21 Julho 2025
"Se alguém me perguntasse como é estar em guerra, eu responderia: 'Significa abraçar seu filho que soluça e pede que você lhe prometa que nada de ruim lhe acontecerá. Significa ver seus vizinhos saindo em busca de seus entes queridos à luz de um celular. Significa saber que você não pode prometer nada.'"
O artigo é de Majd al-Assar, habitante de gaza, publicada por La Stampa, 20-07-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Tenho 33 anos e sou mãe de duas crianças, Salahuddin, de 10 anos, e a pequena Nay, de 7. Somos deslocados do norte de Gaza e atualmente estamos no campo de Nuseirat, no centro da Faixa. Perdi a conta de quantas vezes fomos forçados a fugir depois de 7 de outubro de 2023. Os deslocamentos se tornaram uma parte substancial do nosso cotidiano. Estamos sempre em movimento. Sempre em busca de uma segurança que nunca chega. Desde aquela terrível manhã de outubro, toda rotina desapareceu de nossas vidas. As crianças costumavam acordar e se preparar para a escola, começando o dia com seu café da manhã favorito: um copo de leite morno, pão e omelete. Hoje, não há escola. Não há leite. Não há omelete. As manhãs começam na fila: uma para se lavar, outra para a água potável. O dia 7 de julho começou diferente de qualquer outro dia dessa guerra e dessa carestia. Às 9h, Salahuddin e Nay voltaram para casa, exaustos pelas filas intermináveis em que ficaram. Tiveram que carregar pesadas latas de feijão com suas próprias forças. Preparei chá para eles, sem biscoitos, sem pão, mas eles ficaram gratos porque ainda havia um pouco de açúcar. Até o açúcar é um tesouro raro.
Em 653 dias de Holocausto Palestino, vi Anas al-Sharif cobrindo o assassinato do pai em bombardeio israelense na casa da família. Vi a filha dele nascer. Vi ele anunciando o "cessar-fogo" em janeiro.
— Marcos Feres 🇵🇸 (@marcosvmf_) July 20, 2025
As pessoas dizem ao fundo do vídeo: "Continue, Anas, você é nossa voz" https://t.co/9veD8A9biE
Mais tarde naquela manhã, acompanhei Nay ao posto de saúde da UNRWA mais próximo para a vacinação, que geralmente é administrada antes do início do ensino fundamental. O ano letivo, no entanto, nunca começou. Dezenas de milhares de crianças em Gaza perderam dois anos inteiros de escola. Não havia transporte. Nada de táxis, nada de ônibus, nada de carro. O combustível tornou-se quase impossível de encontrar e, quando se encontra, custa mais do que uma família pode pagar. Então, não havia outra coisa a fazer: tivemos que caminhar os 1,5 quilômetros a pé sob o sol escaldante. Eu tinha meus documentos e uma garrafa d'água comigo. Sabia que levaria horas até voltarmos. Com suas pernas minúsculas, Nay se cansou logo. Ela ficava me perguntando se já tínhamos chegado, com a voz embargada pelo cansaço. Paramos à sombra de um muro em ruínas para beber. Seu rosto estava vermelho e suado, sua respiração acelerada, mas ela não reclamou. Na verdade, estava eufórica. Ela pegou minha mão e perguntou: "Mãe, é verdade que vão me vacinar para que eu finalmente possa ir à escola? Minha amiga me disse que o pediatra fez um check-up geral antes de começar a primeira série. Eu também vou para a primeira série, mamãe?" Não soube como responder. Sorri e assenti, mesmo que seu primeiro ano de escola nunca tenha acontecido. Aqui a vida está suspensa. Só a morte está em constante movimento.
No caminho para casa, fomos ao mercado procurar farinha. Sob o sol escaldante do meio-dia, as barracas não tinham nada. Na verdade, os comerciantes estão escondendo os estoques, caso as negociações de cessar-fogo fracassem. Estão esperando para vender a preços mais altos. Depois de horas procurando, finalmente encontrei um pacote de farinha. Estava vencido; eu sabia que não devia ser consumido, mas não tinha alternativa. Pensei em peneirá-lo cuidadosamente, deixá-lo ao sol, e talvez as crianças não fossem perceber. Finalmente, voltamos para nossa barraca, troquei de roupa e comecei a preparar o pão. O pão ficou rançoso. Salah provou primeiro, percebeu que não estava bom, mas continuou a comê-lo em silêncio. Nay estava feliz; disse que era sua "refeição favorita", simplesmente porque estava morna. Virei-me para que ela não visse que eu estava chorando. Uma mãe deveria proteger seus filhos. Eu, ao contrário, estava dando a eles pão estragado. Pareceu-me que as leis do universo haviam sido quebradas. Como o gás para cozinhar está indisponível há meses, tudo o que posso fazer é acender uma fogueira todos os dias. Recolho pedaços e fragmentos de madeira e me agacho do lado de fora da barraca para acender uma fogueira e preparar algo para comer ou esquentar água para o chá. O ar se enche de fumaça, nossas roupas ficam sujas de cinzas, mas não temos alternativa. A falta de combustível tornou cada tarefa um verdadeiro teste de paciência e perseverança. Transformou o menor ato de cuidado — como preparar o pão — em uma luta que eu jamais imaginaria.
