27 Julho 2015
“Uma das grandes questões em aberto, tanto do ponto de vista interpretativo quanto do político, é que mandato tinham, têm e podem vir a ter Tsipras e o Syriza”, afirma o filósofo.
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A crise grega, que já dura cinco anos, “não tem nenhuma perspectiva de terminar – pelo contrário, tende a se agravar com as novas medidas”, avalia Rodrigo Nunes, que acaba de retornar de Atenas, após participar da conferência Democracy Rising, da qual também participaram pessoas como Tariq Ali, Costas Lapavitsas, Paul Mason, Zoe Konstantopoulou, Bruno Bosteels, Jodi Dean, Sandro Mezzadra, entre outros.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Nunes diz que há muitas questões em aberto em relação à crise grega, em especial ao novo memorando anunciado pelo governo grego, resultado do novo acordo com a Troika, e ao futuro político de Tsipras e do Syriza de modo geral.
Rodrigo Nunes lembra que o “Syriza se elegeu com a linha da ala moderada, majoritária, do partido: acabar com a austeridade sem sair do Euro. Se olharmos todas as pesquisas da época até hoje, parece ser este o desejo da maioria dos gregos”. Entretanto, pontua, “a questão é: é possível ter as duas coisas ao mesmo tempo? A maioria da população acreditou ou quis acreditar nisto, e a direção do Syriza também. Este é um dos motivos pelos quais Tsipras segue sendo popular: se errou ou se iludiu, seu erro e ilusão foram os mesmos de quase todo mundo”.
Na avaliação do pesquisador, “o grande erro” do Syriza foi que "eles nunca quiseram considerar, menos ainda preparar a população para a hipótese de que apenas uma destas coisas fosse possível, de que seria preciso escolher: ou acabar com a austeridade ou continuar na zona do Euro. Assim, eles não assumiram responsabilidade nem de puxar o debate, de maneira a forjar um novo consenso social que lhes garantisse um mandato mais claro (e viável), nem de preparar-se para a possibilidade real de um Grexit”.
Na prática, exemplifica, “isto implicou colocar-se numa posição em que, na hora H, eles seriam obrigados a optar pelo Euro ao invés do fim da austeridade – optar pelo Euro a qualquer custo, como foi o caso. Por quê? Porque para poder jogar com tudo, eles precisariam jogar com a ameaça de Grexit; e para jogar seriamente com a ameaça de Grexit, eles precisariam ter um plano. Não somente um plano de médio prazo, mas um plano de contingência imediato, capaz de responder como, amanhã, setores-chave da economia continuarão funcionando e não haverá caos. (...) Quando ficou claro que não havia plano B, o governo grego passou a ser como um jogador de pôquer que todo mundo sabe ter uma mão fraca. E isto ficou claro logo após o referendo”.
A dificuldade e a crise que o partido enfrenta atualmente, sublinha, “não quer dizer que era inevitável que ele chegasse a este ponto tão fragilizado e que, com outra estratégia, o resultado não pudesse ter sido diferente”.
Entre as alternativas possíveis para resolver o impasse grego, Nunes pontua que o “Syriza teria de adotar uma estratégia dupla, em que, ao mesmo tempo que demonstra à Europa seu esforço em implementar as medidas exigidas pelo memorando, não reprime os parlamentares que votam contra elas ou os ministros que as sabotam, muito menos as pessoas que se organizam para pará-las. Isto implicaria aceitar um máximo de tensão interna, sem deixar o partido rachar nem o governo cair, enquanto as forças para reabrir as negociações se acumulam – uma estratégia, evidentemente, de alto risco”.
Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É colaborador de diversas publicações nacionais e internacionais, como Radical Philosophy, Mute, Le Monde Diplomatique, Serrote, The Guardian e Al Jazeera. Como organizador e educador popular, participou de diferentes iniciativas ativistas, como as primeiras edições do Fórum Social Mundial e a campanha Justice for Cleaners, em Londres. Além disso, foi membro do coletivo editorial de Turbulence, uma revista influente entre os movimentos sociais da Europa e da América do Norte na segunda metade da década passada.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - O senhor esteve na Grécia recentemente. Pode nos falar qual é o clima no país neste momento da crise? Pode nos dar um panorama de qual é a situação em que se encontram os gregos nesse momento e de que modo a crise repercute no dia a dia deles?
Rodrigo Nunes - Cheguei em Atenas exatamente um dia depois da assinatura do novo memorando e fui embora exatamente no dia em que entrava em vigor o primeiro pacote de medidas exigido pelo novo memorando, votado no dia seguinte a minha chegada. Ou seja, estive lá na parte mais trágica da crise política que começara duas semanas antes, com a recusa de uma versão anterior deste memorando e a convocação do referendo em que o “oxi” [não] à proposta feita pela Troika saiu vitorioso.
É preciso, entretanto, entender que isto não é “a crise” para os gregos. A crise, para eles, é uma realidade que já dura há cinco anos e que não tem nenhuma perspectiva de terminar – pelo contrário, que tende a se agravar com as novas medidas. A crise, para eles, é uma contração econômica de 25%, desemprego acima de 25% (acima de 53% entre os jovens), um aumento de 43% da mortalidade infantil, 21% da população abaixo da linha da pobreza, um crescimento de 32% no número de suicídios. Ou seja: é a lenta transformação de um país desenvolvido num failed state, não apenas diante dos olhos de seus parceiros de União Europeia - UE, mas pela ação direta destes, que têm por artigo de fé que um governo democraticamente eleito não pode interferir com os interesses do mercado financeiro.
Além disso, dada sua posição geográfica e a crise no Oriente Médio após a invasão do Iraque pelos EUA e a reação à Primavera Árabe, a crise humanitária grega se inscreve no quadro de uma crise humanitária mais ampla. Há hoje o maior número de refugiados em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial, e a Grécia é uma de suas principais rotas de entrada, portanto também profundamente afetada pelo controle de fronteiras que tem causado tantas mortes no Mediterrâneo.
"A crise, para eles, é uma contração econômica de 25%, desemprego acima de 25% (acima de 53% entre os jovens), um aumento de 43% da mortalidade infantil, 21% da população abaixo da linha da pobreza, um crescimento de 32% no número de suicídios" |
Também por conta desta temporalidade longa, as reações em Atenas me pareceram como em câmera lenta. Em certo sentido, eles não têm por que ter pressa; um amigo, muito ativo politicamente, foi passar as férias numa ilha, dizendo que preferia descansar para estar pronto para o que virá. Mas esta lentidão tem outros sentidos: assimilar o golpe e entender o que aconteceu, ver como diferentes atores reagem, observar que novos alinhamentos ocorrerão. Por isto, não tomaria o tamanho relativamente pequeno dos protestos de 15 e 22/07 (quando da votação dos dois pacotes) como nada definitivo.
O novo memorando pode se demonstrar impossível de aplicar, e aí ou teremos uma negociação de verdade, ou um Grexit acordado, ou um “Grexit mediante insurreição”, como mesmo vozes conservadoras já sugeriram. O fato de que ninguém tenha muita clareza do que pode acontecer tem, me parece, um sentido positivo: tudo está ainda em aberto. A história ainda está sendo escrita. Aliás, é importante salientar que as medidas sendo introduzidas são preliminares à concessão de um novo empréstimo; o empréstimo em si ainda não está resolvido.
IHU On-Line - Como interpreta a mudança de postura do Tsipras, ao negociar novamente com a Troika, após sugerir um referendo a partir do qual a população apoiou o não pagamento da dívida grega?
Rodrigo Nunes - Uma das grandes questões em aberto, tanto do ponto de vista interpretativo quanto do político, é que mandato tinham, têm e podem vir a ter Tsipras e o Syriza.
O Syriza se elegeu com a linha da ala moderada, majoritária, do partido: acabar com a austeridade sem sair do Euro. Se olharmos todas as pesquisas da época até hoje, parece ser este o desejo da maioria dos gregos. Não há dúvida que, caso tivesse assumido na campanha uma linha pró-Grexit, o partido dificilmente teria sido eleito, ou pelo menos não com uma margem que lhe permitisse governar.
A questão é: é possível ter as duas coisas ao mesmo tempo? A maioria da população acreditou ou quis acreditar nisto, e a direção do Syriza também. Este é um dos motivos pelos quais Tsipras segue sendo popular: se errou ou se iludiu, seu erro e ilusão foram os mesmos de quase todo mundo. Uma amiga grega contou-me que, logo após a eleição, os mais velhos falavam dele como se fosse um filho. Ao mesmo tempo, isto sempre foi acompanhado de uma certa subalternidade: ele era o pequeno Davi que ia enfrentar o Golias europeu. Assim, quando ele volta derrotado, as pessoas não só não o culpam – ele sempre foi o lado mais fraco –, como reconhecem nele um esforço de ir até o fim na tentativa de representá-las.
Falou-se muito em “capitulação” e “traição”, como se fossem sinônimos. Ora, é evidente que houve capitulação: "capitular" é justamente aquilo que faz um general quando é derrotado. Não há qualquer contradição entre ser vítima de um golpe, como afirmava a hashtag #ThisIsACoup, que virou trending topic global durante as negociações de 12 e 13/07, e capitular. Falar em “traição”, por outro lado, está longe de dar conta da complexidade do caso.
IHU On-Line - Em que sentido? Afinal de contas, Tsipras foi contra a vontade expressa no referendo.
Rodrigo Nunes - Vamos continuar com a questão do mandato: acabar com a austeridade sem sair do Euro. Qual foi o grande erro da direção do Syriza? Eles nunca quiseram considerar, menos ainda preparar a população para a hipótese de que apenas uma destas coisas fosse possível, de que seria preciso escolher: ou acabar com a austeridade ou continuar na zona do Euro. Assim, eles não assumiram responsabilidade nem de puxar o debate, de maneira a forjar um novo consenso social que lhes assegurasse um mandato mais claro (e viável), nem de preparar-se para a possibilidade real de um Grexit.
"A situação é tão volátil que qualquer prognóstico é arriscado" |
Na prática, isto implicou colocar-se numa posição em que, na hora H, eles seriam obrigados a optar pelo Euro ao invés do fim da austeridade – optar pelo Euro a qualquer custo, como foi o caso. Por quê? Porque para poder jogar com tudo, eles precisariam jogar com a ameaça de Grexit; e para jogar seriamente com a ameaça de Grexit, eles precisariam ter um plano. Não somente um plano de médio prazo, mas um plano de contingência imediato, capaz de responder como, amanhã, setores-chave da economia continuarão funcionando e não haverá caos. Justiça seja feita, a Plataforma de Esquerda – segunda maior corrente do Syriza, que se opõe ao novo memorando e desde o início defendia a necessidade de preparar-se para esta possibilidade – também não pôs nada na mesa.
A falta de um plano B
Quando ficou claro que não havia plano B, o governo grego passou a ser como um jogador de pôquer que todo mundo sabe ter uma mão fraca. E isto ficou claro logo após o referendo.
O referendo servia para pedir um novo mandato, ou uma clarificação do mandato concedido pelas eleições. Mas ele também envolvia uma jogada de alto risco, porque marcá-lo para uma semana depois de 27/06 implicava depender de uma extensão do acordo então em vigor para além da data final de 30/06. Este acordo era necessário para que o Banco Central Europeu - BCE continuasse garantindo a liquidez dos bancos gregos, que estava se esgotando.
A aposta, algo desesperada, era: a Europa vai respeitar o processo democrático, não vai deixar o país quebrar enquanto a população é consultada. Mas foi exatamente o que aconteceu, porque havia um interesse direto na vitória do “sim” e na queda do governo – a oposição grega chegou a ser chamada a Bruxelas para discutir um futuro “governo de união nacional”. Então, não há extensão, e o BCE se nega a garantir a liquidez dos bancos, o que aumenta a pressão sobre o governo grego, que precisa impor controle de capitais. Daí para frente, eles “negociarão” sabendo que o país está quebrando, e rápido.
Ou seja: a partir da convocação do referendo há um risco palpável de saída do Euro, talvez até mesmo apoio popular para tanto – mas não há um plano. Pior: você tem um país às vésperas da bancarrota, em que 61% da população concede ao governo um mandato para endurecer nas negociações, mas este não tem ideia do que fazer daqui a alguns dias, que dirá meses. Estamos falando de questões básicas, como qual fonte alternativa de crédito pagará pelo funcionamento de áreas-chave até as coisas se normalizarem. Tsipras tinha chegado a fazer aproximações com a Rússia, mas ou estas conversas não avançaram, ou eram apenas um gesto para fortalecê-lo diante da Europa. Como revelou Yannis Varoufakis, logo depois do referendo ele propôs um plano, mas a maioria do “pequeno gabinete” de Tsipras preferiu a outra opção – entre outras razões, porque já era tarde demais.
É por isso que, já no dia seguinte ao referendo, Tsipras começa a dar sinais de rendição. E aí as outras partes sentem cheiro de sangue. Ouvi de Aristides Baltas, ministro da Educação, que Tsipras foi a Bruxelas negociar sabendo que dali a dias acabaria, por falta de combustível, o abastecimento de água para algumas das ilhas. Quer dizer, Tsipras estava definitivamente negociando com uma arma na cabeça. O que não quer dizer que era inevitável que ele chegasse a este ponto tão fragilizado e que, com outra estratégia, o resultado não pudesse ter sido diferente.
IHU On-Line - E qual tem sido a posição de Tsipras e do Syriza depois da assinatura do novo memorando?
Rodrigo Nunes - Uma coisa que não deixa de ser louvável é que Tsipras não tentou vender o novo memorando como uma vitória. Pelo contrário, ele já disse abertamente não acreditar que ele seja bom, nem que vá funcionar. Aliás, o FMI já disse o mesmo, e o próprio fato de que eles o afirmem publicamente já põe o acordo em dúvida. Ninguém acredita que o fundo de privatizações possa de fato atingir os €50 bilhões esperados, por exemplo.
Dizer isto é simplesmente manter-se coerente com a análise de que a Grécia chegou a um limite de depressão econômica e crise de reprodução social (isto é, das próprias condições de vida da população) e não há mais o que tirar daí. Isto significa que as novas medidas (aumento de impostos, mudanças na previdência, privatizações totalizando €50 bilhões etc.) não levantarão os fundos necessários e deverão encontrar fortes resistências na sociedade e dentro do próprio governo, talvez ao ponto de impossibilitar sua implementação.
"É evidente que tanto a liderança do Syriza quanto boa parte da população tem um grande apego ao projeto europeu" |
Quando isto acontecer, vamos poder conhecer a resposta àquela que é a grande pergunta agora: que tipo de relação o governo vai manter com um acordo que é péssimo sob todos os aspectos menos dois – a duração de cinco anos, que afrouxa um pouco a corda no pescoço do estado grego, e uma promessa de debate sobre reestruturação da dívida no futuro – e que é diretamente contrário a praticamente todos os seus compromissos de campanha, menos o de continuar no Euro?
A esperança de muita gente, inclusive dentro do Syriza, é que uma mudança de rumo acabe se tornando inevitável em virtude da resistência social, forçando uma renegociação com a Europa ou mesmo um Grexit mais à frente. É claro, contudo, que para isso o Syriza teria de adotar uma estratégia dupla, em que, ao mesmo tempo que demonstra à Europa seu esforço em implementar as medidas exigidas pelo memorando, não reprime os parlamentares que votam contra elas ou os ministros que as sabotam, muito menos as pessoas que se organizam para pará-las. Isto implicaria aceitar um máximo de tensão interna, sem deixar o partido rachar nem o governo cair, enquanto as forças para reabrir as negociações se acumulam – uma estratégia, evidentemente, de alto risco.
Incerteza
Pode ser, por outro lado, que o instinto de sobrevivência política leve Tsipras e a liderança a decidir que o único caminho agora é fazer o acordo valer, o que implicaria assumir o ônus de voltar a reprimir as manifestações, que haviam deixado de sê-lo nos últimos cinco meses, e abrir uma briga dentro do partido. O resultado seria ou um desafio à liderança de Tsipras ou um racha, com a saída dos rebeldes. Neste caso, o Syriza poderá continuar governando com o apoio de Nea Dimokratia, To Potami e Pasok, com cujos votos contou na votação dos dois primeiros pacotes, mas terá para todos os efeitos práticos se tornado um partido pró-austeridade, o que terá um custo político. Dificilmente um partido formado pelos rebeldes, sozinhos ou em aliança com o Antarsia, teria grande viabilidade eleitoral, pelo menos no futuro próximo. Em todo caso, a situação é tão volátil que qualquer prognóstico é arriscado.
O que há de certo até aqui é que Tsipras já declarou que não pretende incorporar novos partidos à coalizão e que, diante da rebelião nas duas votações, houve mudanças ministeriais, mas ainda não se falou em expulsões. Além disso, houve um realinhamento interno no partido, com um grupo rompendo com a ala majoritária, o que significa que esta perdeu o controle sobre o Comitê Central do partido – de onde que este último tenha se manifestado contra o memorando, com 109 votos num total de 201. Isto pode fazer com que seja impossível expulsar os rebeldes; também significa uma ameaça ao controle de Tsipras.
IHU On-Line - E qual será o papel dos movimentos sociais e da população grega nisso?
Rodrigo Nunes - Voltemos à questão do mandato. Disse que “provavelmente” teria havido apoio popular para o Grexit após o referendo porque toda a campanha do governo foi de que o “não” não implicava necessariamente sair do Euro – ou seja, continuava operando dentro daquilo em que todo mundo queria acreditar. Retrospectivamente, penso que teria sido melhor que houvessem duas perguntas: uma sobre aceitar ou não o memorando então proposto, outra sobre o que fazer caso não fosse possível acabar com a austeridade mantendo a moeda comum. Só assim teria emergido um mandato claro.
Desde então, vi uma pesquisa apontar que 70% dos gregos continuam pró-Euro e outra em que 42% (contra 45%) dizem que o país deve se preparar para o Grexit... (Esta última, uma pesquisa online). Nas ruas, ouve-se de tudo: que não havia outro jeito e Tsipras fez o que dava, mas também que até a oferta de uma saída controlada oferecida pelo ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, teria sido melhor que este acordo.
"Ouvi de Aristides Baltas, ministro da Educação, que Tsipras foi a Bruxelas negociar sabendo que dali a dias acabaria, por falta de combustível, o abastecimento de água para algumas das ilhas. Quer dizer, Tsipras estava definitivamente negociando com uma arma na cabeça" |
É evidente que tanto a liderança do Syriza quanto boa parte da população tem um grande apego ao projeto europeu. É preciso lembrar que, junto com França e Portugal, a Grécia não só estava entre os membros-fundadores mais pobres da UE, como tem a particularidade de ter vivido golpes de estado, ameaças de guerra civil e ditaduras na segunda metade do século XX. Para eles, a UE sempre significou deixar este passado para trás, abrir-se para o mundo, modernizar-se.
Este apego, como vimos, acabou sendo uma fraqueza decisiva na hora de negociar. Aliás, agora que sabemos que Schäuble, contra Angela Merkel, sempre defendeu o Grexit, podemos entender os termos draconianos do último memorando como uma tentativa de forçar a saída da Grécia. E ainda assim o governo grego ficou, pois já não tinha outra escolha.
Questões não respondidas
A questão é, então, o que este novo memorando significará para este apego. Será ele o choque que faltava para uma ruptura subjetiva? Isto é, para que as pessoas se deem conta de que a UE tal como existe hoje não corresponde mais àquele projeto, que não haverá fim da austeridade sem romper com a união monetária, e que vale a pena correr o risco? Ou ele fará com que as pessoas se acomodem, desistam de tentar mudar as coisas e eleger governos que desafiem a Troika, que é sem dúvida o que esta pretendia?
Uma coisa é certa. Se o erro do Syriza foi não ter aberto este debate antes, não ter investido na mobilização desde baixo nestes últimos cinco meses, uma suposta estratégia de “acumulação de forças” agora só fará sentido se vier acompanhada disto. Nem a opinião pública, nem o mandato concedido ao governo podem ser concebidos como quantidades fixas; as condições subjetivas também são parte da história que se está escrevendo.
Obviamente, isto não cabe apenas ao Syriza, do qual não sabemos nem se optará de fato por esta estratégia. Quando das recentes eleições municipais espanholas, escrevi um texto em que falava da vantagem de lideranças “frágeis”, que não estão seguras de ser seguidas. Este é o tipo de relação que o Syriza tem com os movimentos gregos, que estão longe de ser “correia de transmissão” do governo. É verdade que houve uma relativa desmobilização após as eleições, mas isto foi menos por “ordens superiores” que porque as pessoas decidiram pagar para ver. Até uma parte dos anarquistas gregos, notórios por seu militantismo, deram um voto de confiança público ao governo.
Estado X organizações de baixo
É fácil agora olhar para estes movimentos e chamá-los de ingênuos, dizer que eles deveriam saber que aquilo que aconteceu estava fadado a acontecer. Mas não há ingenuidade nenhuma. Se você está há anos trabalhando numa cozinha coletiva ou numa clínica de saúde gratuita, como existem várias na Grécia, sem ver perspectiva de um fim para a crise, e há um aceno de possibilidade de mudança institucional, é natural que você queira explorá-la. É muito fácil, olhando de longe, dizer que as pessoas deveriam ignorar o Estado e seguir se organizando desde baixo. Mas, se você está lá, isto é a sua vida, o seu tempo, a sua energia, e ninguém tem fontes inesgotáveis de energia, especialmente se não há saída à vista no horizonte.
O que farão agora estas experiências de auto-organização, que já foram chamadas de Plano C, por oposição ao A (austeridade) e ao B (Grexit)? Esta é outra das perguntas em aberto. Idealmente, o governo, agora que tem restrições orçamentárias ainda mais duras, daria mais apoio a estas alternativas, sem tentar aparelhá-las, ao mesmo tempo em que estas se afirmariam como pólos de politização e resistência.
"A única solução para a dívida grega é uma moratória" |
IHU On-Line - A melhor opção para a Grécia seria abandonar o Euro?
Rodrigo Nunes - Esta dívida é imoral, porque essencialmente uma dívida de bancos reciclada como dívida soberana, mas é, sobretudo, impagável, porque não há mais o que extrair de uma economia enfrentando a recessão mais longa num país desenvolvido desde a Grande Depressão.
Acontece, porém, que a Eurozona tal como é hoje jamais permitiria que um país-membro declarasse moratória contra o BCE e outros países-membro. Além disso, um país na condição da Grécia precisa ter uma moeda própria para poder desvalorizá-la, a fim de dar partida à economia novamente. Ou seja, a saída do Euro é, para quem a defende, uma consequência da necessidade de uma moratória. É uma avaliação da conjuntura atual. Não é uma tomada de posição ideológica, soberanista, contra a UE, como o é para a extrema direita, como UKIP (Inglaterra) e Frente Nacional (França) – cujo possível crescimento, aliás, é um risco que a Troika claramente assumiu ao fazer o que fez.
Há ainda uma outra questão, que é se um país poderia se desligar da moeda única sem ser expulso da UE. Os gregos apostam que não, mas aí estamos no campo da pura política: não existe nenhum regulamento que preveja o que acontece em caso de saída, seja da Eurozona, seja da UE.
IHU On-Line - O que a crise grega significa em nível de Europa? E como a capitulação do Syriza afeta partidos como o Podemos, na Espanha?
Rodrigo Nunes -
Saíram pesquisas na última semana apontando uma queda do Podemos e do Sinn Féin (Irlanda), que também vem se posicionando como anti-austeridade. Analistas apressaram-se a ver aí um reflexo do Syriza. Não estou tão seguro. No caso do Podemos, vejo uma perda de entusiasmo causada por problemas internos do partido, cuja direção não tem sabido entender sua condição de “liderança frágil”.
Contudo, o que eu disse sobre a população grega vale também para Espanha, Irlanda, Portugal e outros. O que foi feito com a Grécia tinha uma função exemplar, mandava uma mensagem: não adianta eleger quem promete mudar as coisas, a Europa obrigará estes governos a se dobrarem e punirá seus eleitores pela audácia. Era para provocar medo mesmo, e este medo pode gerar acomodação.
Por outro lado, não é justamente este tipo de coisa que a UE foi criada para evitar? Ela era a promessa do fim das guerras dentro da Europa, a realização de um imaginário do continente como força civilizatória e progressista no mundo. E o que se viu foi o governo democraticamente eleito de um país europeu ser tratado com a mesma truculência que este projeto "civilizatório" normalmente exportou para fora de suas fronteiras, ser sujeitado a uma condição praticamente neocolonial.
Raiva X medo
Isto também gera raiva, que é um afeto capaz de superar o medo. Há uma série de fissuras que se abriram neste processo, entre França e Alemanha, dentro da Alemanha (entre Merkel e Schäuble), sobretudo dentro da cabeça de muitas pessoas: esta não é a Europa que nos prometeram, não é a nossa Europa.
Qual afeto vencerá, se o medo ou a raiva, dependerá da capacidade de resposta dos movimentos em toda a Europa. O próprio presidente do Conselho Europeu disse há alguns dias que sente, “se não um estado de espírito revolucionário, algo como uma impaciência disseminada. Quando a impaciência deixa de ser um sentimento individual para se tornar uma experiência individual, para se tornar uma experiência compartilhada, é o anúncio de uma revolução”.
Bom, se há alguma coisa que as instituições europeias demonstraram nas últimas semanas, é que elas estão precisando de uma boa chacoalhada. Tomara, então, que ele tenha razão.
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A história grega ainda está sendo escrita. Entrevista especial com Rodrigo Nunes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU