A massa de informações que temos à disposição é tão grande que se faz necessária uma forma de memória coletiva, formada de memórias individuais (humanas) e memórias artificiais, num ensaio de transumanismo.

Trata-se de uma nova característica da contemporaneidade: a necessidade de dinâmicas e processos coletivos em todos os âmbitos (grupos de pesquisa, laboratórios, experiências comunitárias etc.). Algo paradoxal, dada a consciência subjetiva atual, tão individualizada. Da solidão diante da tela o homem pode chegar à comunhão cósmica (que naturalmente inclui a ecologia), passando necessariamente pelo comprometimento com a comunidade humana.

Design

Neste sentido, os estudos de design contemporâneos são um exemplo atual em que se manifesta esta “afinidade eletiva” entre arte e tecnologia. O design é algo que sempre esteve presente no pensamento de Flusser desde sua chegada ao Brasil.

Na primeira Bienal de São Paulo, em 1951, Max Bill venceu o prêmio de escultura com a obra “Unidade Tripartida”, e a escola de Ulm foi consagrada (com sua Gestalt). Na época, Flusser era um simples imigrante que tentava se integrar num país que, ainda movido pela ideologia do progresso, respirava ares de atualização. O problema é que se acreditava que a atualização deveria vir sempre de fora (Europa, EUA). Quase quarenta anos depois, em 1988, Flusser se reencontra com Max Bill, desta vez na Alemanha, durante um congresso sobre design. Então, Flusser já é conhecido e escutado. É uma fase muito feliz de Flusser, quando ele exerce sua missão de “Mefistófeles abrasileirado”, colocando novas perguntas, muitas vezes capciosas, com a finalidade de promover o diálogo e de aprofundar a reflexão.

Então, o design é considerado por Flusser como ponte, ou lugar de confluência entre a arte e a tecnologia, e adquire o status de um espaço onde se encarnam, abrigam e se revelam as mais pungentes lógicas contemporâneas. Interessante que Flusser pensa o design como fenômeno de criação de objetos materiais, profundamente ligado ao corpo. Aliás, como já acenei antes, isso é muito forte em Flusser: para ele, pensar é gesto físico também! Em todas as formas de arte, mesmo as mais abstratas, não podemos escapar de nossa natural (intrínseca) percepção da corporeidade.

O design mostra como estamos em diálogo constante com o corpo. Mesmo uma cadeira é diálogo com o corpo em repouso, de onde ela tira (extrai) sua forma. Neste sentido é também um gesto poético (de poiesis, produção). E se pode jogar e “brincar” com as formas e redesenhar a gestão das coisas, produzindo novas informações, em busca de uma experiência sempre maior de liberdade. Mas o design vai além dos objetos, pois ele propõe formas organizativas novas, do ponto de vista da gestão dos sistemas, pessoas e até da natureza (no sentido da sustentabilidade ecológica).

Como em um jogo de xadrez entre um iniciante e um jogador experiente. O iniciante, extremamente concentrado ou “focado” (uma expressão tão à moda...) só pensa em ganhar o jogo, isto é, ele pensa linearmente, numa relação causa-efeito). Já o jogador experiente, naturalmente descontraído, age subtraindo o máximo de informação de todas as situações, sobretudo das falhas, numa constelação de possibilidades. Ele não joga unicamente para ganhar o jogo ou para perder menos, mas ele joga para superar o jogo, isto é, para modificá-lo na medida em que explora jogadas ainda não estabelecidas. Neste sentido, Flusser considera em uma definição da arte, como uma prática limitada por regras que são modificadas na medida do seu desenvolvimento.

Certos aspectos do design, como o fenômeno contemporâneo de criação de objetos materiais e não materiais, são “arte”, no sentido flusseriano de artimanha, ou seja, uma forma lúdica de resistência aos condicionamentos (às lógicas dos sistemas: sejam eles econômicos, políticos ou culturais). E o mais interessante no processo criativo de certos designers é exatamente esta descontração que manifesta uma busca (e ganho) de liberdade, através de um necessário compromisso com as grandes causas da humanidade hoje, como a ecologia.

IHU On-Line – Como compreender o conceito de arte na atualidade?

Anderson Pedroso – Antes de tudo, me parece que Flusser tinha razão quando criticava como a mentalidade tecnicista reconfigurou e reduziu o conceito de arte. Durante a Modernidade, a arte, aparentemente glorificada, foi acumulada nos museus. Durante o século XIX, a fundação de museus e a aquisição (senão apropriação) de obras de arte foi algo extraordinário e mudou o cenário cultural. Mas, ao lado dos artistas consagrados de outras épocas (de Fra Angelico à De la Croix, passando pelos renascentistas), o artista comum, moderno e contemporâneo, começou a ser visto como alguém que não conta e, consequentemente, as coisas que ele produz (as obras de arte), não passam de pura diversão, esteticismo, para decorar, quando não, para deixar mais algum lugar mais “bonito”... O próprio Flusser fala da diferença entre o belo e o bonito (o “le beau et le joli”).

É verdade que os artistas sempre se rebelaram contra isso, ironizando esta concepção binária, redutiva e perversa. A arte contemporânea tem este viés de denúncia irônica, embora não seja o único. Em Paris, a própria concepção do museu de arte contemporânea, o Centre Pompidou, é emblemática: o edifício aparece em sua estrutura nua, sem fachada, como um corpo sem pele, que expõe propositalmente suas estruturas metálicas coloridas (simbolicamente seus ossos e veias). Uma ferida em meio à arquitetura do século XIX, em que predominam as grandes fachadas haussmanianas.

De fato, quando se fala em arte, o registro inicial de uma conversa é predominantemente binário, isto é, baseado na contraposição entre o belo e o feio, e as referências são a arte do Renascimento. Talvez seja uma das razões pelas quais muitas pessoas não conseguem compreender a Arte Moderna e, ainda menos, a Arte Contemporânea. É verdade que talvez a Arte Contemporânea se aproxima mais de uma nova experiência heurística, onde o sensorial e o conceitual estão em jogo de maneira muito particular, o que implica, por consequência, uma epistemologia própria. Ela parece mais apresentar perguntas fortes que oferecer respostas simples. Mas é evidente que os seus produtos (obras de arte) podem e devem ser questionados, especialmente por causa do mercado que se organiza em torno deles. Neste sentido Flusser fala do fenômeno do kitsch, não tanto por questões estéticas formais, mas por causa das lógicas que ele esconde. Poderíamos imaginar Flusser numa exposição do Jeff Koons: ele certamente faria uns comentários bem irônicos – e extremamente perspicazes.

Como e quando se dá a arte?

Em todo caso, sobre o conceito de arte, não sei se a pergunta mais conveniente neste momento seja: “o que é arte?” , mas talvez : “como e quando se dá a arte?”, ligada à questão do estatuto do artista que já mencionamos há pouco. Com certo humor, Flusser chamava os artistas de “desempregados natos”. Mas ele dizia isso porque admirava profundamente estes homens e mulheres que estão “fora do sistema” – a condição de possibilidade de renovar a realidade.

Mas existe outro aspecto que trata a arte em todos os tempos: sua relação intrínseca com a história humana e a confecção de seu imaginário, dando visibilidade, sob várias formas e aspectos, a seus momentos mais felizes ou dramáticos. Posso testemunhar uma forte experiência, diria uma emoção especial, diante do quadro de Paul Klee, Angelus Novus, emprestado pelo Museu de Jerusalém para uma exposição no Centre Pompidou (Paris). Fiquei comovido diante dessa obra de arte, que em termos técnicos não é extraordinária, mas que se transfigura como mensagem alegórica, ao estar relacionada com a história contemporânea dramaticamente marcada pelo horror das guerras e, particularmente, o extermínio dos judeus (Auschwitz). Quem conhece a obra de Walter Benjamin “Sobre o Conceito de História” não pode ficar inócuo diante desta obra de arte que ele tornou célebre na nona tese como o “anjo da história”. Pessoalmente acredito que esta relação viva e circular da arte com a História, numa constelação de objetos, sujeitos, circunstâncias e temporalidades (notoriamente reveladas por suas rupturas históricas), seja mais fascinante do que uma simples, embora necessária, história (linear) da arte em termos mais convencionais.

Neste sentido, o pensamento de Flusser sobre a arte se aproxima muito de uma ciência da arte (Kunstwissenschaft), que estaria entre a História da arte (que precisamente parte das obras de arte, a fim de compreender as questões de tais elementos materiais e intelectuais), e a Filosofia da arte, ou a tradicional Estética (que teria a tentação constante de se distanciar das obras, para se dedicar a questões de interesse mais teórico). Uma certa ciência da arte evitaria extremos de uma História da arte tentada ao fechamento em questões materiais bastante técnicas, e de uma Estética que pode sempre ceder à tentação de buscar confirmação de sua tese (ideias teóricas) nas obras de arte, sem conhecê-las historicamente, isto é, materialmente.

Um caso famoso é uma querela lançada por Derrida, que envolve Shapiro e Heidegger, sobre os pares de botas que Van Gogh pintou. Enquanto Heidegger (filósofo) compõe um belíssimo texto sobre como a obra de arte não representa o real, mas abre à verdade do ser, Shapiro (historiador da arte) estabelece uma lista de perguntas mais concretas (do tipo: de quem era este par de calçados? Não seria do próprio Van Gogh?) que ele buscará responder analisando os arquivos (cartas, documentos). Derrida, vendo nas botas simplesmente uma obra de pintura (despojada de seu ser de produto), questiona o conceito de verdade, perguntando-se também o quanto a arte é seu lugar de enunciação.

A arte é melhor que a verdade

Leitor de Heidegger, Flusser gostava de repetir o adágio nietzschiano: A arte é melhor que a verdade (“Kunst ist besser als Wahrheit”). Mas a noção de arte e de verdade que Flusser agenciava dependiam de suas leituras heideggerianas unidas à sua prática de revisitar os termos etimologicamente. Assim, Flusser parecia repropor o sentido grego da verdade (a-lètheia) como desvelamento da realidade. Neste sentido a arte é verdadeiramente um gesto poético (poiesis) para com a humanidade, pois o artista é aquele que é lançado no território da linguagem ainda não tematizada para fazer emergir (vir-a-ser) novas realidades. A partir desta perspectiva existencial, os autênticos artistas (em todos os domínios) se reconhecem como colocados nas “fronteiras do ser”. Mas, diferente dos temores de Heidegger, Flusser acreditava que a tecnologia poderia mesmo ajudar o homem a se lançar nesta aventura vertiginosa.

Neste sentido, Flusser deixou como legado a necessidade urgente de se refletir sobre uma “filosofia da tecnologia”. Ele considerava que as bases estavam postas desde Heidegger, Bachelard, passando pelos teóricos marxistas e pelos pensadores contemporâneos como Santayana. Mas é preciso continuar a pensar, pois, ainda segundo Flusser, não temos outra saída, pois mesmo que não queiramos nos interessar da tecnologia, ela se interessa por nós, e pode ser muito arriscado deixá-la falar sozinha... Ao contrário, todas as ciências e formas de saber precisam ser convocadas e ouvidas.

Finalmente, Flusser mantinha a característica muito peculiar do professor que se preocupava em comunicar suas teses, através da transmissão dialógica, para a transformação informativa da realidade. Por isso, ele buscava lugares e circunstâncias de aplicabilidade, em que suas reflexões se confrontariam com a realidade concreta. Um exemplo é sua participação no conselho regional de pesquisas (CNR) do Ministério da Educação na França. Durante uma reunião em 1982, ele propôs que se refletisse sobre o papel da criação artística no ensinamento científico e tecnológico do futuro, sugerindo superar a divisão de tempo livre e tempo de trabalho. Tal proposta me parece ter ainda mais sentido atualmente. Basta visitar um laboratório de robótica. Ultimamente, tive a oportunidade de visitar um na faculdade de engenharia da FEI (São Paulo). A sensação é estar em um atelier de tecnoartistas onde se trabalha jogando (homo ludens). Isto é genial.

Leia mais