Vídeo registra ataque a escola usada como abrigo em Gaza; crianças passavam por perto ==> https://t.co/HgRF3FzOAt #g1
— g1 (@g1) July 20, 2025
Naquela noite, às 20h, eu estava sentada com as crianças lavando e limpando um maço de folhas de molokhia. Em tempos de guerra, era quase uma festa; parecia indicar a possibilidade de uma refeição deliciosa, mesmo sem carne, alho ou coentro. Ficamos felizes por poder cozinhar alguma coisa. Salah olhou para mim e pediu algo simples: um falafel para o jantar. Tínhamos combinado comer apenas uma refeição por dia, mas ele estava com fome. Levantou-se e calmamente me pediu para deixá-lo sair para comprar um falafel. Meu coração se apertou. Poucos dias antes, o exército israelense havia atingido uma barraca de falafel perto de onde morávamos. Salah perdeu dois amigos, naquele bombardeio, Omar e Salma Abu Salem. A princípio, eu recusei. Depois de muitos minutos de hesitação e suas súplicas silenciosas — com os olhos cheios de fome — finalmente concordei. "Ok", eu disse. "Mas você vai até o vendedor de falafel aqui perto e volta imediatamente. Não se atrase." Antes de ele sair, eu o chamei de volta: "Venha aqui. Antes de ir, deixe-me abraçá-lo e beijá-lo." Em Gaza, temos esse novo hábito. Sempre nos cumprimentamos com abraços, dizendo "adeus" abraçando-nos, porque todos sabemos como é fácil para a morte levar embora as pessoas que amamos.
Momentos depois que Salah saiu, sentei-me ao lado de Nay, conversando e preparando a comida. Então o mundo explodiu. Um rugido ensurdecedor sacudiu as paredes e o chão. Eu conheço esse barulho muito bem; era um míssil drone. Naquele instante, pensei que meu pior pesadelo havia se tornado realidade. Meu coração parou de bater, gritei o nome do meu filho com todas as minhas forças: "Salaaaaah!"
Não me lembro como cheguei à porta da frente. Talvez tenha levado um segundo. Talvez uma eternidade. Então eu o vi. Ele estava lá, parado na entrada, pálido de terror, com os olhos arregalados e cheios de lágrimas. Ele gritou: "Mãe, estou com medo! Estou com medo, me ajuda!" Eu o abracei com força. Ele se agarrou a mim com tanta força que senti seu coração batendo junto ao meu. Eu continuei a lhe repetir baixinho: "Está tudo bem, habibi. Você está seguro. A mamãe está aqui. Não tenha medo." Mas ele me abraçou ainda mais forte, soluçando tanto que mal conseguia respirar, e continuou a chorar incontrolavelmente: "Mamãe, choveu fogo. Choveu estilhaços. Mamãe, estou com medo!" Examinei seus braços e pernas, procurando por queimaduras ou cortes. Estava tudo bem. Ele não tinha ferimentos. O terror, no entanto, havia se apoderado de seu corpo.
Depois de abraçar Salah e verificar se havia ferimentos, disse a ele para ficar com a irmã. Meu coração ainda batia descontrolado, mas eu sabia que precisava ir lá fora e ver o que tinha acontecido. Quando saí para a rua, era um caos absoluto. Corpos por toda parte. O ar estava tomado pelos gritos de dor dos feridos e por um coro de terror e desespero. Fumaça subia na escuridão. E por toda parte, pessoas procurando crianças, mães, irmãos. Vi um homem pressionando o corpo de uma criança para estancar o sangramento. Outro chamou uma ambulância, que nunca chegou. Outro permaneceu imóvel, deitado sobre um pedaço de papelão: estava vivo quando o encontraram, mas morreu à espera de socorro.
ISRAEL: O HORROR pic.twitter.com/Kjz75ScPP5
— Mônica Bergamo (@monicabergamo) July 20, 2025
Entre os feridos, avistei uma conhecida, Ataf al-Habbash. Ela estava no chão, perto da calçada, com as pernas cobertas de sangue e as roupas rasgadas pela explosão. Dois homens me pediram para os ajudar, pois estavam embraçados em levantá-la naquele estado. Ela me olhou com os olhos vidrados. Com a voz fina e confusa, perguntou: "Onde estou? O que aconteceu?". Agachei-me ao lado dela e peguei sua mão. "Vai ficar tudo bem", disse-lhe, embora não tivesse certeza. "Eles vão levá-la para o hospital imediatamente." Depois do que pareceu uma eternidade, um pequeno e frágil tuk-tuk chegou, com a carroceria abarrotada de feridos. Era o único meio de transporte disponível para evacuar os feridos. Levantaram Ataf e a colocaram de lado. Vi o tuk-tuk se afastar na escuridão, com o motor lutando contra o peso de todo aquele sofrimento. Naquela noite, 12 pessoas morreram, 70 ficaram feridas, 20 delas crianças.
Enquanto voltava para casa, senti meu coração se partir. Parte de mim ainda estava lá fora, na rua, com os feridos e os moribundos. A outra parte, porém, a que sempre prevalece, estava ali com as crianças. Todos os dias travo uma verdadeira batalha para alimentá-los com comida que sei que não é boa. Água que pode deixá-los doentes. Pão feito de farinha vencida. Vivo em constante medo de que eles fiquem doentes ou que algo pior lhes aconteça, que sejam mortos ou fiquem incapacitados para sempre. Meus nervos estão à flor da pele. Meu coração nunca se acalma.
Mais tarde naquela noite, quando as lágrimas de Salah finalmente diminuíram, pedi a ele que me contasse o que sentiu no momento da explosão. Ele ficou sentado em silêncio no chão por um tempo e então sussurrou: “Mamãe, quando aconteceu a explosão, pensei que tinha chegado o momento de morrer. Pensei que talvez veria Omar e Salma novamente. Meu coração batia tão forte que eu não conseguia respirar. Pensei: se eu morrer, a mamãe vai me encontrar? Ela saberá onde me procurar?” Ele fez uma pausa, e seus olhos se encheram novamente de lágrimas. “Mas então eu vi você na porta e percebi que não estava morto. Fiquei apavorado, mas sabia que você viria me buscar.” Mais tarde, tarde da noite, enquanto estávamos sentados juntos na escuridão, Salah me disse palavras que nunca esquecerei. Com uma voz cansada e fraca, ele disse: “Mamãe, quando aconteceu, eu não pensei em mais ninguém. Pensei apenas em você. Corri para você porque você é minha segurança. Você é o lugar onde me sinto protegido. Eu só queria você, mamãe!”
Mais tarde ainda, ele me pediu para ligar para o pai, que havia retornado ao norte de Gaza para terminar um trabalho e recuperar os nossos pertences. Disquei o número dele e entreguei-lhe o telefone. Com a voz embargada, Salah disse: "Baba? Oi, baba, estou com tanto medo. Estou assustado. Por favor, volte para nós. Preciso de você, baba. O míssil caiu enquanto eu comprava um falafel. De repente, todos começaram a correr. Havia sangue por toda parte". O pai tentou acalmá-lo, embora eu também pudesse ouvir sua voz embargada. Ele pediu a Salah que descrevesse o que havia acontecido.
O menino respirou fundo e continuou a contar suas experiências em meio a soluços: "Eu estava na fila, esperando minha vez. De repente, tudo começou a tremer. Não ouvi o míssil, mas vi estilhaços caindo do céu. Caíram por toda parte. Então houve uma grande explosão. Pessoas correram em todas as direções. Baba, estava escuro, havia corpos cobertos de sangue no chão. Corri para casa, chamando a mamãe e a encontrei na porta, ela também estava me chamando." Salah deu um suspiro profundo e sussurrou: "Baba, por favor, volte. Estou com medo." Por um momento, houve apenas silêncio do outro lado da linha. Então, ouvi a voz do meu marido falhar e ele começou a chorar. Mesmo um pai tentando ser forte não consegue conter as lágrimas. Abracei Salah e o apertei com força. Aos poucos, os batimentos de seu coração diminuíram. Naquele momento, entendi: nenhuma guerra pode derrotar o amor de uma mãe ou de um pai.
Se alguém me perguntasse como é estar em guerra, eu responderia: "Significa abraçar seu filho que soluça e pede que você lhe prometa que nada de ruim lhe acontecerá. Significa ver seus vizinhos saindo em busca de seus entes queridos à luz de um celular. Significa saber que você não pode prometer nada." Apesar disso, todas as manhãs prometo a mim mesma que continuarei a abraçá-los com força. Continuarei a procurar pão e água. Continuarei a contar histórias para eles, mesmo no escuro, para que se lembrem de como é a infância. E talvez, um dia esse pesadelo acabará, e eles saberão que a mãe deles nunca deixou de amá-los, mesmo num mundo que faz de tudo para tirar tudo deles. Escrevi essas linhas para que se lembrem de que por trás de cada número há um nome, por trás de cada estatística há uma família, e por trás de cada casa destruída há uma mãe que acredita que o amor é mais forte que a guerra.