22 Agosto 2023
Publicamos a prefácio do Papa Francisco ao livro autobiográfico de Dorothy Day "Encontrei Deus através dos seus pobres. Do ateísmo à fé: o meu percurso interior" (Libreria Editrice Vaticana, 2023). Dorothy Day (1897-1980), fundadora do movimento Catholic Worker, o movimento de trabalhadores católicos, foi uma jornalista, escritora, pacifista e ativista americana, conhecida pelo seu compromisso com os pobres, contra armamentos e pela justiça social.
A informação é publicada por Vatican News, 20-08-2023.
A vida de Dorothy Day, conforme ela mesma nos conta nestas páginas, é uma das possíveis confirmações do que o Papa Bento XVI já defendeu com vigor e que eu mesmo mencionei em várias ocasiões: "A Igreja cresce por atração, não por proselitismo". A maneira como Dorothy Day narra sua jornada para a fé cristã atesta o fato de que não são os esforços ou artifícios humanos que aproximam as pessoas de Deus, mas sim a graça que brota da caridade, a beleza que emana do testemunho e o amor que se torna ações concretas.
Ho trovato Dio attraverso i suoi poveri. Dall’ateismo alla fede: il mio cammino interiore (Encontrei Deus através dos seus pobres. Do ateísmo à fé: o meu percurso interior), de Dorothy Day (Libreria Editrice Vaticana, 2023)
A trajetória de Dorothy Day, essa mulher americana que dedicou toda a sua vida à justiça social e aos direitos das pessoas, especialmente dos pobres, dos trabalhadores explorados e dos marginalizados pela sociedade, declarada Serva de Deus em 2000, é um testemunho do que o apóstolo São Tiago já afirmava em sua Epístola: "Mostra-me a tua fé sem obras, e eu, com as minhas obras, te mostrarei a minha fé" (2,18).
Gostaria de destacar três elementos que emergem das páginas autobiográficas de Dorothy Day como preciosos ensinamentos para todos nós neste nosso tempo: inquietação, a Igreja e o serviço.
Dorothy é uma mulher inquieta: quando ela trilha seu caminho de adesão ao cristianismo, é jovem, ainda não tem trinta anos, há algum tempo abandonou a prática religiosa, que lhe parecia, como ressalta o irmão a quem dedica este livro, algo "doentio". No entanto, à medida que cresce em sua busca espiritual, ela passa a considerar a fé e Deus não como um "quebra-galho", para usar uma famosa definição do teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, mas sim como o que eles realmente devem ser: a plenitude da vida e o objetivo de sua busca por felicidade. Dorothy Day escreve:
"A maioria das vezes, vislumbres de Deus vieram quando eu estava sozinha. Meus detratores não podem dizer que foi o medo da solidão e da dor que me levou a Ele. Foi nesses poucos anos em que eu estava sozinha e extremamente feliz que o encontrei. Finalmente o encontrei através da alegria e da gratidão, não através da dor"
Aqui, Dorothy Day nos ensina que Deus não é meramente um consolo ou um meio de alienação para o homem nas amarguras de seus dias, mas Ele preenche abundantemente nosso desejo por alegria e realização. O Senhor deseja corações inquietos, não almas burguesas que se contentam com o que já existe. E Deus não tira nada do homem e da mulher de todos os tempos, Ele dá apenas em multiplicação! Jesus não veio anunciar que a bondade de Deus é um substituto para ser humano, pelo contrário, Ele nos deu o fogo do amor divino que realiza tudo o que é belo, verdadeiro e justo no coração de cada pessoa. Ler estas páginas de Dorothy Day e seguir sua jornada religiosa se torna uma aventura que faz bem ao coração e que pode nos ensinar muito para manter uma imagem verdadeira de Deus viva em nós.
Dorothy Day, em segundo lugar, reserva palavras maravilhosas para a Igreja Católica, que para ela, vinda e pertencente ao mundo do compromisso social e sindical, muitas vezes parecia estar ao lado dos ricos e dos proprietários, frequentemente insensíveis às necessidades da verdadeira justiça social e igualdade concreta, das quais - como Day mesma lembra - tantas páginas do Antigo Testamento são ricas. Bem, à medida que ela aderiu às verdades da fé, sua consideração pela natureza divina da Igreja Católica também crescia. Não com um olhar de fideísmo acrítico, como uma defesa de sua nova "casa" espiritual, mas com uma atitude honesta e esclarecida, que conseguia enxergar na própria vida da Igreja um elemento de ligação indissolúvel com o mistério, para além das quedas repetidas de seus membros.
Dorothy Day observa: "Os mesmos ataques dirigidos à Igreja me mostraram sua divindade. Apenas uma instituição divina poderia sobreviver à traição de Judas, à negação de Pedro, aos pecados dos muitos que professavam sua fé, que deveriam cuidar dos seus pobres". E, em outro trecho do texto, ela afirma:
"Eu sempre pensei que as fraquezas humanas, os pecados e a ignorância daqueles que estão em posições elevadas ao longo da história mostraram apenas que a Igreja deve ser divina para persistir ao longo dos séculos. Eu não teria atribuído à Igreja o que eu considerava serem erros dos eclesiásticos"
Que belo ouvir palavras assim de uma grande testemunha de fé, caridade e esperança no século XX, o século em que a Igreja foi alvo de críticas, aversões e abandono! Uma mulher livre, Dorothy Day, capaz de não esconder o que ela não tem medo de chamar de "erros dos eclesiásticos!", mas que admite como a Igreja está diretamente ligada a Deus, porque ela é d'Ele, não nossa, Ele a quis, não nós, ela é o Seu instrumento, não algo que possamos usar. Essa é a vocação e a identidade da Igreja: uma realidade divina, não humana, que nos conduz a Deus e através da qual Deus pode nos alcançar.
Por fim, o serviço. Dorothy Day serviu os outros durante toda a sua vida. Mesmo antes de chegar à fé de forma completa. E esse ato de se colocar à disposição, com seu trabalho como jornalista e ativista, tornou-se uma espécie de "autoestrada" pela qual Deus tocou seu coração. E é ela mesma quem lembra ao leitor como a luta pela justiça é um dos meios pelos quais, mesmo inconscientemente, cada pessoa pode realizar o sonho de Deus de uma humanidade reconciliada, na qual o perfume do amor prevaleça sobre o nauseante cheiro do egoísmo. As palavras de Dorothy Day são esclarecedoras nesse sentido: "O amor humano em seu melhor, desinteressado e luminoso, que ilumina nossos dias, nos faz vislumbrar o amor de Deus pelo homem. O amor é a melhor coisa que nos é dada a conhecer nesta vida". Isso nos ensina algo profundamente instrutivo ainda hoje: crentes e não crentes são aliados na promoção da dignidade de cada pessoa quando amam e servem o mais abandonado dos seres humanos.
Quando Dorothy Day escreve que o lema dos movimentos sociais trabalhistas de seu tempo era "problema de um, problema de todos", ela me lembra de uma famosa afirmação de Dom Lorenzo Milani, o padre de Barbiana que celebra seu centenário de nascimento este ano, e que faz o protagonista de "Carta a uma Professora" dizer: "Aprendi que o problema dos outros é igual ao meu. Superá-lo juntos é política. Superá-lo sozinhos é avareza". O serviço deve, portanto, se tornar política: ou seja, escolhas concretas para que a justiça prevaleça e a dignidade de cada pessoa seja preservada. Dorothy Day, que eu mencionei em meu discurso ao Congresso americano durante a minha viagem apostólica em 2015, é um estímulo e um exemplo neste percurso árduo mas fascinante.
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Francisco: Dorothy Day, a beleza da fé que encontra Deus no amor pelos pobres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU