Reformas levam a retrocessos e promoverão a “quebra” dos trabalhadores. Entrevista especial com Álvaro Roberto Crespo Merlo

Reprodução da obra "Retorno dos trabalhadores", de Sikeliotis Giorgios | Fonte: Galeria Nacional da Grécia

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: João Vitor Santos | 04 Mai 2019

O médico Álvaro Roberto Crespo Merlo defende o Estado forte, pois acredita que somente esse organismo é capaz de nos livrar da selvageria. É por isso que lamenta as reformas trabalhista e previdenciária propostas no Brasil hoje, pois querem diminuir dispositivos de proteção sobre os trabalhadores. “O trabalho é um fator de produção, mas é também um elemento que permite o acesso a direitos e a salário. Isso virá a contrabalançar o aspecto negativo do trabalho fator de produção, do trabalho fator flexível de produção”, observa. Assim, tais reformas visam retroceder essas conquistas do século XIX, com um único objetivo: “se propõe, basicamente, a adequar o trabalho no Brasil às novas exigências do capital financeiro”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o médico ainda aponta que “a desproteção social proposta levará, certamente, a um maior número de acidentes e de doenças do trabalho”. Ou seja, levando em conta apenas a questão numérica e da produção, vai-se corroendo a saúde dos trabalhadores, levando a casos extremos de esgotamento. “O que faz as pessoas sofrerem atualmente é a execução do trabalho com velocidade excessiva e sem os meios adequados. Então, as pessoas voltam para casa à noite, cansadas, gastas, mas, ainda por cima, com a impressão de terem feito mal o trabalho”, analisa. E alerta: “aquele que ‘quebra’ é um pouco a parte visível do iceberg”, pois são “os assalariados sentinelas, que, de repente, descompensam. E é fundamental se interessar sobre o que se passa com essa equipe de trabalho”.

Para Merlo, as resistências a essas lógicas que estão sendo impostas devem passar por um processo que repensa o próprio sindicalismo. “É necessário que os principais interessados – os próprios trabalhadores – consigam reconstruir seus instrumentos de luta (sindicatos, centrais sindicais etc.), que foram muito esvaziados por vários motivos nos últimos anos”, sugere.

Álvaro Merlo (Foto: Reprodução | YouTube)

Álvaro Roberto Crespo Merlo é médico do Trabalho, especialista em Saúde Pública pela Université Paris I (Panthéon-Sorbonne), doutor em Sociologia pela Université Paris VII (Denis Diderot). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, atua na Faculdade de Medicina, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS e é professor médico-assistente do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Entre os livros que publicou e ou organizou, destacamos Trabalho & Sofrimento: práticas clínicas e políticas (Curitiba: Juruá Editora, 2014), Atenção à Saúde Mental do Trabalhador: sofrimento e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho (Porto Alegre: Evangraf, 2014) e O Sujeito no Trabalho: entre a Saúde e a Patologia (Curitiba: Juruá Editora, 2013).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor atua no campo da Psicodinâmica do Trabalho. Em que consiste essa abordagem? A partir dela, como se traçam relações entre o trabalho e a saúde dos trabalhadores?

Álvaro Roberto Crespo Merlo – A Psicodinâmica do Trabalho - PDT tem origem em várias disciplinas: Medicina do Trabalho, Ergonomia, Psicologia do Trabalho, Sociologia do Trabalho e Psicanálise. Ela entende que o trabalho tem um papel fundamental na construção da identidade e, a partir daí, na construção da saúde mental dos indivíduos. Compreende que a relação com o trabalho é estabelecida na relação com o outro e pelo fato de que o trabalhador aporta uma contribuição, que, por sua vez, repousa sobre uma mobilização de recursos bastante profunda.

As pessoas aportam essa contribuição porque, em troca, elas esperam uma retribuição que é moral e simbólica. O que as pessoas esperam é que se reconheça a qualidade do trabalho realizado. As pessoas trabalham por esse reconhecimento, que precisa passar por avaliações de julgamento, que são proferidos por atores bem precisos, com os quais nós estamos em interação devido ao trabalho. Esse reconhecimento terá um papel fundamental sobre a construção da identidade.

De reconhecimento em reconhecimento, o indivíduo ultrapassa etapas, com as quais ele transforma a si mesmo. Essa transformação se dá pelo olhar dos outros como alguém que progride ao longo de uma vida que se realiza. De tal forma que, após o trabalho, pelo reconhecimento do outro, aquela pessoa adquire um status melhor do que o que tinha antes. E uma dignidade também que, talvez, ele não tivesse até este momento. Tudo isso vai no sentido da construção da saúde mental.

IHU On-Line – A reforma trabalhista aprovou medidas como o aumento da jornada de trabalho de 12 horas, a redução do intervalo para 30 minutos, o trabalho intermitente e o home-office. Em seu conjunto, como isso impacta a saúde dos trabalhadores?

Álvaro Roberto Crespo Merlo – A reforma trabalhista se propõe, basicamente, a adequar o trabalho no Brasil às novas exigências do capital financeiro, que se tornou hegemônico em todo o mundo, que se pode resumir em uma palavra: globalização. Tem-se a impressão, com todas as políticas econômicas e de emprego, de que é um mal necessário a priori e que se deve obrigatoriamente ter mais flexibilidade. É importante lembrar que o trabalho tem várias dimensões. A primeira dimensão, a mais evidente, é que o trabalho é um fator de produção. E que, enquanto fator de produção, evidentemente, ele vai evoluir, vai ser flexível, vai se adaptar à produção. Na construção do capitalismo industrial, em especial no século XIX, o trabalho era, antes de mais nada, um fator de produção, que permitia aos trabalhadores o acesso aos bens de consumo e a capacidade de viver, de comer etc.

Mas como ele tinha apenas essa dimensão, o trabalho foi se tornando cada vez mais penoso, mais fracionado, mais difícil para os trabalhadores, principalmente nas grandes fábricas. Como contrapartida, em oposição a esta dimensão, desenvolveu-se no final do século XIX e no início do século XX, principalmente a partir das lutas sindicais, uma segunda dimensão do trabalho. O trabalho é um fator de produção, mas é também um elemento que permite o acesso a direitos e a salário. Isso virá a contrabalançar o aspecto negativo do trabalho fator de produção, do trabalho fator flexível de produção.

Ao longo do século XX, construiu-se um enquadramento, que será chamado de direito do trabalho e, também, de proteção social. Um enquadramento que virá limitar o fator de produção e contrabalançar, dar uma contrapartida ao fato de que ele é penoso. Por exemplo, uma contrapartida evidente será a aposentadoria. A pessoa vai penar no trabalho toda a sua vida, mas em contrapartida terá direito a uma aposentadoria.

Portanto, há duas dimensões no trabalho. Tem a dimensão de seu caráter penoso, fator de produção, de se adaptar à produção, ser flexível. E há a dimensão de tudo que está ligado ao emprego, a proteção social e o direito do trabalho.

Limites da flexibilização

Quando se fala em política de flexibilidade que permita diminuir o desemprego, o déficit e a competitividade das empresas, a proposição que é feita é simplesmente diminuir esta segunda dimensão de proteção social e do direito do trabalho, para voltar ao trabalho unicamente como fator de produção. É uma volta atrás em relação a tudo que foi construído ao longo do século XX.

Quando se fala de uma necessária política estrutural para lançar o crescimento, é sempre o direito do trabalho e a proteção social, que é necessário diminuir, que se deve tornar mais leve ou mesmo suprimir. As políticas estruturais visam suprimir a segunda dimensão do trabalho, que é a dimensão do direito e das garantias coletivas.

Resumindo, pode-se dizer que a saúde do trabalhador ficará muito mais exposta. Com a diminuição das formas organizadas de defesa sindicais, o assalariado deverá buscar de forma individual tentar proteger a sua saúde e a sua aposentadoria. O que, na prática, todos sabemos que é muito difícil.

IHU On-Line – Como a flexibilização da legislação trabalhista afeta as políticas de saúde dos trabalhadores? E qual o peso das lógicas da austeridade no acompanhamento e vigilância da saúde do trabalhador?

Álvaro Roberto Crespo Merlo – Muitas medidas já foram tomadas no sentido da desproteção do trabalhador. O exemplo mais evidente é a extinção do Ministério do Trabalho. É importante lembrar que praticamente toda a legislação trabalhista foi construída ao longo do século XX a partir e como resposta às lutas dos trabalhadores. Lutas que se iniciam ainda no período anarco-sindicalista dos primeiros vinte anos do século e que serão formalizadas na primeira versão da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, sancionada por Getúlio Vargas em 1943. Ali estão colocadas respostas à maioria das reivindicações do período anarco-sindicalista. E que, evidentemente, foi sendo ampliada e aprimorada ao longo dos anos. A desproteção social proposta levará, certamente, a um maior número de acidentes e de doenças do trabalho.

IHU On-Line – Diante do cenário da reforma trabalhista, em que há um enfraquecimento de órgãos como Ministério Público e Justiça do Trabalho, quais os desafios para garantir as condições adequadas de saúde para os trabalhadores?

Álvaro Roberto Crespo Merlo – A perspectiva não é animadora. É necessário que os principais interessados – os próprios trabalhadores – consigam reconstruir seus instrumentos de luta (sindicatos, centrais sindicais etc.), que foram muito esvaziados por vários motivos nos últimos anos.

IHU On-Line – Em que medida a falta de segurança nas relações de trabalho e de seguridade do Estado, vindas a partir da proposta de reforma da Previdência, podem impactar a subjetividade dos trabalhadores? E em que medida afetam a saúde mental do trabalhador?

Álvaro Roberto Crespo Merlo – Como foi dito antes, saúde mental no trabalho depende das condições e das relações nos ambientes laborais. Para a proteção da saúde mental é fundamental que existam coletivos de trabalhadores, que se reconheçam como pares e não como concorrentes/inimigos, que é o que propõem os novos modelos de gestão.

É importante lembrar, também, que não são os mais frágeis que sofrem mais. É claro que tem assalariados que não estão em bom estado, que, às vezes, têm dificuldades em sua vida privada. De fato, contrariamente ao que se pode pensar é o assalariado mais autêntico, que tem mais vínculo com a execução do trabalho em boas condições, com bons meios, aquele que valoriza o trabalho executado nas regras da profissão, que vai descompensar. E, seguidamente, é o que é a referência na equipe, é aquele sobre o qual as pessoas se apoiam, ao que lhe pedem conselho. É o que está na linha de frente, que recebe toda a carga pelo fato de que destroem seu trabalho.

O que faz as pessoas sofrerem atualmente é a execução do trabalho com velocidade excessiva e sem os meios adequados. Então, as pessoas voltam para casa à noite, cansadas, gastas, mas, ainda por cima, com a impressão de terem feito mal o trabalho. Não o trabalho feito dentro das normas, que faz com que, mesmo se foi difícil, você pode colocar isso na construção de sua identidade, ter orgulho de si mesmo e do que você aportou para a obra coletiva. Saiamos da ideia de que são os assalariados frágeis e lembremo-nos de que são os assalariados mais ligados ao trabalho que "quebram" primeiro.

E não esquecer, também, que aquele que "quebra" é um pouco a parte visível do iceberg. É interessante ver que, talvez os outros não vão tão mal, ainda não vão tão mal, e que são os assalariados sentinelas que, de repente, descompensam. E é fundamental se interessar sobre o que se passa com essa equipe de trabalho.

IHU On-Line – Uma das propostas do projeto de reforma da Previdência em trâmite no Congresso é a de estender o tempo mínimo de contribuição para 35 anos para os homens e 30 para as mulheres, e idade mínima de 65 anos para aposentadoria. Dado o panorama da população idosa de hoje, como projeta a saúde física e mental do trabalhador nessa idade?

Álvaro Roberto Crespo Merlo – As perspectivas são muito ruins. Pelo menos metade da população economicamente ativa brasileira não tem contrato de trabalho e está, portanto, em uma situação de vulnerabilidade muito grande. O papel do Estado deveria ser o de proteger os mais vulneráveis e de ter um papel ativo na diminuição das desigualdades.

A retração que é proposta pela reforma da Previdência e a reforma trabalhista vai no sentido de um desmonte do Estado, que terá como consequência um aumento da pobreza e da violência social. Sou dos que pensam que um Estado forte é o que permite nos afastar das leis da selva pura e simples, onde os mais fortes/ricos vencem.

IHU On-Line – A expectativa de vida no Brasil hoje é, em média 75 anos, porém, pelas diferenças regionais, em alguns estados chega a 67 anos e em algumas cidades abaixo dos 65 anos. Qual a condição de saúde física e mental dessas pessoas que são obrigadas a trabalhar sem a perspectiva de chegarem à aposentadoria?

Álvaro Roberto Crespo Merlo – É fundamental lembramos que as médias sempre escondem as particularidades. E no caso brasileiro essas particularidades tem uma enorme dimensão. Basta buscarmos os resultados do próprio IBGE para vermos que são justamente as populações mais pobres e desassistidas que estão expostas às piores condições de trabalho, seja no campo como nas cidades.

No Brasil, a População Economicamente Ativa soma aproximadamente 79 milhões de pessoas ou 46,7%, índice muito baixo, uma vez que o restante da população, cerca de 53,3%, fica à mercê do sustento dos economicamente ativos. Em diversos países, o índice é superior, aproximadamente 75% atuam no setor produtivo. Cerca de metade da PEA no Brasil não possui contrato de trabalho e está colocada, portanto, em piores condições de trabalho, onde há mais riscos e mais insalubridade não controlada. Em que condições físicas e de saúde esses trabalhadores chegarão se as idades mínimas para aposentadoria forem alongadas?

IHU On-Line – O debate sobre a Reforma da Previdência é majoritariamente feito pela perspectiva da economia. Entretanto, como a Medicina, e outras ciências da saúde podem auxiliar na projeção das aposentadorias? Quais fatores deveriam ser levados em conta, que hoje ainda são descartados?

Álvaro Roberto Crespo Merlo – Uma parte da resposta a essa questão já está colocada nas respostas anteriores. Cabe acrescentar que o papel do Estado em sociedades minimamente civilizadas é oferecer proteção e assistência às populações mais desprotegidas. Uma política que não tente combater as desigualdades crescentes como vemos no Brasil hoje, trará, obrigatoriamente, mais sofrimento, adoecimento e violência.

A construção de um Estado protetor foi uma conquista da humanidade, que se inicia depois da crise econômica de 1929 e vai se aprofundar no pós-Segunda Guerra Mundial. Em um país onde os direitos mínimos de cidadania ainda não foram conquistados, tais como, acesso a uma educação de qualidade, de assistência de saúde, de segurança pública para todos e todas, os riscos da construção de uma política de Estado elitista, excludente e preconceituosa, como ocorre nesse momento, é de se caminhar para uma maior desagregação social.

 

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